Estado/RETI: um caso de usura
Houve por aí 15 dias de animado festival especulativo à volta da TVI e da RETI. Na sua fonte original, uma flagrante operação de contra-informação. Bem urdida - diga-se de passagem. O balão foi enchido e ... foi esvaziado. A contento de "alguém".
A fiarmo-nos no que foi dito, a RETI teria estado na iminência de ser vendida à Portugal Telecom, haveria mesmo em cima da mesa um tal preço de 5,6 milhões de contos ("Ooohhh ! ... ") e, no final - descansai, ó gentes -, o negócio teria ficado irremediavelmente comprometido por ser taxado de "ilegal".
Que nada disto correspondesse ao rigor da realidade pareceu ser pormenor de pouca monta. A construção deu a volta e o círculo fechou-se: corno diz um amigo meu, "incha, desincha e ... passa". A TVI, tanto quanto se sabe, não decidiu se quererá ou não "vender" a RETI; não há ainda preço concreto em discussão; a TVI sabe o valor da rede e conhece bem como o conjunto de bens e direitos em que consiste e a valia da sua retirada do mercado ultrapassam os 5,6 milhões que alguém pôs a circular; a Comissão de Avaliação ainda não reuniu sequer sobre o fundo do problema e muito menos apresentou as suas conclusões, ou relatórios preliminares que fossem; e é leviano dar por feito e desfeito um "negócio" que não se sabe o que é, nem como poderá ser.
Só isto tem significado. Significa que continua a haver interesses poderosos obstinados em, entre muitas outras coisas, queimar o "negócio" antes de o ser, procurando matá-lo no ovo, pelo lançamento de sucessivas cortinas de fumo.
O caso da rede de emissores da TVI e do comportamento do Estado a seu respeito é das mais espantosas tentativas de usura a que alguma vez assisti.
Não é verdade que a TVI tenha ou tivesse alguma vez definido espontaneamente interesse em alienar a sua rede. Mas já é verdade que a Portugal Telecom - ou, melhor dito, interesses obscuros que por detrás desta se acobertam - tem interesse em ficar com essa rede "por tuta e meia" (também vi escritos valores de 2,5 milhões ou tão-só mesmo de um milhão! ... ), ou, de preferência, em eliminá-la por completo do seu caminho "a custo zero", através da demolição comercial da TVI, esmagada por um monopólio insaciável.
Em 1994, numa cambalhota política de 180º, o Ministério de Ferreira Amaral, inspirado por interesses obscuríssimos, acelerou para uma obsessiva concentração monopolista nas telecomunicações. Fê-lo à revelia das tendências naturais do sector, em todo o mundo e na Europa em particular. Fê-lo em inversão completa da política que havia sido definida nos primeiros mandatos de Cavaco Silva e que, compromissoriamente, ainda sobrevivera, aqui ou ali, em rastos normativos até 1993. Fê-lo de forma até lesiva para os interesses nacionais e a economia nacional, segundo muitos, bons conhecedores do que dizem, quadros até do próprio PSD que foram sendo laminados, um a um, onde não acompanhassem o "galope do mamute". E fê-lo de forma escandalosamente iníqua para vários, atropelando de forma ilegítima direitos constituídos e gerando a terceiros prejuízos de elevada monta.
Desde que o desenho da Portugal Telecom como companhia majestática foi fechado em 1994 e se consolidou em 1995, a sofreguidão cega de quem patrocina essa política não tem conhecido limites. Na frase célebre de Fernando Cabrita, em futebolês, os obscuros lobbies da PT olharam para o sector e "foram-se a ele que nem uns tarzões ... " Chegaram ao extremo do que não passa de agiotagem comum ou de grosseiras ambições usurárias. A imprensa tem noticiado, por exemplo, corno a PT aluga circuitos de fibra óptica na rede privativa da CP, para depois os comercializar a dez vezes o preço que paga - é um dos exemplos agiotas, à semelhança do nunca esclarecido mistério de os portugueses pagarem dos tarifários telefónicos mais caros do mundo ocidental. Quanto à estratégia usurária, tem, de facto, o exemplo emblemático no caso da TVI e da RETI.
O folhetim da TVI e da RETI tem sido plantado na imprensa como consistindo apenas em duas questões: o próprio direito de a RETI existir; e a possível amplitude do seu espaço para operar. Não é assim.
Diversamente do que muitos têm feito crer e sem prejuízo dos seus direitos, não é verdade que a TVI tenha optado pela rede autónoma por causa de eventuais outros projectos "milionários". A TVI escolheu por razões que têm a ver apenas com a sua teledifusão e pelo motivo transparente de que essa era, no exacto quadro definido pelo Estado no concurso público e no acto de licenciamento dos canais privados de televisão, a solução indiscutivelmente mais económica para a TVI. Isso mesmo pode ser certificado por quem quer que seja: consta expressamente da declaração de opção entregue pela TVI, logo quando se apresentou ao concurso em 2 de Abril de 1991. E o mesmo está reafirmado, como pode abundantemente documentar-se, nas análises que baseiam a confirmação dessa opção em 23 de Março de 1992.
No quadro que o Estado definiu para os concorrentes e que integra o próprio acto de licenciamento dos canais, a situação taxativa era de forma a que, face à única alternativa estabelecida de contratação com a Teledifusora de Portugal para todo o período de 15 anos das licenças, a TVI teria, pela opção de rede autónoma, poupanças que, em velocidade de cruzeiro, rondariam em média um mínimo de 0,5 milhões de contos por ano.
E o que é que, depois, o Estado, num ousado mortal de costas inspirado pelos "napoleões do hertziano", resolveu fazer? Grosseiríssima batota!
