É p'ró menino e p´rà menina


A questão dos jobs, e dos boys para os ditos (que inclui também obviamente as girls, ou não fosse o PS o partido dito da paridade), está a tornar-se num ridículo monumental. Sobretudo pela persistente obsessão. Mancha-se de ridículo o PS e cobre-se de ridículo a própria vida política portuguesa, que rodopia desde há semanas à volta do tema.

António Guterres não o desejaria por certo. E o país não o merecia tão-pouco. Há coisas mais importantes a discutir e temas mais relevantes a decidir do que aquilo que, na linguagem básica, o povo chama "os tachos" - ainda quando rigorosamente o não sejam.

Mas o primeiro-ministro terá aqui, sem dúvida, uma prova de fogo importante, depois do braço-de-ferro que se vem mantendo entre círculos do Governo e sonoras instâncias do aparelho socialista. Uma prova de fogo que poderá constituir um teste marcante, ao mesmo tempo, à sua palavra como primeiro-ministro e à sua autoridade corno líder, numa questão que - esta - nunca será atalhada pelas simples metodologias do "diálogo" e dos "consensos". Há que lhe pôr um termo rapidamente - acabar com o discurso a duas vozes.

O problema é absolutamente caricato, mas corrosivo como ácido. De tal modo que, ou este bramar inconformado do PS contra o seu próprio Governo acaba depressa, ou, além das mossas no seu próprio prestígio, acabará por dar-se também mais uma violentíssima machadada no sempre crítico e periclitante prestígio do sistema político.

O grito que, a avaliar pela comunicação social, percorre as sedes socialistas de norte a sul tem um ponto de interrogação, indignado e ansioso: "Então ... e nós?" E a resposta por que ansiavam aparentemente só poderia ser urna: "Calma! Não empurrem! Chega para todos ... É p'ró menino e p'rà menina!"

Há outra perspectiva para entender esta querela. Com os partidos da oposição à direita numa fase semi-KO, lançou-se o PS à tarefa de encabeçar a oposição ao seu Governo e à sua própria maioria. Não foram as 40 horas, não foi a Bósnia, não foi o Orçamento ... vamos aos jobs! De que maneira o fez! Se alguém quisesse abalar o prestígio dos socialistas, dificilmente acharia forma tão grotesca e demolidora quanto esta. E, se alguém quisesse minar as bases de simpatia pública pelo Governo de Guterres e pôr termo de vez ao "estado de graça", seria impossível achar modo tão insidioso e desgastante para o conseguir. Poderá haver teses conspirativas a este respeito - tratar-se-á de alguma (ou várias) das inúmeras famílias socialistas a fazer guerra à "linha Guterres". O mais óbvio, contudo, é que não haja maquiavelismo algum - é a própria natureza das coisas a expor-se, crua, e a falar por si.

Em si, a questão podia não ter interesse nenhum. E não tem. O que é que me interessa que vá a Gertrudes ou que vá o Norberto, o Fagundes ou a Beatriz? Para a ARS, o CRSS, a DRE, a CCR, ou o XPTO? Mas a forma grosseiramente sôfrega e absolutamente irresponsável corno o aparelho rosa abraçou a questão, ampliou a querela e vociferou ultimatos tornou o problema numa questão política central.

A verdade é que Guterres tomou compromissos claríssimos a este respeito. Até de inverter os hábitos e de ampliar, em termos muito extensos, o regime de nomeação de chefias por concurso público - com algum excesso, mas comprometeu-se. Poderia talvez "arredondá-los" com o tempo. Agora, não pode mais. A ironia está exactamente aí: o murmúrio ruidoso dos apparatchiks rosa não alivia, antes agrava, acentua e torna mais exigente o compromisso de Guterres. Em que ficamos, então?

É evidente que as vozes reclamantes não dizem, nem reconhecerão jamais, que esta é uma vulgar "corrida aos tachos" ao modo de uma carga da brigada ligeira. O que se trata - dizem - é de assegurar, por um lado, as melhores competências e, por outro lado, a maior sintonia com o "programa de mudança" do Governo socialista. Só que estas palavras "competência" e "sintonia" têm dado um pouco para tudo; e, com a música já em altos berros, a única coisa que se vê e ouve é o hino vernáculo da cavalaria rosa ao assalto do aparelho de Estado. Tristíssima figura!

