Regiões, encontrões & outros travões


É sintomático que a recente querela sobre o palpitantíssimo tema dos jobs for the boys servisse de oportunidade para alguns comentadores tomarem partido contra a Regionalização ou exprimirem reservas a seu respeito. Apressaram-se a “alertar”: se houvesse Regionalização ainda seria pior, com o espectáculo lastimável de distribuição de lugares e suas prebendas espalhado por todo o país, ao sabor das várias maiorias regionais.

Foi - que eu desse conta-· o caso de Paulo Portas, agora na política activa, no “Independente”, e de Miguel Sousa Tavares, aqui no PÚBLICO.

Paulo Portas já sabia que era contra. Miguel Sousa Tavares, não - mas fiquei a saber. O “argumento” não é verdadeiro em si mesmo. As coisas poderiam até passar-se exactamente ao contrário. Desde logo, a bem maior proximidade das populações relativamente à Administração pode ser o mais eficaz dissuasor dessas práticas de clientelismo sazonal e por camadas. Por outro lado, a questão do jobs for the boys põe­ se em boa medida exactamente quanto aos inúmeros lugares da Administração Central dita “regionalizada”: as ARS, CRSS, DRE, CCR, delegações regionais disto ou daquilo, etc. É nestes “baronatos” republicanos que acontecem as maiores tentações e tropelias tentaculares; e, no quadro actual, é que é fácil proceder como se sabe: uma “cunha” discreta ou uma “pressãozita” organizada a preceito ao ministro em Lisboa, para uma nomeação do compagnon em Évora, ou em Coimbra, ou em Faro, ou no Porto, etc. Num quadro de Regionalização, nada disto se passaria porque mudam os governos a nível nacional. Poderia - é certo - haver semelhante (nunca pior) tentação, por ocasião de eleições regionais e respectivas mudanças de poder. Mas não seria tão fácil e, após os primeiros anos, tudo acabaria seguramente por estabilizar melhor do que alguma vez acontecerá no sistema de hoje.

Seja como forma, o exemplo é bem ilustrativo do tipo de “argumentos” com que a Regionalização tem deparado e ainda terá que defrontar-se para alguma vez passar do tinteiro constitucional. Vão lá 20 anos!... - não é de mais lembrá-lo.

É que as pessoas, aqui, não assumem muitas vezes abertamente se são a favor ou contra , sobretudo se são contra. Há quatro grupos de pessoas: os que são claramente a favor (estou convicto de que é a maioria); os que são claramente contra e não têm rebuço em afirmá-lo (são poucos, embora vão aparecendo mais depois de Cavaco); os que dizem ser a favor, mas que levantam, a propósito disto ou daquilo, uma série de outras dificuldades ou de peregrinas interrogações (pertencem realmente ao grupo “do contra”, e são bastantes); e, enfim, os que, sendo efectivamente a favor, alinham por outro tipo de querelas e de encontrões (constituem a mais preciosa ajuda ao grupo “do contra” ).

A Regionalização tem-se prestado muito a esta pouca clareza e a estas manipulações do processo. E, como - com a única excepção talvez do PCP - há em todos os partidos gente “a favor” e gente “do contra”, em maior ou menor grau, tem sido por aí que mais se insinuou a sabotagem - é o termo - do processo regionalizador.

O elenco de questões divisionistas é vasto; encontra-se um pouco de tudo. São os critérios da divisão regional. É a querela das “capitais” das futuras Regiões. É a questão das “fronteiras” concretas, onde há para todos os gostos. É a questão abstracta da simultaneidade, ou não, da sua criação. Enfim...

Às tantas, aparecem mesmo uns verdadeiros achados. Um, é uma recorrente trouvaille desde os anos 1980: a questão da “repartição de competências” entre as Regiões e os Municípios. Isto faz as delícias de todos os nossos Napoleões centralistas e presta-se, às maravilhas, para confundir os espíritos e enganar os locais , gerando receios artificiais ou estimulando cobiças ingénuas com a melodia da “descentralização municipalista” (que também não anda, por sinal... ). Raramente vi tanta hipocrisia, como neste enfoque.

