O Zé faz falta


Uma nova abordagem da crise do Darfur aponta-a como “a primeira guerra das alterações climáticas”. Li-o primeiro, há semanas, na imprensa britânica. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, também o referiu há dias. E, em Wiesbaden, na última Assembleia Parlamentar Paritária ACP/UE, o tema lá aparece mencionado entre as causas do conflito no Darfur.

Convém não exagerar, para que as autoridades sudanesas não evadam as suas responsabilidades e, aos olhos da opinião pública, não escapem entre os pingos da chuva – que, por sinal, não chove. Mas o aquecimento global e as alterações climáticas estão na ordem do dia por todo o lado. Escreve-se já cientificamente sobre “refugiados climáticos”: os que migram e fogem porque a água do mar subiu, porque o deserto avançou e a terra secou, ou por causa de conflitos violentos decorrentes de tudo isso e dos movimentos de populações que provocam. Estudos há que referem haver hoje 10 milhões de “refugiados climáticos” – lembremos só, por exemplo, o Katrina em Nova Orleães ou o tsunami nas costas da Ásia. Esse número poderá subir, dizem os estudos, para 50 milhões em 2010, 150 milhões em 2050. Há quem profetize as próximas guerras disputadas não em torno do petróleo, mas em torno da água – ora da água do mar que sobe, ora da água que não chove.

Sem alijar a responsabilidade de quem incendiou e incendeia o conflito, Darfur cabe nesse quadro. O deserto avançou 100 km nos últimos quarenta anos. A desertificação também chega à nossa Península Ibérica. Aqui, pelo Sahel, avançou para sul. É um processo lento, progressivo, que altera a disponibilidade da terra e a pressão sobre o seu uso. E houve a grande seca de 1983/84 e a terrível fome bíblica até 1985. Décadas depois deste marco, a rebelião do Darfur em 2003 envolve-se em boa parte, segundo muitos, com acusações de que Cartum estava a oprimir a população negra africana e a favorecer os árabes nos conflitos locais pela água, pela terra e pelos direitos de pastagem. E Cartum respondeu, de facto, lançando os Janjaweed, milícias árabes das tribos nómadas, contra os movimentos rebeldes “africanos”.

Ainda que correndo o risco de ceder à imagem dos filmes de Cecil B. DeMille, a paisagem, aqui, evoca muito a Bíblia. Passamos por locais, usos, coisas, que sugerem que não eram muito diferentes há 2000 ou mesmo há 5000 anos.

Lembrei-me, aí, do Zé da Bíblia: José, filho de Jacob, abandonado pela inveja dos seus 11 irmãos, vendido como escravo a uns ismaelitas de passagem. Ele, o escravo do rico Potifar, no Egipto, que decifra os sonhos do angustiado faraó e prevê os sete anos de fartura, seguidos de sete anos de seca e fome. Salvou o Egipto, permitindo ao faraó, com o que armazenara nos anos fartos, alimentar o povo durante toda a crise da seca, enquanto os vizinhos do Egipto morriam famintos. Esse Zé acabou primeiro-ministro e foi aí que os irmãos e o velho pai Jacob o reencontram, fugindo da fome.

Nesse tempo, não se sabia de ozono, nem do CO2 e não se falava de aquecimento global. Todavia, já havia secas e fome, o terrível ataque climático do deserto.

O que o Zé tem de diferente é o que, hoje, chamamos de “boa governação”. Por isso, ele acabou braço direito do poderoso faraó. E conta a história que um bom primeiro-ministro.

De facto, indo às crónicas de 1983 a 1985, lemos que toda a desgraça foi não só previsível, como prevista. O milhão de mortos até à Etiópia – 100 mil só no Darfur –  foi previamente anunciado. Houve quem lesse os sonhos do faraó, cientistas e jornalistas às dezenas. Só não houve quem governasse.

Políticos incompetentes, sem sensibilidade ou responsabilidade social, provocam, de facto, grandes males, às vezes mesmo guerras e crises terríveis como esta no Darfur. De degradação em degradação até tudo desabar.

Ontem, em Kebkabyia, no coração do deserto, onde caíram 40 mil deslocados sobre uma povoação de 20 mil habitantes, vimos organizações internacionais e sociedade civil local a desenvolver projectos carregados de esperança, apoiados pela União Europeia: em torno da água, das árvores, da economia de energia. Básico, rudimentar, mas fundamental. Alguns pequenos “ovos de Colombo” que fazem toda a diferença.

O José da Bíblia inspirou Andrew Lloyd Webber num musical maravilhoso com um título ainda mais extraordinário: Joseph and the Amazing Technicolor Dreamcoat – à letra, “José e o Espantoso Casaco de Sonhos em Technicolor”.

Haver boa governação e garantir, como prioridade, em absoluto, a segurança da população, desarmando os Janjaweed, é indispensável para poder passar-se ao essencial: o desenvolvimento. Só assim o futuro será de sonho e em technicolor.

É esse Zé que faz falta ao Darfur: competência, responsabilidade social, planeamento, boa governação. Não há outra maneira.

Cartum, 4 de Julho de 2007

José Ribeiro e Castro
ex-Presidente do CDS, eurodeputado

PÚBLICO, 5.Julho.2007

Comentários

Mensagens populares