Dois em um


Ao fim de algumas reuniões oficiais, fica-se com a ideia de termos estado em dois países no Sudão: o que vimos e as pessoas nos contaram de sofrimentos, dificuldades e inquietações; e o que as autoridades procuraram descrever. È mais económico: duas paisagens numa só viagem – 2 em 1.

Foi assim no encontro em El Fashir com Idriss Abdalah Hassan, wali (governador) do Shamal Darfur, o Estado do norte do Darfur. Foi menos assim, curiosamente, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, com o secretário permanente, Mutrif Siddig. E a tampa saltou por completo na Assembleia Nacional com dirigentes do Partido do Congresso Nacional, o partido dominante.

A recepção começara em grande cordialidade nas boas vindas de Ahmad Ibrahim Al Tahir, o presidente da Assembleia Nacional, acompanhado de líderes de comissões parlamentares. Passados à sala de reuniões, já sem o presidente do Parlamento, o caldo entornou-se. Ao debatermos a insegurança que sentíramos nas populações e organizações humanitárias, fiz uma pergunta: se, tendo sido atacados no passado por janjaweed, se sentiriam seguros se os vissem transformados em forças regulares de “defesa civil” e guardas-fronteiriços. E falei da doutrina “Responsabilidade de Proteger” das Nações Unidas, que, mesmo que com AMIS ou a futura “força híbrida”, nunca apaga as responsabilidades que são sempre sobretudo do Estado soberano.

A linha dura do partido de al-Bashir mostrou-se na boca do anfitrião, o presidente da comissão de Negócios Estrangeiros. Que era tudo uma conspiração internacional, montada pelo Ocidente. Fez paralelos a torto e a direito. Que as coisas no Darfur não eram diferentes da ETA ou do IRA. Invocou a invasão do Iraque e a NATO no Afeganistão. Atacou o Tribunal Penal Internacional. Garantiu já não haver insegurança. Que os deslocados e refugiados estavam retidos nos campos pelas organizações humanitárias. Que os membros destas estariam desempregados se não fosse a crise no Darfur. Que é tudo invenção e espectáculo de jornalistas. Que não há os mais de 2 milhões de deslocados. Bush ficou com as orelhas a arder. A Europa não foi melhor tratada.

Borrell, chefe da delegação, respondeu. Espanhol, não gostou do paralelo disparatado com a ETA. E defendeu a honra dos humanitários, cujo trabalho e risco testemunhámos. O alemão Schmidt, dos “Verdes”, subiu a parada, inquirindo pelos rendimentos do petróleo e perguntando por transparência em benefício da população. O presidente da comissão de Negócios Estrangeiros explode em gritaria e ensaia a intimidação. A reunião podia ter acabado aí. Borrell tinha-o ameaçado. Só a experiência de um deputado sudanês, antigo embaixador nos EUA, conseguiu esvaziar a tensão para a reunião prosseguir noutro tom.

A negação foi durante muitos anos a posição oficial do Sudão. Não pode continuar aí depois de todo o caminho já percorrido em acordos e conversações que envolvem a comunidade internacional e têm que comprometer verdadeiramente o governo do Sudão. A crise não teria assumido as proporções que assumiu, se não fosse a persistente negação. Ainda hoje falam só de 9 mil mortos, quando todos os documentos internacionais falam de 250 a 400 mil.

O censo dos sudaneses não é certo, mas os 3 milhões de deslocados e refugiados, no Darfur e no Chade, não podem ser disputados – estão registados nos campos e cidades pelo socorro humanitário e assistência alimentar.

A insegurança generalizada tão-pouco merece dúvida. Um ano depois do acordo de paz, o quadro piorou para muitos: já não há os massacres de 2003 e 2004, mas o cessar-fogo não existe, não foi dado um só passo no desarmamento, a brutalidade sobre mulheres continua, o banditismo apareceu, os ataques sobre humanitários agravam-se, a AMIS teve 18 mortos, há bombardeamentos aéreos recentes. Não foi a CIA que nos contou. Foram deslocados e refugiados. Em Kebkabyiah ouvimos de um deles a palavra proibida: genocídio. Foram os comandos da AMIS, ou os membros das agências da ONU e de organizações não-governamentais no terreno. Foram deputados da oposição e activistas sudaneses dos direitos humanos e pela paz a denunciar-nos novas violências recentes, incluindo bombardeamentos aéreos.

A verdade pode ser debatida e deve ser dialogada. Não pode ser negada. Há questões postas pelo governo sudanês que devem ser levadas em conta: que a atenção concentrada no Darfur não pode desfocar a atenção do Sudão Sul, onde o conflito foi mais violento e prolongado; ou que a comunidade internacional não pode “apaparicar” os rebeldes que não assinaram a paz.

Mas continuar ou retomar a negação só alimenta a desconfiança, inimiga da paz. A verdade não pode ser negada.

O Sudão é um país em transição. O wali de Gharb Darfur, Abul Gasim Imam Al-Haj, um rebelde integrado há meses, que nos recebeu em El Geneina, apareceu nos jornais, no dia a seguir, a reclamar que o Governo do Sudão devia entregar ao TPI os dois que este acusou – um deles, por ironia, o ministro dos Assuntos Humanitários, Ahmed Aroun, ministro do Interior quando o conflito estoirou em 2003.

Essa transição, que será ainda longa, tem enorme sensibilidade e é, como sempre, armadilhada por contradições. Para bem do Darfur e de todo o Sudão, é importante que os acordos de paz, no leste (o EPA), no sul (o CPA) e no oeste (o DPA) não descarrilem por completo.

A dualidade real que também vimos foi a de um país que quer democracia e ainda esbraceja para se livrar da ditadura. Como nos disse Hassan el-Turabi, líder do partido Congresso Popular, “só a democracia trará paz e segurança”. E confiança, acrescento eu.

Cartum, 5 de Julho de 2007


José Ribeiro e Castro
ex-Presidente do CDS, eurodeputado

PÚBLICO, 7.Julho.2007

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