O referendo europeu


Com a aproximação da cimeira de Turim, dos frutos da conferência intergovernamental e da revisão do Tratado da União Europeia, volta a agitar-se novamente esta questão. Regressam em força as reclamações de um referendo. A subida de tom do PP, na quinta-­feira passada, bramando ainda contra o chamado "Sr. PESC", em nada surpreende, quer face às posições habituais da direcção dos "populares", quer por virtude das ameaças de moção de censura que foram feitas logo no final do seu recente Congresso e repetidas no Parlamento, para a eventualidade de não serem dadas garantias de que a questão europeia será mesmo objecto de referendo.

Mas o mais importante de tudo é, ainda antes da subida de voz do PP, a manifestação de abertura reafirmada na mesma quinta-feira pelo primeiro-ministro, no sentido de que um referendo venha a ser feito. Segundo os jornais, António Guterres terá dito mesmo não ter "qualquer reserva" a que fossem submetidos a referendo os "aspectos essenciais que venham a ser considerados numa futura revisão do Tratado de Maastricht".

As posições do PP a este respeito inspiram sentimentos contraditórios. Por um lado, aumentam o confusionismo em Portugal sobre a Europa, além de contraditarem frontalmente todo o passado democrata-cristão que foi o do CDS. Por outro lado, prestam um inestimável serviço a Portugal e à Europa, ao baterem-se de forma tão saudavelmente obstinada pela efectivação do referendo europeu.

Naturalmente que o PP se prepara para gritar "Ganhámos!", se a proposta triunfar e o referendo for marcado. É justo, aliás, que o possa dizer. O que será - estou certo - "Sol de pouca dura", quando, no final, as suas posições políticas substantivas acabarem derrotadas e os sentimentos europeus dos portugueses encontrarem plena consagração e directa expressão populares. Com isso, o PP acabaria por ter prestado um grande serviço a Portugal e, paradoxalmente, também à própria Europa da União, matando de vez, afinal, uma questão de que tem vindo a fazer alimento favorito: a da "ilegitimidade" da construção europeia e do seu processo.

Que o referendo não tenha sido feito, logo de início, foi erro enorme, cujas consequências não têm deixado de pagar-se. Por cada ano que passa, esse erro cresce, ao mesmo tempo que o seu coeficiente de risco político se amplia para além de limites razoáveis. O nível de risco pode mesmo tornar-se, um dia, completamente insuportável; e, aí, num qualquer balanço da História, a explosão pode efectivamente vir a acontecer, sem remédio ou margem de recuo e com consequências absolutamente imprevisíveis.

Ideias como as de que quem é pela Europa é contra o referendo, ou de quem é pelo referendo é contra a Europa estão longe de ser verdadeiras. Muita gente é pela Europa e pelo referendo - foram até abundantes os testemunhos de figuras relevantes do PSD e do PS quando, infelizmente sem resultados, o problema foi arduamente discutido há anos atrás. Quem combate e impede o referendo é que prejudica gravemente a causa europeia, por muito que as aparências mais ruidosas tenham vindo a soar ao contrário.

A Europa não é uma questão técnica, nem tão-pouco uma matéria de estrito interesse económico. A Europa é questão política por excelência e a sua construção é um processo político das mais fundas implicações na própria natureza dos Estados modernos europeus. Por muito que o PP e outros não tenham razão no modo como, para daí extraírem efeitos, gostam de colocar o problema como traduzindo-se na "alienação da soberania", a verdade é que a construção da União mexe obviamente com a compreensão dos poderes soberanos e o próprio conceito das Nações que a integram. Ora, a densidade política das questões e dos sentimentos profundos que aqui se cruzam devia impedir, pela sua própria natureza, que a classe política se tivesse sentido autorizada para encetar e prosseguir o processo unicamente pelos simples mecanismos tradicionais da democracia representativa.

A questão é demasiado importante, demasiado fundamental, para poder não ser levada directamente à expressão do voto popular. E o facto de fazer o referendo é, pela campanha e seus efeitos, a melhor forma de esclarecer, ampliar e enraizar uma consciência europeia informada, além do maior impulso de ânimo e de fôlego de que a União precisa e merece.

Em meados do ano passado, fui surpreendido com uma afirmação de Cavaco Silva no sentido de que a Europa não pode ser construída sem a activa participação dos cidadãos. Não porque não concorde com a afirmação, que constitui uma evidência; mas porque fiquei completamente sem perceber porque é que, nessa consciência, o referendo não fora feito anos atrás e a direcção do PSD, entre outros, se lhe opusera.

A obscura tecnicidade a que na última década se deixou levianamente reduzir o espírito europeu, bem como a vulgarização da ideia de que a Europa é apenas o interesseirisrno dos fundos - ao modo da redacção de "a vaca é linda, a vaca dá leite, eu gosto muito da vaca"-, só contribuiu para empobrecer a questão. E, ao mesmo tempo, a não realização de um referendo favoreceu e favorecerá que, nesse quadro tecnocratizado e "bruxelocrático", cresçam inimigos onde existiam adeptos. É por aí, e só por aí, que o discurso do PP e de outros encontra espaço - quando se fizer a "prova dos nove"... acaba.

O Presidente Mário Soares advertiu a tempo que era indispensável, e não só em Portugal, o regresso da política - a Grande Política - à Europa e à sua questão. Não pude deixar de recordar-me como, no primeiro Governo da AD, em 1980, Sá Carneiro (que muitos gostam de citar) e Freitas do Amaral erigiram entusiasticamente a integração europeia como a "prioridade das prioridades" da política externa portuguesa. Nem pude deixar ele lembrar-me corno Adelino Amaro da Costa (que muitos gostam também de evocar) ensaiava, então, os primeiros passos da definição de uma tese que lhe era muito querida: o "europatriotismo". E senti-me tocado quando, a propósito da CIG, li há dias o apelo claro dos bispos italianos, que quiseram evocar expressamente as figuras de Monet, Schuman, Adenauer e De Gasperi, uma clássica galeria democrata-cristã de referência. Tive saudades do tempo em que a Democracia-Cristã ainda tinha, com o CDS original, voz organizada e expressão activa em Portugal. Pus-me até a imaginar, por exemplo, figuras como Mário Soares e Freitas do Amaral, entre muitíssimas e variadíssimas outras, solidariamente empenhadas em activa campanha "europeísta" - o marco que isso registaria na sociedade portuguesa!...

O regresso da Europa à sua natureza profunda de questão política, social e cultural, de raiz, só pode fazer-se e activar-se validamente por um referendo e dentro do seu debate característico e generalizado.

Não faltará quem, agarrando no texto actual da Constituição e manipulando-o num cruzamento impossível dos calendários da revisão constitucional e da revisão do Tratado, venha dizer hipocritamente: "Gostava muito, mas não pode ser..." Há algumas maneiras de superar, com seriedade, o falso problema. Até porque o importante num referendo nunca é tanto que seja, ou não, qualificado como juridicamente vinculativo (embora o devesse ser); o importante, o decisivo, é que ele é sempre, em qualquer circunstância, politicamente condicionante, realmente balizador, pela sua própria natureza popular e respectiva força implícita.

Confiemos no instinto de Guterres e na imaginação dos seus mais próximos conselheiros. E, acreditando na "abertura" que voltou a manifestar, esperemos que o primeiro-ministro possa já oferecer garantias referendárias expressas, quando para a semana se reunir com a oposição nas vésperas de Turim. A Europa e Portugal só ganhavam com isso.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 23.Março.1996


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