A economia portuguesa existe?
Na Economia, as coisas continuam animadas. Não é já o progresso e o desenvolvimento. Por enquanto, é apenas a propósito de ... intrigas e um "jantar de homenagem".
Nas últimas semanas, de facto, a imprensa comentou largamente a eventualidade de uma remodelação governamental no sector da Economia, falando uns da substituição apenas de alguns secretários de Estado, falando outros da própria substituição do ministro Daniel Bessa. António Guterres limitou-se a comentar de modo irónico que esta "seria a primeira 'remodelação' em que o primeiro-ministro não sabia de nada". Mas, sobretudo por virtude do mal-estar conhecidamente acumulado, os rumores persistiram na convicção de que alguma decisão seria tomada após a conclusão da aprovação do Orçamento, ou seja, muito proximamente. Nesta altura, não se sabe se acabará por haver mesmo remodelação ou se tudo terá sido suficientemente superado através da "lei da rolha" que Daniel Bessa determinou no seu Ministério.
O "suspense" está criado. Quanto ao mais, o futuro o dirá. Mas o caso merece, desde já, alguns comentários.
A reposição de uma pasta da Economia criou inúmeras expectativas. É a primeira vez que tal acontece depois do 25 de Abril; e a novidade veio dar novo corpo orgânico a velhas reflexões sobre a conveniência de uma pasta de Coordenação Económica, distinta das Finanças, o que pesem algumas tentativas anteriores, jamais conhecera solução institucional satisfatória e duradoura.
O momento, aliás, requeria-o especialmente, já que o choque da integração europeia tem lançado a economia portuguesa num arrastado desnorte, nomeadamente em vastos sectores produtivos.
O panorama da economia portuguesa não é animador e, pesem as excepções de sucesso pontual, o sentimento colectivo dos portugueses a respeito da sua economia é largamente o seguinte: um sector primário esfacelado, com a agricultura em crise arrastada e agudizada, as pescas em desmantelamento e as minas a fecharem; a indústria transformadora ressente-se de sectores tradicionais sofrendo problemas crónicos e de novas indústrias ainda longe de representarem uma clara "nova vocação" do país; a marinha mercante desapareceu há muito, para nunca mais voltar - pesada ironia num "país do mar"; o comércio digladia-se entre os modos tradicionais e os novos modos de distribuição e retalho; o desemprego, embora em situação menos pior do que a de outros países europeus, atinge taxas que há 20 anos seriam havidas por obscenas; a precariedade do emprego e a insegurança dos indivíduos e das famílias vai-se agravando, com cerca de 25 por cento da população activa, segundo os sindicatos, "a recibos verdes"; etc.
É facto que o Governo actual poderá alegar que todo este quadro foi recebido dos anos do cavaquismo e das "vacas gordas" dos fundos. Só que este discurso da "pesada herança" nada melhorará e aquilo que se espera justamente do Governo de Guterres é que... resolva!
Este panorama algo sombrio não pode dissociar-se do grau crescente de integração europeia e da forma como têm sido acolhidas as "transformações" exigidas pelo processo de construção da União Europeia. E há uma sombra de pessimismo que acompanha esse percurso: é como que uma praga anunciada sobre a capacidade portuguesa para definir um rumo próprio, nesse quadro mais alargado. Curiosamente, podemos adivinhá-la, lendo um pouco da tradição das nossas comunidades emigrantes.
Não deixa de ser interessante notar como foi normalmente distinto o destino económico dos nossos emigrantes, consoante emigrassem para países europeus (França e Alemanha, sobretudo) ou para países do Novo Mundo, de além-mar. Independentemente da prosperidade relativa de cada um, os emigrantes fixado nos Estados Unidos, na Austrália, na África do Sul, na Venezuela, montaram em larga medida os seus próprios negócios, isto é, estabeleceram-se e foram trabalhar por conta própria. Enquanto aqueles outros, de destino europeu, abraçaram dominantemente o trabalho assalariado em vários domínios, isto é, não foram capazes de se estabelecer e foram trabalhar por conta de outrem.
Este quadro, cruzamento de vários factores, pode constituir, no trânsito do "ciclo imperial" para o "ciclo europeu", uma praga para a economia portuguesa. A de que nós, portugueses, tal como os nossos emigrantes, fôssemos deixar de ser capazes de trabalhar, colectivamente, "por conta própria" e estivéssemos condenados, no novo quadro europeu, a confinar-nos a uma simples economia "por conta de outrem".
Os eurocépticos, dos mais variados matizes, caminham seguramente por aqui. E, embora eu acredite que eles não têm razão, a verdade é que os últimos anos só serviram para justificar o pessimismo, independentemente de a praga fatal vir, ou não, a confirmar-se. Foi aqui que veio encaixar a criação do Ministério da Economia - confiado, por sinal, a uma personalidade, Daniel Bessa, que, pelos seus antecedentes, mais contribuiu ainda para concentrar as atenções e ampliar as expectativas.
É facto que ele não detinha a Economia toda. Antes a Agricultura e Pescas continuavam num ministério autónomo e outros sectores decisivos e estratégicos, como os Transportes e as Comunicações, ou a Construção, remanesciam no Equipamento Social, associados às Obras Públicas e à Habitação e, hoje, também ao Planeamento. E a Educação e o Emprego constituem igualmente sectores-chave do futuro, embora noutro plano e noutra perspectiva de prazo.
Mas, ainda assim, esperava-se da nova pasta da Economia que fosse capaz de repor e de reordenar perspectivas positivas quanto aos desígnios económicos de Portugal. Esperava-se uma melhor compreensão microeconómica, capaz de atender às necessidades de múltiplas unidades, ao nível empresarial concreto, fora do estrito jargão das medidas de macroeconomia. E esperava-se muito mais do que medidas avulsas e pontuais. Esperava-se, seguramente, em concerto estreito com os seus colegas do Planeamento e Equipamento Social, da Agricultura e Pescas e das Finanças, o despertar de um novo discurso para a Economia portuguesa - e a capacidade de definir um rumo animoso, mobilizador e de futuro, no novo quadro europeu integrado, vencendo-se as dores e as perplexidades da transição.
Esperava-se, em suma, três resultados: primeiro, capacidade de abraçar e protagonizar uma visão do conjunto; segundo, remoralizar a produção; terceiro, redefinir uma nova identidade económica portuguesa, ajustada, como agora se gosta de dizer epicamente, aos "desafios do século XXI e do terceiro milénio". Esperava-se, numa palavra, uma injecção de optimismo ou, ao menos, de confiança.
Ora, aí é que o balanço é muito crítico. É mesmo claramente negativo, nomeadamente face às expectativas criadas. E os incidentes recentes, independentemente dos factores menores que os determinam, não deixam de ser sintomáticos - significam que o ministro, longe de já ter sido capaz de concertar o novo discurso da "nova Economia portuguesa" com os seus colegas de outras pastas económicas, não conseguiu ainda sequer governar e pôr de acordo os seus próprios secretários de Estado, nos sectores que foram cometidos à mesma tutela: Comércio, Indústria, Turismo e Energia.
Alguma coisa, portanto, tem de ser feita. Não apenas pelos indecorosos pequenos conflitos, mas, sobretudo, porque um falhanço da nova pasta da Economia antecipará dois fracassos maiores: a incapacidade do Governo Guterres de definir o tal novo rumo para toda a Economia portuguesa; e uma desmoralização ainda mais aguda, que poderá vir a acentuar-se nos agentes económicos, dentro do sentimento muito português de que "isto não tem solução".
José Ribeiro e Castro
Jurista
Jurista
PÚBLICO, 16.Março.1996
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