A Jornada Mundial da Juventude e o Parque das Três Margens
1. Importa lembrar como tudo começou. Em 27 de Janeiro de 2019, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, anuncia a escolha de Lisboa para acolher a Jornada Mundial da Juventude (JMJ): “É uma alegria incontida e é começar a sonhar já e a projectar já o que se vai passar daqui a três anos e meio.”
Foi um anúncio transatlântico, do Panamá para Portugal, pois o nosso Presidente tinha-se deslocado de propósito, a convite do homólogo panamiano, para o encerramento da Jornada Mundial da Juventude desse ano. Viajou, certamente porque a diplomacia já sabia que a escolha seria Lisboa. Poderia fazer o anúncio de imediato e receber o testemunho em pessoa. Assim foi.
“O Vaticano – relatou a Lusa, citada pela TVI – anunciou hoje, na missa de encerramento das JMJ, na Cidade do Panamá, que Lisboa é a próxima cidade a acolher aquele que é considerado o maior evento organizado pela Igreja Católica, um encontro de jovens de todo o mundo com o Papa, num ambiente festivo, religioso e cultural.”
Marcelo Rebelo de Sousa valorizou o papel da língua portuguesa: “Acho que nós conseguimos, conseguimos todos, conseguimos nós portugueses, conseguiram naturalmente os católicos de Portugal, conseguiram os bispos católicos, conseguiu D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, mas conseguimos nós todos como povo e conseguimos nós que falamos português.” E acrescentou: “Foi muito importante um argumento essencial para esta decisão, o ser um país que pudesse abrir para vários continentes e, nomeadamente, para África, porque é o único continente que ainda não teve as Jornadas Mundiais da Juventude. E entendeu-se, e bem, que Portugal, além de abrir para o continente americano e, obviamente, abrir para a Europa, abria para África, para a que fala português e para aquela que não fala, mas também vai vir até Lisboa.” E, depois de evocar a JMJ no Brasil, em 2013, o Presidente acentuou: “É o reconhecimento do peso da lusofonia, do mundo que fala português. E, ao mesmo tempo, o peso de Portugal, o peso de Fátima, o peso do povo católico português. Mas eu não escondo que a lusofonia e o falar-se português e o estar-se presente em todos os continentes em todo o mundo pesou na luta que foi muito difícil com outros candidatos a estas jornadas de 2022.”
2. O primeiro-ministro António Costa associou-se logo com entusiasmo à “alegria incontida” do Presidente, em dois tweets. Diz o primeiro, em “twitês”: “Felicito o Patriarcado de Lisboa pelo excelente trabalho desenvolvido em estreita colaboração com o Município de Lisboa para que #Portugal acolha em 2022 as Jornadas Mundiais da Juventude, expressando ao @Pontifex a nossa gratidão pela Sua escolha.” E no segundo: “Conforme oportunamente transmitido ao Presidente da Câmara @FMedina_PCML e ao Cardeal-Patriarca D. Manuel Clemente, o @govpt assegura todo o apoio que seja necessário para garantir o sucesso deste evento extraordinário para crentes e não crentes.”
O governo enviara também ao Panamá o secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Rebelo, para assim se representar. A seguir ao Presidente da República, o secretário de Estado irmanou-se na “incontida alegria”: “Estamos a falar do maior evento de juventude que há no mundo, eu não sei mesmo se alguma vez em Portugal recebemos algo parecido com isto e, portanto, é uma notícia extraordinária. Eu diria que é de uma alegria absolutamente extraordinária para o nosso país, evidentemente para a Diocese de Lisboa, para a Câmara Municipal de Lisboa, mas claro também para o país, que vê assim reconhecida, mais uma vez, a grande capacidade organizativa que tem.” E garantiu que o apoio era institucional, nacional e duradouro: “Não será este Governo, será o próximo Governo que estiver em funções, mas é, desde já, obviamente, um compromisso de Portugal, mais do que qualquer Governo.”
