Lei de Bases: a questão da Utilidade Pública

Têm vindo a lume, provindos de certos círculos desportivos, comentários e sugestões tendentes a considerar inconstitucional a Lei de Bases do Sistema Desportivo, na parte em que prevê e regula o novo modo de relação entre a Administração Pública estatal e as Federações Desportivas.

No cerne da questão está, uma vez mais, o estatuto denominado da utilidade pública desportiva (UPD).

É esta uma questão de enorme gravidade e que não pode ser objecto de apreciações meramente levianas, como algumas das vindas a público. Mas uma questão que antes deve merecer uma análise cuidada, detalhada e precisa.

Não se trata, com efeito, de exprimir apenas concordância ou discordância com aquele estatuto (o que obviamente é da liberdade de cada qual); mas de emitir juízo de inconstitucionalidade, o que, a ser verdade, implicaria a total invalidade e a inexistência de originárias ("ex tunc") normas legais que regulam a utilidade pública desportiva, com efeitos demolidores similares sobre a legislação e regulamentação subsequentes.

Desde logo, não pode deixar de considerar-se bizarra a tão grave e radical alegação de inconstitucionalidade, feita neste preciso momento.

O preceito em discussão - o actual artigo 21.º, da Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro - tem, na verdade, uma longa história.

Ele provém intacto, "ipsis verbis", do Grupo de Trabalho do Desporto Profissional, que, ainda ao tempo do X Governo Constitucional e com larga participação do movimento associativo, trabalhou, neste âmbito, entre Julho de 1986 e Setembro de 1987, altura em que apresentou as suas conclusões. Aquele preceito figurava, nessa altura, "ipsis verbis", como o artigo 46.º do projecto de "Princípios Gerais do Sistema Desportivo", então elaborado.

Por seu turno, o XI Governo Constitucional (o actual) viria a assumir e assimilar integralmente esta herança e a incluí-la, sempre "ipsis verbis", nas versões do anteprojecto da proposta de Lei de Bases que estiveram em debate público entre Março e Dezembro de 1988 - eram, então, ora o artigo 22.º, ora já o artigo 21.º.

Segue-se, depois, a Proposta de Lei nº 82/V, onde, sempre "ipsis verbis", o mesmo preceito se impunha, agora como artigo 22.º, sendo que esta proposta esteve ainda em debate público e parlamentar durante todo o ano de 1989 (de Janeiro a Novembro). 

E, enfim, surge publicada a Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro (que já tem, portanto, um ano de vigência), e onde esse preceito aparece, sempre "ipsis verbis", como o artigo 21.º.

ora, não deixa de ser curioso notar que, a haver inconstitucionalidade deste preceito - e grave: inconstitucionalidade material por violação dos normativos relativos à liberdade de associação -, ninguém nem no movimento associativo,nem alhures, houvesse dado por ela (nem em 1986, nem em 1987, nem em 1988, nem em 1989, nem em 1990) para agora assim se a "disparar" em 1991, à "queima roupa".

Mais: o Governo apreciou a proposta de Lei. Nada viu nela de inconstitucional e apresentou-a, por seu turno, à Assembleia da República, que a analisou ao longo de cerca de um ano.

A Assembleia não descobriu o menor indício de inconstitucionalidade e, nomeadamente, nenhum dos 250 deputados suscitou tal questão - o que, no mínimo, levaria o problema a ser analisado e ponderado no âmbito da comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais. Nada disso: antes a Assembleia da República viria a aprovar a Lei por larga maioria, com um único voto contra e sem qualquer reserva de constitucionalidade alegada por qualquer sector parlamentar.

E, enfim, o próprio Presidente da República - que, como se sabe, titula poderes próprios em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade das leis - não suscitou a mínima dúvida, reserva ou observação, nem desencadeou o competente processo de apreciação pelo Tribunal Constitucional; antes tendo vindo a promulgar prontamente a Lei nº 1.90, de 13 de Janeiro.


Erro ou manobra dilatória?

