O aborto e os direitos fundamentais da UE
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o quadro das
eleições europeias que se aproximavam, a esquerda decidiu armar uma campanha para
exigir o direito ao aborto no texto da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia. É um movimento coordenado da esquerda europeia, não só nacional, que
teve como marco de partida a votação nesse sentido de uma Resolução do
Parlamento Europeu, em Bruxelas, em 11 de Abril passado. É assim que foi fixado
este tema para a campanha eleitoral que decorre.
O outro tema
concertado à esquerda é a chamada permanente contra o avanço da
“extrema-direita”, amalgamando ID e ECR. Não creio serem linhas certas e estarem
a ter efeito no crescimento da esquerda – o que não é propriamente questão que
me preocupe. Mas são temas agitados em moldes claramente populistas, na mira de
também surfarem a onda populista que vai crescendo na política de hoje. Vou
deixar de lado a “extrema-direita”, muito favorecida pela concentração de
atenção e pelo protagonismo crescente que a esquerda provoca, e focar-me
unicamente no tema do aborto.
A abordagem é
populista e genuinamente um embuste: talvez um dos maiores logros a que, hoje, assistimos
nos planos político e jurídico. Por aquilo que se lê, o “direito ao aborto” é
uma derivada das reacções contra a reversão da célebre decisão Roe versus
Wade (1973) pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América, em Junho de
2022. Esta reversão não proibiu o aborto nos EUA, mas permitiu que os órgãos
legislativos de cada Estado legislem democraticamente como entendem. Isto
causou alarme entre os que se opõem, lançando a ideia de fixar nas
Constituições a proibição de leis contrárias ao aborto.
Nos EUA, não
havia e não há essa proibição na Constituição, tudo se passando no equilíbrio
da separação de poderes entre a jurisprudência federal do Supremo e os poderes
legislativos dos Estados. Mas, na Europa, o movimento quer bloquear o assunto,
a nível constitucional. Foi o que aconteceu, há meses, em França, aí, segundo o
respectivo processo e em sede própria – um caso mais sério, que tratarei noutra
ocasião. E é o que aconteceu no Parlamento Europeu e acontece, agora, na
campanha eleitoral, sem a menor seriedade, querendo levar eleitores ao engano.
No plano das leis, para que correm, é algo inteiramente inconsequente em si
mesmo.
O |
raciocínio destes movimentos da esquerda
sugere a ideia de que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia se
aplica, em geral, aos Estados-membros, subordinando inteiramente as suas ordens
jurídicas, estando acima das suas próprias Constituições e sendo, assim, uma
espécie de Constituição Suprema. Se não for assim, de que serve, neste âmbito e
com este propósito, uma norma inscrita na Carta? Juridicamente, não serve para
nada. Pois é! É isso mesmo que acontece: não serve para nada.
A esquerda
está farta de saber que é assim. O que quer, neste delírio populista, é levar o
povo, os cidadãos, os eleitores ao engano. Ao engano, quanto à ameaça. E ao
engano, quanto ao remédio.
A Carta dos
Direitos Fundamentais, adoptada em Dezembro de 2000, não era mais do que um
compromisso político. Com o Tratado de Lisboa, em Dezembro de 2009, passou a
ter força de lei, mas em âmbito limitado: aplica-se somente nos contextos em
que há conexão directa com a legislação da União Europeia. Ora, isto não tem
nada a ver com as leis dos Estados-membros que se aplicam ao aborto e que são
da sua competência exclusiva.
A Carta é
vinculativa para todas as instituições, órgãos, organismos e agências da União
Europeia. E aplica-se aos Estados-Membros da UE apenas quando estes executam o Direito
da União Europeia, não quando agem exclusivamente no âmbito do seu próprio Direito
nacional. Ou seja, este frenesim da esquerda é inútil, cria fantasmas e promete
fantasias. É, politicamente, o mais deplorável que pode existir – sobretudo em
eleições – e ao nível do mais rasteiro extremismo sem escrúpulos.
A |
excitação com que a esquerda lançou esta linha
na arena das eleições europeias, invectivando quem não concorda, poderia levar
a pensar que colocar a sua ideia dentro da Carta dos Direitos Fundamentais
seria empresa facílima, na linha recta dos poderes dos deputados que vamos
eleger. Leva as pessoas a pensar que seria algo tão acessível como uma revisão
constitucional. Nada disso!
Uma revisão
constitucional é, de facto, acessível, mas realmente não muito fácil. E uma
revisão da Carta é processo ainda mais complexo, pois, estando a Carta nos
Tratados, segue procedimentos similares aos da revisão destes. Primeiro, a
revisão é iniciada por proposta de qualquer Estado-Membro, do Parlamento
Europeu ou da Comissão Europeia. Segundo, deve ser convocada uma Convenção, com
representantes do Parlamento Europeu, da Comissão Europeia e dos
Estados-Membros (dos parlamentos nacionais e dos Chefes de Estado ou de Governo),
que recomenda um texto. Terceiro, o projecto de revisão recomendado pela
Convenção é apreciado pela Conferência Intergovernamental, que reúne representantes
dos governos dos Estados-Membros e que aprova, ou não, o texto de revisão. Enfim,
quarto, a revisão tem de ser ratificada por todos os Estados-membros da União
Europeia, nos termos das suas Constituições, envolvendo aprovação pelos
parlamentos nacionais e, nalguns casos, referendos (na Irlanda, por exemplo, é
obrigatório).
Alguém ouviu
a esquerda, em Portugal ou no resto da Europa, esclarecer detalhadamente este
processo? E informar como querem conduzi-lo? Não. Porquê? Porque a esquerda
pretende enganar. A verdade não serviria. A única coisa que interessa é criar
uma ilusão.
S |
e não fosse
assim, isto é, se não fosse este processo rigoroso e se a ordem constitucional
dos Estados não prevalecesse na sua própria esfera, gerar-se-iam vários perigos
para a democracia e para os Estados-membros, todos eles.
Se a Carta
dos Direitos Fundamentais fosse uma espécie de cabide do internato, onde cada
um pode ir pendurar o seu direitozinho e as eleições europeias o decidissem
directamente, nesse dia, acabava a soberania nacional dos Estados e nascia a
soberania popular europeia. Os eleitos europeus (onde nós pesamos menos de 3%)
teriam poderes para aprovar leis que subordinariam todas as ordens jurídicas
nacionais. Teria nascido o Super-Estado. Não é boa ideia.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
OBSERVADOR, 28.Maio.2024
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