A sucessão de dificuldades supervenientes movidas pelo Ministério Ferreira do Amaral contra a própria vida e existência da RETI e contra outras pretensões que, fundada na lei e em pareceres de eminentes jurisconsultos, como os profs. Menezes Cordeiro, Freitas do Amaral e Marcelo Rebelo de Sousa, a TVI foi entretanto manifestando, foi apenas um primeiro sinal da pirueta total face a tudo quanto o legislador fora escrevendo até 1991 e ao que está nas licenças atribuídas em 1992.
Se a ganância monopolista desses lobbies visava riscar completamente do mapa a rede da TVI, aquilo, de facto, não bastava. Apesar do que, por outros obstáculos, se fosse prejudicando e desgastando a TVI, o Estado e esses lobbies sabiam directamente desde o princípio que isso não chegava para afectar o equilíbrio económico fundamental da opção que a TVI tomara, por muito que se propagandeasse o contrário.
Era indispensável agredir mais. Era preciso agredir a TVI directamente no núcleo da sua teledifusão e, saltando por cima das leis e dos regulamentos com a mesma arte com que os elefantes saltitam sobre os nenúfares, procurar destruir, fosse como fosse, o equilíbrio económico definido no quadro das condições concorrenciais estabelecidas.
É assim que, em meados de 1994, na voragem final do "chupismo" global na Portugal Telecom, esta acaba por engolir a própria Teledifusora, criada expressamente aquando do licenciamento dos canais privados; e, logo a seguir, aparece a praticar preços revolucionários. De um dia para o outro, um mesmo serviço de teledifusão que custaria pela TDP nunca menos de 1,5 milhões de contos por ano passou a ser fornecido aos concorrentes da TVI a 700 mil contos anuais, ou menos ainda, se tudo ponderado.
O arbítrio é tão impenitente que, em violações sucessivas de variadas leis, verdadeiro clímax do reiterado atropelo espalhafatoso do princípio da igualdade, a TVI ainda não conseguiu sequer ser informada exactamente de quais são as efectivas novas condições contratuais que a Portugal Telecom passou a praticar em beneficio da RTP e da SIC, continuando confinada a guiar-se por informações divulgadas na imprensa e pelo "diz-se, diz-se" do mercado.
Este dia, em que tudo mudou de figura, foi em Julho de 1994. Aconteceu curiosamente um mês antes da data em que, impreterivelmente, nos termos dos níveis de cobertura da população exigidos pelo concurso público e do contrato com a TDP, a SIC passaria a pagar anualmente pela teledifusão valores anuais nunca inferiores a 1,5 milhões de contos. As "taxas" de referência estavam, aliás, publicadas no "Diário da República" em despachos do Governo, o que torna o escândalo ainda mais solene ... Sorte igual, aliás, estaria reservada à TVI; e por isso mesmo, afinal, tendo também na altura própria negociado com a TDP até ao limite, a TVI verificara o mais económico era escolher a alternativa de uma rede própria.
Assim, a RTP e a SIC foram contempladas com um bodo de última hora. E o Estado, em subversão grosseira do quadro taxativamente definido no concurso e nas licenças, serviu-se da Portugal Telecom para alterar radicalmente as regras do jogo: fez inverter toda a situação e provocou que a TVI, em vez do benefício anual de meio milhão, passasse a ter de bater-se contra um prejuízo concorrencial de outro tanto. História feia... pela qual o Estado e a PT são responsáveis à face do Direito.
Tem sido dado a entender, por exemplo, que a TVI se apresentou a vender a sua rede. Não é verdade. Foi ainda o Ministério Ferreira do Amaral que se apresentou à TVI a querer comprá-la, dando até sinais porventura de má consciência. Por mero acaso, assisti - como se diz popularmente, "com estes olhinhos que a terra há-de comer... " - a uma reunião do Conselho Geral da TVI onde, em 3 de Abril de 1995, devidamente mandatado, compareceu o eng.º Cabral da Fonseca, então Presidente da CN-Comunicações Nacionais, a holding estatal da altura, expressamente para propor o negócio e a adiantar mesmo, não ainda um preço, mas já as diversas componentes que deveriam integrar o cálculo e a formação desse eventual preço futuro. Era o assédio sedutor - a outra face, simpática, do predador.
Nessa precisa altura, o Estado tinha razões para recear qualquer agitação, na defesa ou afirmação dos direitos da TVI sucessivamente lesados. É que a primeira fase de privatização da PT estava marcada para Junho seguinte, franqueada aos sempre muito sensíveis mercados financeiros internacionais. As conversas foram-se enrolando. E passou Junho. O resto é conhecido: a proposta e o interesse regrediram; os avanços e as pressões usurárias acentuaram-se; a CN foi extinta; e, por aí, o mediador eng.º Cabral da Fonseca foi também convenientemente afastado do circuito. História feia! História muito feia ...
"Dar com uma mão e querer tirar com a outra" é, aliás, a legenda que pode resumir toda a política para a televisão dos últimos anos. Com a única excepção da RTPi, tudo o mais foi um desastre. Entregue às mãos de aprendizes de feiticeiro, à custa dos dinheiros públicos, também a RTP, epicentro de alegre concorrência desleal, foi usada como "arma de arremesso" contra os privados, acabando por a tornar de carrasco dos outros em igual vítima de si mesma. No caso da rede, em golpes cirúrgicos e ilegais contra a TVI, foi a substituição de uma política "liberalizante e aberta" por outra "concentracionária e fechada". No geral, só à conta da RTP, foi o acumular, em apenas quatro anos, da módica quantia de cem milhões de contos, entre apoios financeiros do Estado e prejuízos acumulados. Bonito serviço!
Fica uma pergunta: quem e porquê quis tanto mal à RTP e à TVI?
José Ribeiro e Castro
Jurista
Jurista
PÚBLICO, 30.Março. 1996
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