Esta cronologia é mais do que elucidativa daquilo que, em boa verdade, pode estar aqui em causa: ou um súbito e grosseiro erro de entendimento por parte de alguns círculos do movimento associativo; ou, o que seria bem mais lamentável (atendendo ao bom espírito de diálogo, de cooperação e de concentração em que a elaboração da nova legislação desportiva tem vindo a decorrer), a uma vulgar manobra política tendente a paralisar ou a embarcar o trabalho profícuo da Comissão de Desenvolvimento da Lei de Bases e a própria competência legislativa do Governo, assim remetendo "para as calendas" o esclarecimento normativo de uma questão tão importante e crucial para a clara e sólida organização da nossa administração desportiva.

De facto, é esta a altura adequada para recordar o que a Lei nº 63/78, de 29 de Setembro, havia determinado (art.º 4.º; "Artigo 32º-B,1. - No prazo de noventa dias o Governo promoverá a apresentação à Assembleia da República de uma proposta de Lei que redefina o regime jurídico das relações entre o Estado e os organismos não governamentais de carácter desportivo, adequado ao disposto na Constituição da República").

Ora, estes 90 dias levaram mais de dez anos a passar...

Com efeito, só com a Proposta de Lei nº 82/V e a Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro, esta importantíssima e delicadíssima lacuna do nosso sistema orgânico jurídico-desportivo seria finalmente superada e resolvida; e seria, por isso, lamentável que novas súbitas e mal-informadas más vontades viessem, agora, a conseguir bloquear o indispensável avanço e o mais detalhado esclarecimento normativos nesta sede.

Aliás, aquando do primeiro grande debate público, é importante dar a conhecer o parecer do Comité Olímpico Português (COP), que agora, parece querer aparecer, mercê da pressão de certos círculos conhecidos e, por assim dizer, "datados", a protagonizar a tese da inconstitucionalidade.

Em 30 de Maio de 1988, foi exactamente o seguinte o parecer do C.O.P.: "Julga-se, todavia, aceitável que o Estado privilegie algumas federações com apoio financeiro, ou em meios técnicos, materiais e humanos, quando estas reconhecidamente concorram para a realização dos seus fins, através da concessão do estatuto de utilidade pública desportiva. Inclusivamente, julga-se admissível que as Federações Desportivas com tal estatuto beneficiem do exclusivo quanto à organização de campeonatos nacionais e consequente atribuição de títulos e quanto à constituição de selecções nacionais."

Ora, é exactamente disto, e sobretudo disto - embora não só - que se trata.


A falsa inconstitucionalidade

De resto, a alegação de inconstitucionalidade não tem pés, nem cabeça.

De facto, só se o estatuto de utilidade pública desportiva fosse considerado com um requisito constitutivo das federações desportivas é que poderiam suscitar-se algumas dúvidas (que nunca certezas) sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de semelhante regime, em virtude da entorse que infligira ao puro regime constitucional da liberdade de associação (artigo 46.º da Constituição).

Todavia, isto é um mero sofisma: procura-se, na verdade, dar à lei uma interpretação que ela não tem, nunca teve, nem terá; para depois, como num "golpe de judo", atirar ao tapete o preceito que se contesta.

Da Lei de Bases resulta claríssimo que a utilidade pública desportiva não é um requisito constitutivo das Federações, mas apenas algo que, depois de constituídas, se lhes acrescenta para determinados e precisos efeitos: atribuição de "competência para o exercício, dentro do respectivo âmbito, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública (art.º 22.º, 1 - LBSD)".

Por exemplo, o artigo 27.º nº 1 (LBSD), confirma, aliás, o mesmo entendimento, na medida em que resulta claramente do seu texto que podem existir federações desportivas sem UPD, ao lado de federações desportivas com UPD.

Mais significativo ainda é o que o Tribunal Constitucional (órgão que, em última análise, teria que vir a dirimir este conflito de entendimento) já disse e já fez publicar sobre esta matéria.

Fê-lo no Acórdão nº 472/89, de 12 de Julho de 1989, sobre o seu processo nº 178/86.

E aí se diz o seguinte: "Importa ter em atenção a possibilidade - a que já se aludiu - de atribuição de poderes ou funções públicas a entidades privadas" para que estas prossigam, em lugar e como que em nome do Estado, certos fins de interesse geral, certos fins públicos. Ora, essa devolução ou atribuição de poderes pode incluir também a outorga de faculdades normativas.

