O efeito rosa “shocking”


Há quatro anos e meio, em 1991, à saída de um novo revés eleitoral que levava Cavaco Silva à segunda maioria absoluta, António Guterres comentava, sibilino: “Estou em estado de choque!” Rezam as crónicas que foi a partir daí que Guterres arrancou, em passada certa, rumo ao triunfo total: primeiro, disputando a liderança socialista, que conquistou ao, então, destronado Jorge Sampaio; e, depois, conduzindo os socialistas a vencer “rounds” sucessivos - as autárquicas, as europeias, as legislativas e, agora, as presidenciais.

Passados estes anos, os papéis inverteram-se por completo. Quem está em estado de choque é o PSD. A pronta demissão de Fernando Nogueira é sinal disso mesmo.

Mas os paralelos acabam aqui. É impossível dizer se, como será aspiração dos seus militantes e dirigentes, a profunda mudança que a saída de Nogueira proporciona ao PSD em “estado de choque” será augúrio seguro de um novo trote ou galope laranja, pausado e vitorioso, de retorno ao poder.

O PSD é um partido que sai de dez anos de exercício do poder sozinho e, com o decurso arrastado do tempo, de um poder que passou de apenas “PSD sozinho”, primeiro, a “PSD solitário”, depois, e, para muitos, a “PSD isolado” ou até “PSD autista”, no fim. Somando ainda os tempos da Aliança Democrática e do Bloco Central, o PSD sai de um período longo de 15 anos contínuos no poder.

O jejum, depois de tão prolongada permanência no poder, pode inspirar ou fenómenos de impaciência e nervosismo que precipitem calendários, ou crises de pessimismo endémico que abalem ânimo e mercadejem convicções. Num caso e noutro, a instabilidade continuaria a reinar num partido que, afinal, se revelaria incapaz de refazer-se do choque e que, nessa medida, seria inábil para perfilar-se de novo como alternativa nos momentos decisivos.

Cabe recordar como a caminhada de Guterres esteve longe de ser fácil, sobretudo dentro do seu partido. Ao longo dos quatro anos do processo “guterrista” sempre ascendente, foram inúmeros os oráculos luminosos que, dentro do próprio PS, asseguravam ciclicamente que Guterres não tinha “suficiente liderança”, ou que Guterres não tinha “o perfil”, ou que Guterres não tinha “a estratégia”, ou que Guterres “não ia lá” ... E isto - note-se - mesmo depois de o PS haver ganho as eleições autárquicas e as europeias, com resultados superiores não só aos recebidos em 1991, mas também aos que alguma vez tivera na sua história! O que não se teria dito se, ao longo desse processo, Guterres tivesse experimentado um revés propriamente dito, um acidente de percurso que fosse....



É este tipo de nervosismo frenético que poderá também repetir-se no futuro próximo do PSD. E ser-lhe fatal, vitimando sucessivas lideranças, confundindo estratégias e debilitando ânimos e mobilizações. Salvo se a nova liderança tiver o ânimo dirigente suficiente não só para apontar o novo rumo, mas também para resistir, sem quebras, nem azedumes, ao criticismo interno que, apenas saudoso das glórias passadas e delas inteiramente cativo, não deixará de ser verrinoso a cada revés intercalar e mesmo a cada sucesso “insuficiente”.

Não é possível recusar-se ao tempo e ao modo do gesto de Fernando Nogueira a dignidade e a nobreza de que se reveste. E, além disso, fazendo jus ao instinto que tem sido um valor político do PSD, o seu grande sentido de oportunidade. Assim se poupou - e ao seu partido - a um desgaste e a um suplício que careciam de qualquer sentido útil e para que não dispunha nem de paciência, nem de ânimo.

Mas, ao fazê-lo, Nogueira cognominou-se também, ele próprio, mais como “o último dos Moicanos” e menos como “o primeiro dos pioneiros”. É o que se extrai das suas próprias palavras, quando sublinhou a entrada num novo ciclo e se remeteu ao que findou. Assim se retratou como o gestor de negócios da última moção do “cavaquismo” - o eterno e fiel “número dois”, afinal. Qualificou-se como o último do tempo antigo, talvez para abrir caminho - ver-se-á - ao primeiro do tempo novo. Por isso mesmo, como já foi notado, o Congresso da sucessão - Nogueira “dixit” - não foi, afinal, o de Fevereiro, mas será o próximo. Talvez...

Bem vistas as coisas, desde Sá Carneiro que o PSD não dispõe de um líder ajustado aos tempos que estão para vir - um líder “de tribuna” e todo-o-terreno. Um líder capaz não só de liderar a partir do poder, mas de conduzir o partido em nome de um projecto, ao serviço de ideias, seja no poder, seja na oposição.

Por muito que a memória de Cavaco Silva seja da maior relevância, já que conseguiu, na verdade, o que nunca ninguém antes dele alcançara, a verdade é que tanto Balsemão e Mota Pinto, como o próprio Cavaco, foram líderes a partir do poder e em boa medida por causa dele. A muitos será até difícil imaginar o próprio Cavaco Silva, pese todo o carisma capitalizado, a liderar o partido a partir “da bancada”, circunstancialmente reduzido apenas ao discurso e condenado a usar - ele! - os instrumentos de combate político que tanto repudiava e sobre que exprimia abundante fastio.

Num país que, ávido de paz civil e da tal “estabilidade”, o acolheu de braços abertos, boa parte do discurso “cavaquista” era centrado numa ideia dominante, filha única do poder: “Nós trabalhamos e deixamos obra - eles só falam. Nós fazemos - eles só sabem dizer mal.”

Agora, os papéis mudaram. E será penoso que o PSD pudesse vir a ouvir de Guterres os mesmíssimos remoques e o mesmo discurso, em nome dos mesmos temas favoritos: a “estabilidade” e a “obra”.



O novo ciclo começou, afinal, sem grandes ideias novas. Nem Guterres, nem Sampaio fizeram grande gala nisso nas suas caminhadas, sendo muitos até os que se questionaram a respeito de que mudança é que na verdade se tratava, além da do pessoal político. Quer Guterres, quer Sampaio, surfando na crista da onda rosa, pouco mais fizeram do que contrapor ao quadro anterior ideias como “diálogo”, “consensos”, “tolerância” e outras noções do estilo.

Diga-se em abono da verdade que, em política, as questões de ideias não se põem apenas a respeito dos fins e do rumo, mas também a propósito dos meios e do método. E diz muito - diz mesmo muito - do estado a que um sistema e uma sociedade chegaram quando um programa político feito basicamente à volta daquele tipo de ideias chega para arrastar multidões e vencer eleições sucessivas.

Mas, passando adiante deste pormenor importante, o país e os cidadãos são capazes de precisar de um pouco mais - e de o merecer.

Além do tal ânimo dirigente, de tenacidade e perseverança e da capacidade de retoma do combate político em si próprio, a nova liderança do PSD tem um outro desafio ou oportunidade. É o de dar resposta a outra questão: a das ideias - a das ideias genuínas, a das ideias convictas, a das ideias propriamente ditas. Será? Ou penderá antes para tentações menos exigentes, como o mata-borrão tecnocrático ou a suave ambiguidade oscilante do binómio PPD/PSD?



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 20.Janeiro.1996

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