Venezuela, temos de chegar a tempo
Fui a primeira vez à Venezuela no Natal de 1978. Com família por lá e em Boston, juntámo-nos todos em Caracas. Foi o meu primeiro Natal da globalização. A Venezuela era, graças ao petróleo, um país muito rico e economia dinâmica, que atraía. A democracia parecia consolidada, com alternância entre democratas-cristãos e sociais-democratas: o COPEI, de Rafael Caldera, e a AD, de Carlos Andrés Perez (CAP, grande amigo de Mário Soares). Era até uma referência nas instáveis e incertas democracias latino-americanas. A influente ODCA, a internacional da democracia-cristã na América, tinha a sede em Caracas. A comunidade portuguesa era numerosa, respeitada e influente, na maioria de origem madeirense – gente feliz, muito presente no comércio e nos transportes.
Uma democracia lançada no abismo
O litro de gasolina era mais barato do que o litro de água, curiosidade
que me surpreendeu. Era uma sociedade próspera, embora com visíveis
desigualdades sociais (os “ranchitos”, favelas locais que cercavam a capital,
nas montanhas), crime violento e corrupção. O meu pai previu-me em 1978, o que
viria a ser o caracazo em 1989 (levantamento popular espontâneo, em
Caracas e noutras cidades, com saques do comércio, violentamente reprimido),
que favoreceu a queda progressiva do regime e a emergência de Hugo Chávez.
Voltei em Março de 1979, acompanhando Adelino Amaro da Costa à posse do
Presidente Luis Herrera Campins, democrata-cristão, que ganhara as
presidenciais de Dezembro de 1978. Depois, já só regressaria por duas vezes em
2004/09, como deputado ao Parlamento Europeu, em solidariedade com a oposição ao
chávismo. O sistema entrou a derrapar no fim dos anos 80; e a década de
90 seria pior e fatal. Hugo Chávez tentou dois golpes de Estado, em 1992,
contra o Presidente da República, o CAP. Seria preso, mas o Presidente caiu. Haveria
nova tentativa democrática com o outro histórico Rafael Caldera. Mas falhou
também. E o tenente-coronel Hugo Chávez alcançou o poder nas presidenciais de
1998, à frente do seu movimento pela V República, pela Revolução Bolivariana e pelo
Socialismo do Século XXI. Três grandes fracassos, em que a grandeza
proclamatória do palavreado tenta mascarar a catástrofe política, a catástrofe económica
e a catástrofe social.
Hugo Chávez fez logo adoptar nova Constituição, moldada ao regime que
quis. Abriu ao país as portas do abismo, violando as regras da democracia,
abusando das normas da economia e abalando os pilares da sociedade. Desinstitucionalizou
progressivamente o país, apoderado pelo ditador. As eleições passaram a ser sempre
contestadas, ou por manobras políticas prévias e na campanha, ou por fraude nos
resultados. Em 2018, nas últimas antes destas, Nicolás Maduro foi “reeleito”
para segundo mandato em 20 de Maio. “Eleições” marcadas por controvérsias, com
acusações de fraude e manipulação, e amplamente contestadas tanto internamente,
quanto pela comunidade internacional. Muitos países não reconheceram os
resultados. Agora, repete-se o filme, com muito maior evidência de ser
gigantesco o roubo da vontade popular. O regime agoniza e entrincheira-se no
seu castelo – um clássico.
Benito Mussolini (1883-1945)
| Hugo Chávez (1954-2013)
A Revolução Bolivariana
Chávez ainda tinha o carisma do fundador e sentido de humor. E beneficiou
da vontade internacional de o desculpar, apesar de ser um novo Mussolini,
notório fascista à esquerda, de camisa vermelha, em vez de negra, alinhado com
todos os revolucionários prestáveis, brandindo punho e verbo contra os yankees
– velha receita latino-americana para animar plateias. Valeu-lhe também – e aos
seus – a riqueza do petróleo ainda não destroçada. Porém, desde 2013, com Nicolás
Maduro, a Venezuela ficou entregue a um clown incapaz e incompetente, de
que correm vídeos com as famosas “maburradas”, um ditador feroz, sem
escrúpulos, perito em roubar eleições e perseguir e prender opositores.
