O mexilhão do século
Quando rebentam os “combates dos chefes”, é sabido: o “mexilhão” não tem fama de se sair muito bem. Convocado sempre para engrossar as hostes , o costume é que o “mexilhão” - o cidadão anónimo - acabe por sair perdendo, enquanto “chefes” e seus próximos festejam outras proezas. A história funesta pode repetir-se no enredo da regionalização.
De facto... não está fácil! E a gente a ver.
No fim, com os jogos concluídos, as paradas elevadas ao limite e a conversa embrulhada em nó cego, as teses centralistas (moral da história) acabariam por vencer outra vez - fosse por o processo tropeçar pelo caminho, fosse por avançar, tolhido, coxo e engasgado, em condições políticas muito deficientes (e críticas). Com o que, em vez da necessária “reforma do século”, acabaríamos confirmados, em mudança sempre adia da, como o... “mexilhão do século”.
No referendo nacional, digladiam-se Guterres e Marcelo. Ambos protestam, por sinal, serem adeptos da regionalização. Mas a posição de ambos não é equivalente à partida. Quanto ao primeiro-ministro, defende convicções de sempre, estáveis, coerentes, conhecidas de toda a gente, mantidas e defendidas ao longo de anos. Guterres está cheio de razão ao considerar que a opção regionalizadora foi sufragada nas eleições de l de Outubro - o tema esteve no miolo da campanha para as legislativas; e é até natural que, atenta à viragem final anti-regionalista de Cavaco Silva, a deslocação de muitos eleitores do PSD para o PS tenha encontrado aí uma razão determinante. 1-0 para Guterres.
Marcelo também protesta convicções regionalizadoras - e desde a adolescência. Parece pretender, aqui, fazer regressar o PPD-PSD ao seu passado e às suas raízes nesta matéria. É professor de Direito Público - tecnicamente sabe também do que se trata. Porém, os “idos de 1994” não abonam nada em favor da real determinação “laranja” e, ao mesmo tempo, vozes fortes contra a regionalização de influentes dirigentes - Ferreira do Amaral, Durão Barroso, Dias Loureiro... - não permitem repor grande confiança. Por isso, o quadro já suscitou reservas entre muitos autarcas sociais-democratas, preocupados, para não falar do “regimento algarvio”. A ideia que passou é a de que a campanha pelo referendo nacional foi uma forma expedita e hábil de o novo líder do PSD gerir frescas contradições internas, sem nunca se comprometer num sentido ou noutro. “Deus e o diabo” não são de bom aviso; e o Marcelo Rebelo de Sousa personalista, e social-democrata, precisa de fazer mais para marcar, corno líder efectivo, as suas convicções neste domínio - nomeadamente afirmando-as melhor quanto ao fundo da questão e, sobretudo , ajudando, com sentido de Estado, a levar as suas convicções à prática.
O líder do PSD subiu a parada ao limite, ameaçando pôr em causa a própria revisão constitucional. Se isso se produzisse afinal, não sei se o PSD ganharia tanto com isso. Na legislatura passada, o PSD ajudou já a comprometer a revisão. Uma reedição em versão de bloqueio poderia custar preço elevado - nomeadamente, com toda a reforma do sistema eleitoral por fazer e discutir, entre vários outros pontos.
Ao mesmo tempo o PS acenou sinais de abertura. E Guterres, como o ministro João Cravinho, têm marcado pontos sucessivos no rigoroso e paciente posicionamento da regionalização, esfriando toda e qualquer febre aventureira. Guterres pode chegar aos 2-0.
O referendo, porém, é coisa que mexe com a sociedade. E Marcelo esteve brilhante na defesa que fez das suas propostas processuais no Crossfire da SIC. Muito mal irá o PS, se, à barragem referendária, responder com um fundamentalismo anti-referendo.