(...) Uma devolução de competência normativa pública a pessoas colectivas de direito privado só ocorrerá se existir um acto de poder público a operá-la directa a iniludivelmente. Semelhante devolução não pode simplesmente presumir-se, e na dúvida deverá concluir-se pela inexistência dela. (...) Não acontece, porém, isto - convém adverti-lo aqui e agora - necessariamente por força de uma exigência constitucional. Pois pode na verdade entender-se que não será incompatível, mesmo com a Constituição de 1976, um regime em que o legislador opere uma certa "publicitação" da actividade desportiva, tal que o Estado assuma ou tutele o prosseguimento de fins dessa natureza, directamente ou mediante um específico reconhecimento como "pública" da actividade de determinados organismos desportivos, v.g., das Federações, eventualmente "devolvendo-lhes", expressa ou implicitamente, certos poderes nessa matéria (um regime desse tipo é, registe-se, o concebido na Proposta de Lei nº 82/V, sobre a Lei de Bases do Sistema Desportivo, ora em discussão na Assembleia da República).

Ou seja, como se verifica, é plena a constitucionalidade da Lei de Bases. E esta constitucionalidade foi já inteiramente sufragada, "avant la lettre", pelo próprio Tribunal Constitucional, último ente decisor nesta matéria.


Ensinamentos do direito comparado

Por outro lado, nós, portugueses, não existimos sozinhos na Europa e no Mundo; e, conquanto originais, não nos cumpre ser originalíssimos nesta matéria.

Vale, por isso, a pena reflectir sobre o que, a respeito desta mesma matéria, pensam e legislam países  com similar tradição jurídica no plano do Direito Administrativo em geral e da Administração Desportiva em particular.

Assim, em França, as Federações têm que adoptar estatutos conformes aos "estatutos típicos por decreto em Conselho de Estado" e, ainda, que se expressamente reconhecidas ("agrées") pelo ministro responsável (art.º 16.º), passando então a receber "delegação do ministro encarregado dos desportos para organizar competições desportivas em que se atribuam títulos nacionais, internacionais, regionais ou departamentais e proceder às selecções correspondentes" (art.º 17.º).

Em Itália, as Federações têm que ser reconhecidas pelo C.O.N.I. - que é, aqui, uma inequívoca Pessoa Colectiva de Direito Público, inserta na Administração do Estado - e vivem sujeitas à sua tutela permanente ("sotto la vigilanza del C.O.N.I.") (art.º 29.º), sendo, no caso italiano, que a lei reconheceu expressamente 37 federações (art.º 27.º) e, num regime duríssimo, reserva a admissão de novas federações ao voto favorável de 2/3 dos membros do Conselho Nacional do C.O.N.I..

Em Espanha, pela Lei n.º 13/1980, de 31 de Março, as federações (art.º 15.º) careciam de informação favorável do Conselho Superior dos Desportos (um órgão, ali, inteiramente governamental), da aprovação por este dos respectivos Estatutos e da inscrição no correspondente registo - um registo constitutivo, portanto.

E, continuando no tocante a Espanha, a recentíssima Lei n.º 10/90, de 15 de Outubro, é mais clara ainda no seu preâmbulo: "A Lei dedica, assim, uma atenção específica às Federações desportivas espanholas e às Ligas profissionais como formas associativas de segundo grau. Pela primeira vez, reconhece-se, na legislação, a natureza jurídico-privada das Federações, ao mesmo tempo que se lhes atribuem funções públicas de carácter administrativo. É nesta última dimensão que se apoiam as diferentes regras de tutela e controlo que a Administração do Estado pode exercer sobre as Federações e que a Lei, cautelarmente, estabeleceu com um absoluto e detalhado respeito dos princípios de auto-organização que são compatíveis com a vigilância e protecção dos interesses públicos em presença. (...)

Corolário do reconhecimento da natureza privada das federações desportivas do seu papel de organismo colaborador com a Administração, é a declaração directa e genérica de utilidade pública que a Lei efectua. O selo de oficialidade que, por habitação estatal, as Federações desportivas espanholas apresentam, encontra, aqui, a sua manifestação mais visível e, ao mesmo tempo, justifica a tutela e o controlo do Estado sobre as mesmas".

