Angolano, branco, sem terra


«Coronel-comando Santos e Castro!... Presente! Mama sume!» Depois do grito “Comando” dos companheiros de armas - “estamos aqui!” -, ali reunidos com a família e amigos no cemitério de Oeiras, domingo passado, naqueles dois, talvez três, minutos de silêncio que ficaram, a memória correu rápidas imagens. Salgado, em névoa de lágrimas pela partida, um filme intenso feito de ecos passou em relâmpagos pausados. Foi um silêncio cheio, como cheia fora a sua vida.

A alegria, a bravura, a entrega, a dedicação, a coragem, o companheirismo, a crença, o brio, a determinação, a valentia, a lealdade, o heroísmo, o entusiasmo, a honra - foram traços de um homem que marcou muitos outros; que constituiu também nos anos 1960, minha juventude, referência de eleição.

O meu tio Gilberto era um homem extraordinário. Uma pedra invulgar.



Foi um de largos milhares de outros que Portugal deixou sem terra. Retornados, deixaram a terra que amavam. Devolvidos, acharam outra em que não cabem por inteiro. Gente de um outro espaço, de uma terra que parece ter deixado de existir. Uma terra espantosa, por sinal. Uma terra de sonho. Uma terra que marcava. Que rompia pelos olhos, pelos ouvidos, pelos pulmões, pela pele, pela razão e pela emoção - para nunca mais sair de dentro daqueles em que entrara. O mistério da “água do Bengo”.

Em Angola, década de 1970 já, quase não havia guerra. Ele acreditava na Paz plena. Achava mesmo - e repetia, confiante - que só os angolanos seriam capazes de a concluir, entre todos: «Sentamo-nos à volta de uma mesa e vais ver!» Não foi possível. No tempo e no espaço que lhe coube viver. A Paz de que falava era “a paz dos bravos”, não “a paz das potências”; a dos que queriam ficar, não a dos que entregassem para se ir embora; a paz dos filhos da terra, não a dos estranhos e seus poderes, e interesses, e cobiças. Aquela, se se fizesse, ficava. Esta, ainda não…

A ele, ouvira eu pela primeira vez exprimir uma ideia tão reveladora quanto irónica - uma frase corrente em Angola, naquele entusiasmado arranque optimista dos anos 1970: «Temos que dar a independência à Metrópole!»


Foi um combatente. Para mim, o último herói português - o último herói da era de 1500. Desde tão longe e para tão eterno quanto isso. Era uma figura de gestas. Grande figura. Uma personalidade. Um carácter. Um traço a cheio no mapa das nossas vidas.

Militar, amava a sua farda; tinha orgulho nela. Patriota, era filho de uma Nação pluricontinental, o que, nele, como em largos milhares de outros, não era uma figura de estilo, nem um programa político - nascera no Lobito, Angola de sua paixão.

Um dia, em finais de 1974, a seguir ao 28 de Setembro e ao afastamento de Spínola, ficou claro para toda a gente que o MFA não ia honrar mais o compromisso do seu Programa de Abril: não ia haver “um debate franco e aberto do problema ultramarino”; e já não “competiria à Nação” a definição da nova política ultramarina, nem o desenho do destino dos seus povos. Demitiu-se então das Forças Armadas, para não trair a sua farda - escolheu ficar fiel ao seu juramento. Se os comandos político-militares da época haviam desistido de prosseguir o único país que ele entendia e que todos haviam jurado, decidiu partir, livre, para lutar também, já só pela sua terra à deriva: Angola.

Escolheu combater no solo seu. Que entendia. Que amava como uma Pátria dentro de outra Pátria. Quando a Pátria maior se lançou noutro caminho, escolheu a sua parte do desígnio de muitos: Angola, a que pertencia tão propriamente como um embondeiro.



Houve, pelo menos, dois “verões quentes” em 1975: um aqui, em Portugal, lutando-se para defender uma democracia posta no abismo; outro em Angola, entregue e abandonada por um Portugal convulso aos furacões da Guerra Fria. O “verão quente” lá em baixo escaldava mais. O combate, aí, era mais básico ainda - pela liberdade de se ser, pela liberdade de viver.

Esteve às portas de Luanda, já dentro, a 11 de Novembro de 1975. Mas foi traído - pelo Ocidente. A história é conhecida. Talvez não conviesse que a coluna de pieds-noirs pudesse vencer. Perdeu. Na última hora. Teve que retirar. Só anos depois se resignaria por inteiro à impossibilidade de voltar. Por sinal, pouco antes de começar a adoecer - até à sua morte, há uma semana.



