Desporto escolar: um novo conceito estratétigo

Com a próxima publicação do Decreto-lei sobre a Educação Física e o Desporto abre-se uma nova etapa para um segmento decisivo do desenvolvimento desportivo nacional e, quiçá, se todos quiserem, ajudarem e insistirem, um novo ciclo para o próprio desporto português. Criam-se o Gabinete de Educação Física e Desporto Escolar e o Conselho Nacional do Desporto Escolar e consolidam-se, na base, como no fundamental do sistema, o Núcleos de desporto Escolar em cada escola. 

A generalização desportiva

O desenvolvimento desportivo de qualquer país pode aferir-se em dois parâmetros principais: por um lado, o nível de rendimento desportivo enquanto tal ( a "qualidade" dos resultados desportivos, em sentido estrito); por outro lado, o grau de generalização desportiva (a "quantidade" de prática desportiva, em sentido estrito). Note-se, aliás, que o uso dicotómico assim feito das expressões "qualidade" e "quantidade" é muito discutível, criticável e traiçoeiro - é que, na verdade, também há questões de qualidade (e não são poucas) no desporto que não é dominantemente orientado para o rendimento; assim como não é de todo indiferente a quantidade dos que praticam desporto-rendimento. Todavia, feita esta prevenção inicial e eliminado, desde já, o falso uso contraposto daqueles termos, julgo que eles servem, ainda assim, para ilustrar boa parte do fundo daqueles dois rumos - um rumo, qual é o "record"?; outro rumo, a excelência do resultado; outro rumo, o número de praticantes.

A perspectiva dominante da Constituição Portuguesa é seguramente a segunda. O art.º 79º, n.º1 ("Todos têm direito à cultura física e ao desporto") aponta claramente na linha de uma política que é comum designar-se de "desporto para todos". Essa orientação não é, aliás, única no mundo e está bem acompanhada noutros países europeus e em documentos internacionais de responsabilidade da UNESCO e do Conselho da Europa, com destaque para a Carta Europeia do Desporto para Todos emitida por este último Conselho.

Perguntar-me-ão: o que tem isto a ver com o desporto escolar? Tem tudo.

De facto, o reconhecimento constitucional do privilégio de uma política de acesso a todos ao desporto comporta inúmeras consequências e uma delas é a de, por assim dizer, um mandato programático de valorização do desporto escolar.


"Desporto para todos". Como é?

Certo que não é só do desporto escolar que se trata; mas é muito do desporto escolar que importa.

A meu ver, o conceito constitucional de política desportiva, pondo o acento tónico na generalização, releva da conjugação de várias ideias - seguramente a de uma ideia pura estritamente desportiva; mas também de muitas outras ideias entrelaçadas e co-envolvidas: o desporto como acto educativo; o desporto como factor de saúde; o desporto como fonte de qualidade de vida; o desporto como fenómeno cultural; a incidência do desporto na política da juventude.

E, ao mesmo tempo, o conceito constitucional de política desportiva, pondo o acento tónico na generalização, comporta algumas consequências típicas para a orientação do futuro no desporto nacional:

- primeiro, a valorização clara do desporto escolar, quer pela já aludida componente educativa e de juventude, quer porque é na idade escolar que se enraízam, se educam e se potenciam os hábitos que se prolongam pela vida fora;

- segundo, a importância crescente do desporto nas autarquias locais, não só pelo peso próprio das autarquias (que deve ainda aumentar) nos domínios da escolaridade e da vida educativa, mas também porque, afinal, são as Câmaras e as Freguesias que criam, ou não, espaços e condições para que todos tenham acesso ao desporto nas suas comunidades de residência;

- e, terceiro, a reavaliação e redinamização da política de desporto e trabalho que, longe de conceitos corporativistas, valorize a prática desportiva junto das empresas e das universidade de serviço público como ocupação comum e corrente dos tempos de lazer, potencie o uso comunitário das infra-estruturas (quer elas tenham sido construídas de raiz nas comunidades de ensino, de residência ou de trabalho) e dê um novo sentido útil à sequência saudável dos bons hábitos que hajam sido fomentados, acarinhados e construídos nas escolas.