É verdade transparente corno água que, como Marcelo insistiu, quer projectos de lei do PS sobre as regiões pressupõem mexidas na Constituição, quer o próprio projecto de revisão constitucional do PS contêm propostas de alteração neste capítulo - e não se percebe, por isso, a inversão da sequência lógica. Depois, Marcelo foi convincente na exibição do calendário, mostrando que o objectivo “eleições regionais 1997”, com as autárquicas, não estaria comprometido. O PS não poderá também fazer qualquer referendo regional sem revisão anterior da Constituição. Enfim, o PS, pese a legitimidade de que dispõe, terá muita dificuldade em explicar por que é que aceita referendos regionais e rechaça o referendo nacional.
Guterres-1, Marcelo-1. E possibilidades de Guterres-1, Marcelo-2.
Verdade seja que o referendo não seria, aqui, indispensável. Primeiro, a Assembleia da República dispõe de legitimidade democrática, bem recente, que ninguém de boa-fé pode questionar. Segundo, diversamente de falsos “alarmes” contra alegada falta de participação nacional, o voto maioritário das assembleias municipais é exigido, desde sempre, pela Constituição para todas e cada uma das regiões. Terceiro, a regionalização de que se trata não é política, mas apenas administrativa, autárquica - o processo legislativo parlamentar seria mais do que suficiente para tratar de urna reforma com esta estrita medida. E, quarto, não deixa de ser curioso que sejam justamente aqueles que mais bramam contra os riscos de uma regionalização política (que nunca esteve, nem está prevista) que acabem paradoxalmente por politizar o processo ao limite máximo, pelos termos excessivos em que agitam o drama referendário.
Mas, se não era necessário, o referendo é desejável - claramente desejável.
O ambiente está de tal forma que seria, aliás, recomendável que, daqui até ao referendo - dissolvendo-se nesse dia -, se formasse um (ou mais do que um) amplo movimento cívico, urna aliança para a regionalização: um movimento civil, transversal e não partidário, aberto a pessoas das mais variadas convicções, sem complexos nem outro tipo de preconceitos e que, sem prejuízo do papel importante e decisivo dos partidos políticos, fosse capaz de se ater e concentrar no essencial. Que descarte bairrismos fragmentários - a concreta definição das regiões competirá apenas, depois, às respectivas populações, seja através (hoje) das assembleias municipais, seja directamente (se a revisão constitucional permitir) nos referendos regionais. Que pontue rigorosa e serenamente, mas com convicção, segurança e paixão, aquilo que está estritamente em causa - uma reforma administrativa vital da administração central para a administração regional , não uma falsificada explosão política do Estado, nem um cínico e enviesado atropelo dos municípios. Que afirme esta mudança crucial, enquanto reforma de primeira grandeza para o desenvolvimento do país, o reequilíbrio do território, uma nova dinâmica da economia e uma administração mais responsabilizada, mais próxima, mais diligente, mais envolvida, mais participada.
O referendo é bom. Deve ser bem-vindo. Não é um recuo; é um avanço ao encontro dos cidadãos. Fomenta o esclarecimento. Combate e desfaz muita galopante desinformação que anda por aí. Permite logo uma decisão amplamente participada, se é que estamos efectivamente a falar (e a querer) participação na administração. Protege o sentido ele pertença dos portugueses.
Estou, aliás, convicto de que o referendo se ganha, porque estou convicto de que esta reforma é muito boa para o país e o país a quer. Tamanha é a quase unanimidade entre os autarcas que estou mesmo em crer que o resultado do referendo nacional poderá ter o tom da recente sondagem DN-TSF-Euroteste, entre presidentes de Câmara: Regionalização - 92 por cento; não - 8 por cento. Porventura não tão esmagador, mas claramente favorável. Sobretudo quando todos os portugueses puderem ser devidamente esclarecidos - o que nada assegura tão bem como o referendo, nomeadamente se contar também com o tal envolvimento, ao lado dos partidos, de movimentos cívicos.
PS e PCP são a favor. O PSD está dividido, com tendência “pró”. E o PP dividido está, com tendência “anti”. Vamos, pois, a votos - o referendo é “o teste da barata”.
Pode ser, é facto, que me engane nas contas - e o referendo, afinal, se perca. Se for através de referendo, também estará bem.
Não tenho, desde sempre, a menor dúvida sobre as vantagens da regionalização - e os anos têm consolidado essa convicção, querida a todos os personalistas, que foram eles que cunharam, pela influência europeia dos democratas-cristãos, hoje reunida no PPE, o tão em voga princípio da subsidariedade.