A revolução bolivariana é um falhanço estrondoso. A sua mais famosa
bandeira foi também recolhida: o “socialismo do século XXI”. Só tinha de novo o
“século XXI” e esboroou-se logo no princípio. As dos séculos XIX e XX
estoiraram também (algumas com milhões de cadáveres), mas duraram mais – a
soviética durou 70 anos e picos. Ambicionou expandir-se pelo mundo, jorrando
petrodólares sobre sócios e companheiros lambe-botas, num novo
internacionalismo irmanado com a corrupção. Nos governos de Hugo Chávez e
Nicolás Maduro, a Venezuela ofereceu uma série de ajudas financeiras,
económicas e políticas a vários países da América Latina e a partidos e
movimentos políticos da sua área, além de olear convenientemente as alianças
internacionais com a Rússia, a China, o Irão e a Coreia do Norte. Até o Grupo
Wagner lá foi parar – e sabe-se como cobra caro os seus serviços. Usando o
petróleo a preços subsidiados, montou uma política de mãos largas para promover
a “Revolução Bolivariana” e construir alianças. Cuba terá recebido ajudas de 7
a 10 mil milhões de dólares anuais no período de Chávez e 2 a 3 mil milhões,
nos anos de Maduro, marcados por monumental crise económica e cambial. A ajuda
à Nicarágua terá sido de 500 a 600 milhões de dólares/ano, com Chávez, e 200 a
300 milhões anuais, com Maduro. A imprensa foi relatando também o fluxo de
ajudas generosas para o casal Kirchner na Argentina, o PT no Brasil, a Bolívia
de Evo Morales, os sandinistas na Nicarágua, o Equador de Rafael Correa, o Podemos
em Espanha, além do agilíssimo e sinuoso Zapatero. Tem sido “fartar,
vilanagem”. Chávez e Maduro tornaram a Venezuela, progressivamente, na
prostituta do comunismo internacional, bombando dólares para os seus restos,
seguidores, ramificações e aliados, incluindo franjas socialistas.
Os circuitos financeiros andaram sempre bem oleados até que a economia
estoirou – sim, os “bolivarianos” conseguiram a proeza invejável de rebentar a
outrora próspera indústria petrolífera venezuelana. Se quiser um diamante a
valer menos do que um cristal de vidro ou um lingote de ouro menos que latão, é
encomendar a um bolivariano – ele consegue.
O Socialismo do século XXI, maravilha fatal da nossa Idade
A esquerda mundial, seja a revolucionária, seja a democrática, tem uma
longa lista de êxitos a apresentar e saudar na política de esquerda na
Venezuela dos últimos 25 anos, algo de que pode legitimamente orgulhar-se. Raramente
se viu tão completo.
Os dois problemas mais sérios que já tinha há 50 anos – corrupção e crime
violento –, nenhum melhorou e ambos pioraram bastante. A corrupção é sistémica e
bate recordes, com a Venezuela a surgir como um dos países mais corruptos do
mundo: no último Índice de Percepção (2023), da Transparência Internacional, está
no penúltimo lugar de 180 países analisados, ultrapassada apenas pela Somália e
empatada com a Síria e o Sudão do Sul, tudo companhias de excelência. O crime
violento mantém-se muito significativo, nomeadamente assassinatos, raptos e
assaltos à mão armada.
A pobreza atingiu níveis catastróficos: segundo a ENCOVI, organismo que
segue as condições de vida, cerca de 96% da população vive na pobreza e,
aproximadamente, 80% em pobreza extrema. Os 10% mais pobres não têm mais de 10 dólares por mês, 33
cêntimos por dia! O colapso económico é o factor central para esta pobreza
generalizada.