Alguns dos reclamantes não deixarão de ter alguma razão. Desde logo, um dos mitos do cavaquismo - de mãos dadas com algum eanismo residual - foi o das "competências técnicas", havidas como quimicamente puras, assépticas e incontrovertíveis. Ora, a verdade é que os mais competentes para as coisas públicas não estão necessariamente entre aqueles que se abstêm da política; frequentemente, pelo contrário. Entre aqueles, trata-se muitas vezes de carreiristas frios, de yuppies sem alma ou de fariseus sem credo, encartados de "técnicos dirigentes", que costuram meticulosamente as suas carreiras, nos degraus da burocracia ou na cagança da dita "gestão"; e que, por sinal, vão exibindo as mais das vezes, em ar de gozo, um desprezo de soberba pelos colegas de ofício que, igualmente competentes - ou até mais -, também dão civicamente algum do seu tempo e dedicação à actividade política nos aparelhos partidários ou exercitam sonhos colectivos noutras esferas de compromisso social e cívico. E é compreensível que, depois do "fartote laranja", possa irritar muito ver os tais mesmos "técnicos dirigentes" travestirem-se, num ápice, de cavaquistas em guterristas e apresentarem-se ao novo poder, tão servis quanto interesseiros, com os mesmos
dossiers, as mesmas estatísticas, as mesmas informações de serviço, os mesmos estudos, as mesmas pastas, os mesmos projectos, os mesmos relatórios, zelosos e prontos, em transumância de rebanho, para continuarem a "dirigir tecnicamente" e ... "sempre às ordens, porque V. Exª manda".

É facto que a Administração Pública ganha muitas vezes com alguns enxertos cíclicos e pontuais de autenticidade humana e de entusiasmo cívico, para não ficar possuída por completo do cinzentismo pegajoso - molusco, mas manipulador e alapado - dos Yes Minister, atentos, veneradores e obrigados, tão hábeis nos labirintos processuais, quanto ineptos para qualquer realização social e incapazes de uma só dádiva de si mesmos.

Mas a verdade também - sempre - é a de que cartão de partido ou motim de plenário distrital ou concelhio não são título legítimo de competência e de capacidade administrativas - nunca. É absolutamente intolerável porque necessariamente perverso, que as carreiras públicas se giram na base única ou sequer predominante das fidelidades partidárias, porque o mesmo é dizer do compadrio e do clientelismo.

Seja como for, uma coisa é aquele tipo de reflexões; outra, bem diferente, é a cavalgada frenética e insana ao assalto dos ducados, dos condados, dos baronatos, das alcaidias e das mordomias, que acorda caricatas memórias medievais do direito de conquista (e, já agora, de pernada ... ) ou mesmo ecos corsários da partilha do saque.

O aparelho socialista perdeu, de facto, o bom senso elementar. Foi temerário afrontar, assim, os critérios de escolha e as regras de decisão daqueles que, no Governo da sua própria maioria, têm a exacta e exclusiva responsabilidade de definir os primeiros e de velar pelas segundas. Escrupulosamente. Por isso, afinal, serão julgados - os governantes, não a "freguesia".

Sejam quais forem os fundamentos casuísticos aqui ou ali e seja qual for o desfecho desta questão, o PS já a perdeu amplamente. Com os termos em que a fez evoluir, perdeu em imagem e em crédito de seriedade e de decência. Tamanho é o dano feito - e consumado no eco público - que, decida doravante o Governo como decidir, a imagem e a fama que ficam para a opinião pública são a de uma clientela a bramar pelo banquete ou, ao menos, por ... umas "sandes".

Muitos dos danos são irreversíveis. A troça generalizada e a gargalhada contida pelo país inteiro, nos cafés, nos corredores e nos transportes, já estão estabelecidos: "É fartar vilanagem!"

Cinco meses depois de Outubro, cinco meses depois de haver ganho contra a "maioria laranja", por causa nomeadamente dos seus alegados "compadrio", "clientelismo" e "arrogância", aí estão estes outra vez no seu pulsar mais genuíno, trôpego e ridículo. Tristíssima figura! ... Pobre país.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 17.Fevereiro. 1996

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