Insinuar que as Regiões irão “tirar poder” aos Municípios ou, noutra abordagem, que o bom mesmo é “transferir poder” directamente para os Municípios sem as Regiões “a atrapalhar” é a forma mais airosa de enganar inocentes, deixando tudo na mesma. Foi por aí, por exemplo, que o recuo espectacular do final do “cavaquismo” avançou; e é também por aí que vozes autorizadas do PP dizem que “sim”, a acenar que “não”.

Há ainda um último truque: projectar sobre a Regionalização todos os males que se adivinhem na Administração Pública - os jobs for the boys, o “acréscimo de burocracia” e o seu peso, o “despesismo” improdutivo e infecundo, etc. O curioso é que tudo isto se detecta - e, às vezes, em que grau! - exactarnente na centralizada Administração de hoje. Mas o que importa é associar à Regionalização “pavores” que são meros fantasmas, enquanto pouco se faz para corrigir ou eliminar na Administração Pública, central ou desconcentrada, os mesmos “pecados” que são diabos reais em larga escala.

“Dividir, para reinar” - nunca a divisa foi tão apropriada como aqui. Tudo serve para dividir, mantendo o Reino do Poder Central posto em sossego...

Mau grado os ventos favoráveis que sopram no “guterrismo”, é preciso estar atento ao essencial. No PS, também há gradas figuras que são “do contra”; e qualquer querela interna, habilmente aproveitada ou mesmo induzida, pode ser pretexto ou circunstância para tudo comprometer outra vez. Sabe-se o que se passou no PSD, cunhando com maioria absoluta a “mentira do século” e desperdiçando 10 anos...

Já houve, aliás, dois fortes acenos disso no PS, curiosamente ambos lançados do Porto. Um, dizia que Fernando Gomes se iria bater pela criação da Região Norte, contra as ideias mais prevalecentes no PS - que são também as agora abraçadas no projecto do PCP; e eram também as constantes de projectos do CDS antigo. Digo já o que penso a esse respeito: primeiro, esse movimento seria uma curiosa aliança com o sector “tecnocrático” do PSD, que sempre “defendeu” que as Regiões deveriam coincidir com as actuais CCR, para, no fim, como era de esperar, tudo enterrar na gaveta; segundo, abdicar do espírito de Regiões “naturais” é enfraquecer grosseiramente o processo e deitar fora várias das suas virtualidades; terceiro, é uma ideia muito querida a algumas elites portuenses, que gostariam de fazer no Norte, a partir do Porto, tudo o que de maléfico pensam de Lisboa - uma “metrópole” com a sua “província”.

Outro aceno dava nota de uma bravata entre famílias socialistas, à volta de urna ideia de, no projecto de revisão constitucional do PS, vir a propor-se a eliminação do princípio da simultaneidade da criação das Regiões. Digo também o que penso: primeiro, creio que as Regiões devem ser criadas simultaneamente e considero que há condições para isso; segundo, não sou, porém, adivinho; terceiro, considero que, se o processo se complicasse, por acaso, nalguma área mais instrumentalizável (nas zonas da Beira Litoral, ou da Beira Alta e Interior, ou do Alto Douro, ou do Entre Douro e Minho, ou do Alto Douro, ou do Alentejo, Alto e Baixo), é melhor que possa avançar quanto a algumas, aguardando-se espíritos mais esclarecidos quanto às outras, do que se bloqueie tudo por completo por força de urna regra-travão constitucional.

Aliás, se não fosse esta regra, a Regionalização já estaria provavelmente concluída. Algumas se teriam feito, primeiro, e o dinamismo natural do processo se encarregaria do resto, levando as outras pouco tempo depois a criarem-se. Ou seja, a possível eliminação da regra constitucional da simultaneidade, não força a que, depois, ao nível legislativo, as Regiões não sejam mesmo criadas simultaneamente. Só que liberta o processo; e, libertando-o, pode favorecê-lo de vez e irreversivelmente.

Assim, embora pudesse parecer que não, quem tem ganho com aquela abstracção ilusionista são os centralistas, das mais variadas cores, sempre lestos a lançarem qualquer grão de areia para a engrenagem.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 2.Março.1996

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