Velhas ideias novas
Regionalizar e reformar o sistema eleitoral. Só isto dava um manifesto político, estrondoso e de combate. Estas são, na verdade, as reformas mais profundas que poderão fazer-se do sistema político e administrativo em que vivemos. Afinal, há ideias e elas aí estão.
E foi dos partidos com menor representação parlamentar que veio, para já, a reposição de iniciativas concretas na primeira linha do debate das “reformas estruturais”. O PCP apresentou novo projecto para a regionalização. O PP avançou com uma proposta de revisão do sistema eleitoral, dentro do seu projecto de revisão da Constituição.
As duas matérias têm, aliás, muitos traços comuns.
Primeiro, são de ordem estratégica, no sentido de que qualquer delas comporta múltiplos e variados efeitos no real funcionamento do Estado e na própria dinâmica da sociedade ou na relação desta com a coisa pública - não há mesmo muitas outras que possuam tamanha valia e potência estratégica, global e reformista.
Segundo, nenhuma tem, afinal, grande novidade em abstracto - qualquer delas respeita, antes, a questões mais do que debatidas entre nós, embora sucessivamente adiadas ou postas de parte.
Terceiro, ambas visam responder a uma comum preocupação de aproximar os cidadãos elo poder e de romper com dois tipos perversos de centralismo: o do poder administrativo e o dos aparelhos partidários.
Quarto, ambas vão, por isso, no sentido de mexer profundamente nos mecanismos do poder e na forma como este concretamente se atribui e distribui - e aqui é que residem, afinal, as verdadeiras dificuldades e os obstáculos contínuos deduzidos contra o seu avanço...
E, quinto, ambas correm o risco de ficar, em Portugal, como as maiores mentiras do fim do século, a menos que os partidos, nesta legislatura - que vai exactamente até 1999 -, entendam, por fim, empreendê-las e abrir efectivamente um séc. XXI diferente.
E, quinto, ambas correm o risco de ficar, em Portugal, como as maiores mentiras do fim do século, a menos que os partidos, nesta legislatura - que vai exactamente até 1999 -, entendam, por fim, empreendê-las e abrir efectivamente um séc. XXI diferente.
A regionalização está prevista na Constituição desde 1976. Mas, 20 anos depois (!), as regiões administrativas, “criadas”, ainda não existem e os distritos, “extintos”, aí estão ainda cheios de saúde... “transitória”. E, todavia, as razões que estiveram na origem da sua previsão não cessaram de fortalecer-se.
Na década de 70, já o país se ressentia de enormes desequilíbrios. Toda a gente o afirmava. Pois bem... 20 anos depois, apesar dessa generalizada consciência, o problema está bem pior. O país “pendurou-se” ainda mais na faixa litoral, a densidade das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto aumentou, o interior desertificou-se ainda mais, o ordenamento territorial é mentira, a qualidade de vida deteriorou-se mais, o peso dos investimentos públicos necessários a responder ao “aperto” nos grandes centros sobrepovoados aumentou, em claro detrimento das zonas mais carenciadas no seu desenvolvimento básico... e por aí fora.
Do lado do sistema eleitoral, o folhetim é parecido. Desde a década de 80 que se apontam continuamente os malefícios do actual sistema: a funcionalização da representação parlamentar, o afastamento entre eleitores e eleitos, os deputados “pára-quedistas”, a “governamentalização” do sistema, etc. Mas, 15 anos depois do início dessas constatações, tudo está na mesma e aí estão os partidos maiores defrontando-se com a evidente esclerose dos seus aparelhos, mas recusando-se a mexer a sério no miolo do problema.
Choraram-se muitas lágrimas de crocodilo pelos “custos da interioridade” e pelos “vícios da partidocracia”. Mas, na prática, não se foi além de leviana hipocrisia e de reiteradas reservas mentais.
A iniciativa dos comunistas vem rever a sua posição anterior quanto à divisão das regiões. Aliás, a anterior era uma bem achada originalidade não original: a falta de originalidade estava na adopção, então, das fronteiras dos distritos; a originalidade estava em que esta proposta podia ter sido, de facto, a forma de quebrar o “enguiço” da divisão das novas regiões (e da definição das suas capitais), que tem sido um dos atoleiros em que a questão tem sido hipocritamente manipulada e sucessivamente entretida, para adiar. O PCP vem , assim, propor já uma divisão regional coincidente com o fundo mais tradicional do país das “províncias”, temperada embora com uma consideração autónoma das concentrações metropolitanas acumuladas na Grande Lisboa e no Grande Porto.
É uma excelente base de partida, coincidente com ideias que o PS também defendeu e com o ponto de vista que no CDS democrata-cristão se sustentava também a este respeito. As regiões, fazendo-se, devem dispor de autenticidade cultural, sociológica e popular, em vez de consistirem num mero arremedo tecnocrático.
Quanto à proposta dos populares relativa ao sistema eleitoral, vai também ao coração do problema , num cruzamento original de elementos do sistema alemão, do sistema francês e de particularidades próprias. Introduz uma componente de sufrágio uninominal - e é bom de ver que, sem a presença, em algum grau relevante, desta componente, a reforma eleitoral não passará de música celestial, continuando os seus vícios principais.
Prevê também que os deputados eleitos uninominalmente o sejam pelo sistema de duas voltas, o que, por um lado, combate o “voto útil” no primeiro sufrágio, mas acautela sempre, pelo segundo, a desejável representação maioritária dos círculos. E prevê enfim a existência de um círculo nacional, o qual seria uma forma de, em compromisso, os partidos assegurarem a candidatura dos seus quadros principais e, além disso, de garantir, no sentido da proporcionalidade, uma correcção, ao menos parcial, das mais acentuadas distorções decorrentes do apuramento das “maiorias” uninominais.
É também um excelente ponto de partida. Não que tenha de ser adaptado “ipsis verbis”, até porque contém alguns aspectos menos felizes e desnecessários (corno o do voto em urnas separadas para os círculos uninominais e para o círculo nacional). Mas as linhas principais do que poderá ser uma mudança digna desse nome estão, na verdade, ali, num cruzamento interessante e inteligente de vários elementos desejáveis.
Apetece ser optimista por uma vez. Mas é cedo para estarmos certos disso. E, além dos recuos negativos e reviravoltas espectaculares, num e noutro tema, por parte do PSD no termo da última legislatura, a verdade é que mesmo aqueles partidos, PP e PCP, têm visões antagónicas cruzadas nestas matérias. Os comunistas nunca foram grandes entusiastas de mexidas no sistema eleitoral; os populares parecem ter-se tornado adversários da regionalização. E, na hora da verdade - o poder... ai, o poder!... -, quem pode hesita.
Em qualquer caso, pode fazer-se três votos. Primeiro, o de que os socialistas honrem a sua responsabilidade maioritária, ambicionem deixar um legado duradouro e queiram favorecer, para o séc. XXI, efectivas reformas de fundo no modo da sociedade portuguesa. Segundo, o de que se avance em termos de alguma abertura de espírito interpartidária, em ambas as matérias. E, terceiro, que o que venha a fazer-se resulte de abordagem séria e genuína dos problemas de fundo, e não de meros exercícios “tecnocráticos” no caso da regionalização ou de vulgares truques de “engenharia eleitoral” no caso do sistema parlamentar.
Pode ser que a aproximação da viragem do século favoreça, afinal, a ousadia e a seriedade dos espíritos. O país agradece.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 10.Fevereiro.1996
Jurista
PÚBLICO, 10.Fevereiro.1996
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