E é assim que, no que mais directamente nos interessa, o n.º 2 do artigo 30.º desta recentíssima lei espanhola vem dispõe o seguinte: " As Federações desportivas espanholas, além das suas próprias atribuições, exercem, por delegação, funções públicas de carácter administrativo, actuando neste caso como agentes colaboradores da Administração pública".

Julgo que, assim, fica tudo dito.

É facto que, quanto a esta moderníssima legislação espanhola - que já aproveitou, aliás, do debate português (credenciados técnicos espanhóis estiveram presentes, por exemplo, no debate que o Governo português organizou a 5 de Novembro de 1988), já ouvi apelidá-la de "franquista" ou de "falangista". Mas esta obscenidade não passa de um tolo "fait-divers", de um disparate grosseiro e de um acto barato de pura demagogia, insultando a inteligência, insultando o moderno Estado espanhol e insultando os valores do regime democrático e os princípios do Estado de Direito.

Qualquer observador desapaixonado não poderá deixar de notar que o sistema português - o da "utilidade pública desportiva" (UPD) - é, nestes pressupostos, o mais benigno, aberto e liberal de todos.

Ele aponta, diversamente do mero "jus imperis" da França, da Itália e da Espanha, para uma serena e aberta metodologia contratualista: as federações constituem-se; e, depois, acordam ("contratam") com o Estado a parcela de poderes públicos que, em amplíssimo regime de auto-organização e de auto-administração passam a titular, por si sós, em vez do Estado.

É o uso dos símbolos nacionais; é a representação do nome de Portugal; é a organização de selecções e campeonatos nacionais; é a atribuição de títulos nacionalmente reconhecidos e protegidos; é sobretudo a unicidade desportiva e o regime de inscrição obrigatória; é ainda a regulação absoluta de profissões, onde o desporto profissional reina; ou é, enfim, a resolução definitiva de tantos e enormes conflitos de interesses; é, em suma, a autoridade desportiva nacional.

Vejamos, por exemplo, entre muitos outros, os Estatutos da Federação Portuguesa de Atletismo. Aí se diz (art.º 2.º-a) que a F.P.A. prossegue os seguintes objectivos: "Regulamentar e dirigir, em todo o país, a prática do atletismo amador, masculino e feminino, promovendo a sua difusão em íntima ligação com os órgãos estatais responsáveis pela gestão do desporto nacional e o Comité Olímpico Português".

E aí se diz também (art.º 1.º, n.º1) que a F.P.A. "é a entidade máxima na hierarquia do Atletismo português e rege-se pelo presente estatuto".

Ora, nada disso é possível sem um mínimo de "publicitação" nem que apenas no plano meramente formal. Publicitação que, aliás, o legislador deseja, recomenda e aponta, no plano de rigor e da indispensável formalidade jurídica.

O legislador português, filho de uma ampla maioria que acredita na "sociedade civil desportiva" (como o Ministro Roberto Carneiro a tem abundantemente designado), propões, para esta transacção entre o interesse público e o privado, o regime mais benigno possível - um regime, como disse, comparticipado e de tipo contratualista.

Pode haver quem o não queira e quem se haja, por isso e para isso, munido da arma de arremesso que constituem os mal lidos e assimilados ditames constitucionais.

Mas, aqui, é preciso haver muita cautela.

É que o art.º 79.º, n.º2, num texto que vem desde 1976, determina que: "Incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e colectividades desportivas, (...) orientar (...) a prática e a difusão da cultura física e do desporto (...)".

Ou seja, inviabilizado que fosse o regime benigno, liberal e aberto que o presente estatuto da "utilidade pública desportiva" postula, confiando na capacidade de auto-organização do associativismo desportivo e devolvendo-lhe a plenitude dos poderes públicos que para este revelam, poderíamos recair em regimes mais "tutelares", "orientadores", "progressistas" - senão "autoritários" - do fenómeno desportivo pelo Estado, em prejuízo da livre, mas orientada, respiração do desporto nacional e da sua orgânica, como se deseja e quer.


José Ribeiro e Castro
Jurista | Assessor do Ministro da Educação

EXPRESSO, 19.Janeiro.1991

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