Tal como sucederia a um embondeiro que se transplantasse Atlântico acima, nunca se sentiu à vontade por aqui - compreendia mal o “puto”, como a Metrópole era designada pelos angolanos. Não acreditava nos meandros políticos de Lisboa; não entendia as teias por que se moviam; muito antes do 25 de Abril, de forma aguda desde Dezembro de 1973, temia que, nalguma curva do destino, traíssem Angola. E que a deixassem.

Desprendido de si, entregue totalmente ao serviço público, nunca tivera muito. Do pouco que tinha, na saída de África perdeu tudo. Privado da terra que sonhou, a bagagem ficou lá. Não vieram nem os álbuns de recordações pessoais. Causava-me sempre uma sensação estranha, anos depois, com os meus primos, refazermos, de entre algumas fotografias e filmes que nós tínhamos, estas ou aquelas memórias do seu passado de que haviam perdido qualquer registo.

Perdeu tudo - menos os amigos, a família, a honra, a coerência, o respeito. O que não é pouco! Tão-pouco perdeu a alegria. Mesmo quando já muito doente, ela espreitava por qualquer nesga do seu corpo tolhido, no mesmo brilho do olhar, sorriso por trás da esquina da sorte. E fosse por ter perdido o seu último combate, fosse pelas limitações penosas da doença em que caíra desde há 13 anos, nunca se lhe conheceu uma palavra, um aceno, um sinal que fosse de amargura ou de azedume. Esteve sempre em paz consigo - e também com essa coisa ignota que dá pelo nome de “o Mundo”. Cabe dizer que o merecia - a Paz. Tão-pouco se lhe conheceu lamento ou sequer dúvida de arrependimento pela vida, dura, que seguira. Por ele, tudo valeu a pena. Fez o que quisera. Como quisera. Porque escolhera.

Morreu sem dívidas. De qualquer espécie. E também não se reclamava credor.



Quanto a Angola, cínico destino - e trágico - o que se lhe abateu. Nunca estivera tão mal como o que lhe fizeram: à mercê de tudo. Desde 1975, os colonos - e muitos milhares de outros - foram levados a partir em êxodo massivo. A guerra reinstalou-se generalizada, às revoadas sucessivas, por mais 20 anos, de poucas tréguas. A ruína, a doença, a fome, a morte e a angústia chegaram a toda a parte naquela terra, disputada e martirizada até ao absurdo.

Há 22 anos que Angola prossegue uma meta que já conheceu: atingir outra vez os indicadores de desenvolvimento e de progresso que tinha em 1973… Foi ficando longe, muito longe - cada dia mais longe, até que a paz se instale de novo no seu tempo, a reconciliação no seu espaço e o desenvolvimento nos seus braços.

Apenas agora, desponta outra vez uma esperança de paz - e, apesar de tudo o já sofrido, ainda assim trémula, ainda assim hesitante, ainda assim crítica. Oxalá! Mas, ao longo destas duas décadas, muitas vezes tenho recordado um livro da juventude, cuja leitura o meu tio me aconselhara: “L’Afrique noire c’est mal partie”. Não é texto colonialista, nem racista; é um livro pesaroso, um livro entristecido, um livro solidário; uma advertência dorida; infelizmente, um livro verdadeiro. Quem o leu, sabe.

Gilberto Santos e Castro lutou em Angola para que o livro não se repetisse aí, para que não se cumprisse a sua praga. Não conseguiu. Fez tudo o que podia, na extensão máxima que podia. Não era homem de mandar outros fazer o que não fizesse ele próprio também. Não era de gabinete, nem herói de telecomando. Irmão de oficiais e de soldados, cara e corpo de combate, homem da linha da frente, bravo e consequente, por isso mesmo era admirado e estimado.



Homem generoso, homem total, de entrega até ao limite, aconteceu-lhe, é certo, ser traído algumas vezes. Ser traído mesmo em sonhos e propósitos fundamentais. É coisa que acontece - e risco que se corre - naqueles que são generosos. Aos outros, os que nunca são generosos, não serão talvez jamais traídos - mas também nunca lhes acontece nada de jeito, nem nada que valha a pena. Não foi o caso do meu tio.

Coerente, esteve só várias vezes. A solidão dos homens grandes. Como um embondeiro: de pé! - naquela solidão suave e firme, acolhedora, da árvore vertical na savana sem fim.

Os “Comandos”, de que fora fundador, poucos anos depois de começar a Guerra de África, eram a sua fraternidade, um corpo e uma alma. Marcou o “Código Comando” e o “Código Comando” marcou-o a ele: «o COMANDO não foge ao perigo, não evita as situações que possam acarretar-lhe incómodos. Incumbido de uma missão, põe no cumprimento dela todas as suas possibilidades de actuação, todas as suas forças físicas, intelectuais e morais.»

Mama sume!



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 27.Abril.1996

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