3. Quem também estava na capital do Panamá era Fernando Medina, então Presidente da Câmara Municipal de Lisboa – a escolha era segredo bem guardado. Desdobrou-se em manifestações de regozijo e compromisso. Primeiro, frisou: “Lisboa tem uma história grande na realização de eventos, mas nenhum com esta dimensão. Nenhum desta dimensão e nenhum desta importância.” Segundo, garantiu: “A capital portuguesa fará os investimentos necessários para a concretização das JMJ em 2022 e para que subsista, também, uma marca na cidade deste evento que perdure ao longo do tempo.” Terceiro, sobre os custos, explicou: “As JMJ têm, acima de tudo, um impacto simbólico e um impacto social, de cidadania e político que não tem contabilização financeira possível. Agora nós faremos, em conjunto com a organização, um evento de grande qualidade, capaz de preparar a cidade para este acolhimento.”
Enfim, o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, depois de realçar o contributo dos católicos portugueses, em especial dos jovens católicos, para esta decisão, acentuou as notas da alegria, da juventude e da lusofonia: “É com muita alegria que, como patriarca de Lisboa e um dos bispos de Portugal, porque isto é para nós todos, recebemos esta notícia de que será em Lisboa a Jornada Mundial da Juventude de 2022.” E destacou: “Será em Portugal, será, concretamente, em Lisboa, será para toda a lusofonia, com uma especial insistência para que venham os nossos irmãos lusófonos de África e de outras partes do mundo, também com certeza os nossos caríssimos irmãos brasileiros que estão sempre tão presentes com tanta força.”
4. Quatro anos depois, como vamos de “incontida alegria” pela realização em Portugal do “maior evento de juventude que há no mundo”? A 182 dias da sua realização, como vamos de “apoio incondicional” à concretização do “maior evento alguma vez realizado em Portugal”? Estes últimos dias foram de treme-treme, algo que não está à nossa altura, nem ao nível da dimensão e da responsabilidade do acontecimento.
Retrospectivamente, parece que se arrancou devagar. Parece que não se planeou o suficiente. Parece que a “grande capacidade organizativa” andou longe e engasgada. As eleições ditaram mudanças políticas: em Lisboa, saiu Fernando Medina e entrou Carlos Moedas, no último trimestre de 2021; no país, o PS obteve maioria absoluta no início de 2022, mas esta tardou a arrancar e tem tropeçado muito. Pelo meio, a pandemia dominou o ambiente e perturbou uma conjuntura longa, de 2020 a 2022. A pandemia adiou as Jornadas de 2022 para 2023. E, com pandemia ou sem ela, a repartição de responsabilidades e seus trabalhos preparatórios tardaram demasiado, apenas tendo ficado totalmente esclarecida entre as partes organizadoras em Agosto de 2022, por pressão do novo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas. Fica a ideia de que, passado o néon de 2019 e entrados no nevoeiro da pandemia, se patinou naquela lusa habitualidade no gerúndio: vai-se fazendo, vai-se andando, vai acontecendo.
Há uma semana, o alto custo de um “altar-palco” (4,2 milhões), encomendado por ajuste directo a uma empresa que tem sofrido danos reputacionais, incendiou um debate abrasivo, que pôs à prova a casca de políticos e mostrou a diferença entre política e politiquice. Rapidamente o alarido galgou do custo do “altar-palco” para os 35 milhões de Lisboa, mais os 10 milhões de Loures, mais os não sei quantos do governo, até somar 80 milhões ou, segundo alguns, escorregando desenfreados pela demagogia, 160 milhões, sem ninguém perceber muito bem o quê e por quem. O alarido ecoou fora de fronteiras e chegou ao Vaticano, de modo deplorável.
Como já constara das declarações iniciais de Fernando Medina, presidente da Câmara, e se tornou claro noutras ocasiões por parte dos municípios envolvidos e do governo, o Estado e as autarquias deliberaram aproveitar a Jornada Mundial da Juventude com a presença do Papa para alavancarem o melhoramento, valorização e conclusão de um grande parque de lazer na confluência do Trancão com o Tejo, unindo a zona sul de Loures à zona oriental norte de Lisboa.