A maravilha fatal da
nossa Idade: Socialismo do século XXI
A inflação, tradicionalmente alta na Venezuela, disparou para números
loucos a partir de 2014, com a hiperinflação a galgar, em 2018, para a
estratosfera: 130.060,20 %! Por isso, a Venezuela teve de fazer três reformas
monetárias nos últimos 15 anos, cortando 14 zeros à sua moeda: em 2008, ao
lançar o “bolívar forte”, cortou três zeros; dez anos depois, em 2018, matou o
“bolívar forte” e cortou mais cinco zeros; e em 2021, cortou mais seis zeros,
quando lançou o “bolívar digital”. Isto é, no agregado das três reformas,
100.000.000.000.000 bolívares = 1 bolívar – matemáticas maduras... Tanto valor perdido, desbaratado! É cedo para
dizer que a estabilidade monetária esteja de volta. Em 2023, a inflação ainda
foi superior a 300%. Como pode viver-se assim? Entre 2012 e 2020, o PIB da
Venezuela caiu oito vezes, para 12,5% do que era! Leram bem: caiu oito vezes em
oito anos… Uma desgraça, uma catástrofe. O país, membro da OPEP, continua dependente
de ajuda humanitária internacional para acorrer a necessidades básicas de parte
da população.
Há 8 milhões de desempregados, 29% da população total. Nos últimos anos,
a crise empurrou para a emigração 7 a 8 milhões de venezuelanos, cerca de ¼ da
população, fustigada pela hiperinflação, pelo desemprego e pela falta de bens
básicos, por altos níveis de criminalidade violenta e de repressão política e
pelo colapso dos serviços públicos, com falta de acesso a saúde, educação, eletricidade
e água potável. Só 4 milhões fugiram para Colômbia e Peru, espalhando-se os
outros por Estados Unidos, Espanha, Chile, Argentina, Brasil e Equador. É uma
crise migratória dramática, considerada uma das maiores do mundo.
Na educação, o abandono e o insucesso escolares estão em alta. Estatísticas
oficiais mostram que cerca de 20% dos adolescentes em idade escolar (12 a 17
anos) estavam fora da escola; e há indícios de as taxas de reprovação estarem a
aumentar, pesando factores como professores mal remunerados e desmotivados,
infraestrutura deteriorada, escassez de materiais didácticos e insegurança
alimentar de muitos alunos. A esperança média de vida baixou para 71 anos. E a
mortalidade infantil é 20 a 25 por 1000 nados-vivos e, até aos 5 anos, de 27 a
30 por 1000, revelando de deficiências no sistema saúde e, até aos 5 anos, desnutrição
e falta de salubridade.
A morte da esquerda democrática mundial
Maduro acaba de fazer outra vítima inesperada: a esquerda democrática.
Matou-a em quase todo o mundo: já não existe. Chávez pôde fazer o que quis e Nicolás
Maduro herdou esse privilégio, usufruindo sempre, um e outro, da amnistia geral
da esquerda mundial.
Nem a perseguição política, violenta, insistente e reiterada, abre os
olhos e solta a língua da esquerda democrática internacional. Na verdade, passou
a haver presos políticos, na Venezuela. Muitos. Contavam-se em 300, antes das
eleições de há semanas. Após as eleições e por causa destas e dos protestos
contra a fraude, o número de presos já ultrapassa os 2.000. E houve mais de 20
mortes. A perseguição tornou-se frequente e o ambiente é intimidatório. Nos
últimos 10 anos, organizações de direitos humanos contam 15.000 detenções
arbitrárias. Porém, a ordem na esquerda é: nem uma palavra! Nem aqueles números
terríveis da pobreza gigantesca, ou a emigração aos milhões de um país que se
esvazia, nada muda a quietude distraída da esquerda democrática. Também emigrou
para longe da realidade, fingindo que não vê, não ouve e… realmente não fala. A
esquerda olha e assobia. Nem uma palavra!
O embaraço é tão grande que alguns falam, agora, de “repetir as
eleições”. Porquê “repetir”? Porque perderam?