Nestes três pilares - escola, autarquia e trabalho - se fará uma nova política desportiva para Portugal que, assim, chegará verdadeiramente a todos.


O trabalho do Governo

Fica, nessa medida, verdadeiramente situada a valência de desporto escolar e, mais do que isso, a sua potência estratégica e a sua eficácia multiplicadora.

Mas importa também saudar o trabalho feito por este Governo, nesta sede, não tanto por banal espírito apologético, mas porque importa reter e resguardar o que foi feito. Não se fez tudo; mas é importante sobretudo que, no futuro, não se estrague o que já foi feito.

O Governo reviu a política e o modo de gestão do parque desportivo escolar - que, apesar de tudo e das suas enormes carências, ainda é maior e o mais valioso do País - e colocou-o aberto ao serviço da comunidade. O Governo fez clarificar, nomeadamente na Lei de Bases do Sistema Desportivo (depois, de, ainda, em 1986, a Lei de Bases do Sistema Educativo), a doutrina quanto ao desporto escolar. O Governo regulamentou, enfim, em sede de Decreto-lei, a orgânica e o financiamento do desporto escolar. O Governo ainda soube, entretanto, redinamizar, na base de despachos provisórios, a prática concreta e efectiva do desporto escolar, que, partindo da "estaca zero" herdada em 1987, já abrangeu, só nos ensinos preparatório e secundário, mais de 75.000 jovens em 1989/90, pensando-se num crescimento de 30 por cento para o corrente ano lectivo de 1990/91. E o Governo, por último, relançou com grande dinamismo e em colaboração com as autarquias locais, ao abrigo do Programa RID, a construção e o melhoramento das infra-estruturas desportivas escolares, que um despacho infeliz quase paralisara por completo há cerca de dez anos.


A batalha dos recursos

E, enfim, investiu-se a fundo na batalha decisiva dos recursos. Em tudo, tem que haver recursos: recursos humanos, recursos materiais (no sentido do que está construído); e recursos financeiros (no estrito sentido do numerário, seja para investimento, seja para suporte de actividades).

Em tudo isto, o desporto escolar é ainda muito carente - e chega até a ser uma vergonha nacional. Nos curtos anos que tive desta experiência, o testemunho que levo e o sinal que posso dar é o de que é no juízo decisivo e na opinião final de quem tem que opinar ou que decidir sobre a repartição (sempre difícil) dos recursos (sempre escassos) que se afere quem é amigo ou inimigo do desporto escolar.

Ora, este Governo (e o Totobola já existe desde os idos anos 60) teve, pela primeira vez, a coragem de, no Decreto-Lei que vai publicar-se, inscrever uma verba fixa mínima de 15 por cento das receitas provenientes das Apostas Mútuas para o Fundo de Fomento Desportivo, em benefício do desporto escolar.

É a primeira vez que se o faz - e, todavia, para quem sabe ou quem convive com o terreno é uma viagem de anos-luz e um triunfo inacreditável. Nunca tinha sido feito.

Ora, esta questão dos recursos financeiros e da sua repartição relativa é crucial. Existe um debate surdo sobre isto e pode vir a haver ainda uma disputa. Haverá os que acham que é muito. Eu estarei sempre do lado dos que acham que 15 por cento é bom, mas que é ainda muito pouco. É que assim haverá para o desporto escolar uma política em que não sejam "mais as vozes, que as nozes".

A política desportiva da Constituição, do país e da comunidade portuguesa é do ensino; não o mero espectáculo. Até porque, em termos de recursos financeiros públicos, o espectáculo paga-se; o ensino é preciso pagá-lo.


José Ribeiro e Castro
Jurista | Assessor do Ministro da Educação

EXPRESSO, 16.Fevereiro.1991

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