É uma orientação correta, permitindo continuar o que começara com a Expo e deixando à população dos dois municípios e a todos que nos visitam um parque de grande qualidade ambiental, com excelentes condições de fruição, onde, há décadas, era lixeira selvagem e cloaca fétida dos subúrbios de Lisboa. Quando eu era criança e adolescente, esse curso de não sei bem que líquidos era conhecido como o “rio Tracão”, tal era o cheiro que exalava à distância. Hoje, já recuperado – uma obra extraordinária de recuperação ambiental, apontando para horizontes de esperança –, será o eixo desse futuro Parque das Três Margens, como quero, aqui, chamar-lhe: margem ocidental do Tejo e margens sul e norte do Trancão.
5. Sendo esta orientação 100 por cento correcta, bem justificada sob o ângulo do interesse público, tem um perigo para a Igreja. E para todos os que de boa-fé estão na organização e mobilização no projecto da JMJ. Isso só pode ser realizado num ambiente decente e num espaço público de seriedade de todos os actores, por forma a não fazer recair no evento religioso o ónus político e moral dos investimentos que, por outras utilidades futuras e outros interesses, sejam de desenhar e ordenar. Os custos não são com elementos superficiais e meramente efémeros, mas enraizados em obras estruturantes e duradouras.
Pondo a imaginação à solta, se se tivesse incluído no pacote JMJ a extensão da linha do Metropolitano até à foz do Trancão, os custos seriam muito mais altos. E por que não, já agora, resolver de uma assentada o impasse eterno do NAL, iniciando a construção de um moderno aeroporto em Alverca, que seria inaugurado com um qualquer momento da chegada do Papa? Talvez mesmo a linha do TGV, e a nova Feira Popular, e um centro de concertos ao ar livre, e uma nova marina. A imaginação eufórica não conhece travão. Mas não se poderia dizer que esses custos seriam da JMJ, mera oportunidade facilitadora para benefícios públicos de outro alcance. É preciso mostrar bem tudo o que está a ser feito para ficar e para quê.
A seis meses da Jornada, importa assentar o jogo e fazer o caminho que falta, articulando bem as tarefas e responsabilidades do governo, da Igreja e dos municípios de Lisboa e Loures. Saúdo o espírito de Carlos Moedas, que, no meio da algazarra e do lavar de mãos, mostrou e disse “dar o corpo às balas”. Todos os responsáveis têm de ser assim, se querem fazer e conseguir, debaixo de escrutínio. Importa ter sentido prático, espírito executivo, com o foco em 1 de Agosto.
Temos de ser acolhedores para o milhão de jovens que, de várias partes do mundo, planearam a sua viagem e, nos seus grupos, a preparam todas as semanas. Temos de estar à altura dos milhares de famílias portuguesas que – não só na região de Lisboa – já se mobilizaram para acolher em suas casas a maioria desses jovens. Temos de ser acolhedores para o Papa. É a hora de todas as entidades responsáveis porem em obra a “alegria incontida”, a “grande capacidade organizativa”, “todo o apoio necessário para garantir o sucesso deste evento extraordinário”.
Depois de 7 de Agosto, poderemos fazer todos os balanços e será o tempo de prestar contas. O fundamental é trabalhar agora, para, a 7 de Agosto, virmos a estar satisfeitos e contentes. Duplamente felizes: primeiro, por guardarmos a lembrança de dias formidáveis, dias ímpares na nossa terra, que terão regado com juventude e alegria contagiante o calor do tempo; segundo, porque, passada a Jornada Mundial, guardarmos essa memória no Parque das Três Margens, representando passado, presente e futuro.
Um parque grande e novo, por onde muitos sem conta circularão, por muitos anos, vindos de trás das três margens da confluência de rios, para ali passear, namorar e brincar, num ambiente de ar puro e paisagem limpa. Não é coisa pouca, na zona ribeirinha do estuário do Tejo.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
OBSERVADOR, 31.Janeiro.2023
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