Os labirintos da corrupção têm certamente a ver com isso: por estes dias,
José Dirceu – esse mesmo, o do “mensalão” – destacou-se a apoiar a reeleição de
Maduro. Lula calou-se – antes das eleições, ainda fez uma advertência, mas
calou-se, faz de conta que não vê, é cúmplice. Por que está Lula calado? Ainda tem,
diante do sofrimento dos venezuelanos, alguma noção de liberdade e democracia? Da
vizinha Espanha, viajou Zapatero a carimbar o roubo das eleições, sem ponta de
vergonha, enquanto Pedro Sanchéz e o seu governo não vão além de pedirem a
publicação das actas das eleições, o “quanto antes” – já vão passadas quase três
semanas… Em Portugal, também não ouvimos uma só palavra do secretário-geral do
Partido Socialista, nem da líder parlamentar – pode dar-se até o caso de Pedro
Nuno Santos e Alexandra Leitão nunca terem ouvido falar da Venezuela, nem
saberem onde fica. Se calhar… Por sinal, também por lá andou a economia
socrática, com os grandes heróis que foram o computador Magalhães e o famoso
pernil, além de uns bónus para construtoras. Foram anos grandes de abundante “prosperidade”
a circular entre Portugal, Brasil, Angola e Venezuela – aí se perdeu, corrompeu
e afundou o nosso sistema bancário. Foi “fartar, vilanagem”.
Passando em revista os últimos anos da política e do estado da
democracia, saltam à memória o acontecido com Trump e o Capitólio e com
Bolsonaro e os Três Poderes em Brasília. Todas as vigorosas condenações estão
certas: são crimes inomináveis e selvajarias inqualificáveis. Mas por que se
cala a esquerda diante do inominável e inqualificável que, já há três semanas,
se passa na Venezuela, com Maduro a assaltar o Palácio que perdeu e estar a
roubar uma eleição, em directo e ao vivo, com descaramento absoluto e todos nós
a ver? Maduro não está a ameaçar fazê-lo. Maduro está a fazê-lo. Como se
explica a cumplicidade da esquerda? Por quê?
Quem está com os venezuelanos, ao seu lado?
Mas não é só a esquerda. Há outros partidos mainstream que também
não fazem o que é exigível. Ao que estamos a assistir no Ocidente e nos nossos
países é à decadência da cidadania, ao esvaziamento dos partidos e à morte da
política.
Custa-me não ver cidadãos na rua, mobilizados pelos partidos políticos,
com veemência, a manifestar-se contra a ditadura venezuelana, a exigir a
exibição e verificação das actas eleitorais, a solidarizar-se com os cidadãos
da Venezuela, a reclamar a libertação dos presos políticos e o fim da
repressão, a impor aos organismos internacionais missões de observação. Já vi
isto acontecer com os ucranianos, com os judeus e, agora, também com os
venezuelanos. Estamos a tornar-nos uma sociedade que não presta. Sim, a rua tem
muito significado. A rua tem peso. A rua conta. Como podemos ser tão
indiferentes?
Tenho seguido nos últimos dias algumas figuras de democratas da Venezuela.
Um homem tão sereno, quanto corajoso, o novo Presidente Edmundo
González Urrutia, realmente
eleito com 7.303.480 votos, quando estavam contadas 25.073 actas digitalizadas, 83,5% do total. María Corina Machado, uma mulher extraordinária e líder de primeiríssima água – passou à
clandestinidade desde o dia 7 e está escondida, com aparecimentos pontuais. O
ex-governador Williams Dávila, sequestrado pela polícia de Maduro,
foi internado no hospital em estado crítico, onde continua sob sequestro ilegal
e apartado da família. E María Oropeza, uma jovem mulher, bravíssima,
coordenadora da oposição no Estado Portuguesa, que relatou, em directo, a sua
própria detenção, na noite de 6 para 7 de Agosto, não se sabendo onde está, o
que estão a fazer-lhe e como está.
[CLIQUE AQUI para ver o assalto à
residência e a captura – veja até ao fim, são 2’ 18”]
Amanhã, dia 17 de Agosto, dia da jornada mundial convocada, procurarei saber deles. Espero
que, no fim, tudo acabe bem. Mas é preciso lutar.
Aqueles que somos livres temos de lutar por quem não é. Haverá algum
sítio em Portugal, onde possamos manifestar-nos? Com tantas ligações que temos
à Venezuela, com tantos que tiveram de voltar e tantos que para cá fugiram,
como pode ser que não mexamos uma palha?
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
OBSERVADOR, 16.Agosto.2024
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