Hoje, não penso só que é vantajosa; creio - mais ainda - que é necessária e indispensável. Não tenho a menor dúvida sobre os benefícios múltiplos que daí advirão para Portugal e para as populações, atendendo de vez a problemas gravíssimos que se acumulam, se adensam e se agravam, como duplo efeito de uma persistente insensibilidade iluminista e de uma vertigem estúpida: áreas metropolitanas cada vez mais afogadas e um interior desprezado, desaproveitado, esquecido e... desertificando-se. Mas, tendo estas convicções firmes, há sempre a história do escuteiro e da velhinha: o escuteiro quer fazer a boa acção do dia e ajudar a velhinha a atravessar a rua; mas... e se a velhinha, ela, não quer atravessar a rua? O escuteiro força-a?
Venha, pois, o referendo. Que seja o cidadão a decidir. Dê-se voz ao “mexilhão”. Para que, de uma forma ou de outra, não seja tramado no fim. E para que, ao contrário do costume, não fique a queixar-se. Do que for.
Oxalá Guterres e Marcelo saibam, no momento decisivo, superar “tácticas & estratégias”, guiar-se por um nuclear sentido de Estado e, fiando-nos nas convicções que afirmam, entender-se num objectivo comum, demasiado importante para a administração pública e o país: que a regionalização se faça mesmo; que se faça nas melhores condições, prevenindo riscos perversos; e que se faça com o mais vasto consenso democrático e directa adesão popular. Para durar. E frutificar.
O referendo, porém, é coisa que mexe com a sociedade. E Marcelo esteve brilhante na defesa que fez das suas propostas processuais no Crossfire da SIC. Muito mal irá o PS, se, à barragem referendária, responder com um fundamentalismo anti-referendo.
É verdade transparente corno água que, como Marcelo insistiu, quer projectos de lei do PS sobre as regiões pressupõem mexidas na Constituição, quer o próprio projecto de revisão constitucional do PS contêm propostas de alteração neste capítulo - e não se percebe, por isso, a inversão da sequência lógica. Depois, Marcelo foi convincente na exibição do calendário, mostrando que o objectivo “eleições regionais 1997”, com as autárquicas, não estaria comprometido. O PS não poderá também fazer qualquer referendo regional sem revisão anterior da Constituição. Enfim, o PS, pese a legitimidade de que dispõe, terá muita dificuldade em explicar por que é que aceita referendos regionais e rechaça o referendo nacional.
Guterres-1, Marcelo-1. E possibilidades de Guterres-1, Marcelo-2.
Verdade seja que o referendo não seria, aqui, indispensável. Primeiro, a Assembleia da República dispõe de legitimidade democrática, bem recente, que ninguém de boa-fé pode questionar. Segundo, diversamente de falsos “alarmes” contra alegada falta de participação nacional, o voto maioritário das assembleias municipais é exigido, desde sempre, pela Constituição para todas e cada uma das regiões. Terceiro, a regionalização de que se trata não é política, mas apenas administrativa, autárquica - o processo legislativo parlamentar seria mais do que suficiente para tratar de urna reforma com esta estrita medida. E, quarto, não deixa de ser curioso que sejam justamente aqueles que mais bramam contra os riscos de uma regionalização política (que nunca esteve, nem está prevista) que acabem paradoxalmente por politizar o processo ao limite máximo, pelos termos excessivos em que agitam o drama referendário.
Mas, se não era necessário, o referendo é desejável - claramente desejável.
O ambiente está de tal forma que seria, aliás, recomendável que, daqui até ao referendo - dissolvendo-se nesse dia -, se formasse um (ou mais do que um) amplo movimento cívico, urna aliança para a regionalização: um movimento civil, transversal e não partidário, aberto a pessoas das mais variadas convicções, sem complexos nem outro tipo de preconceitos e que, sem prejuízo do papel importante e decisivo dos partidos políticos, fosse capaz de se ater e concentrar no essencial. Que descarte bairrismos fragmentários - a concreta definição das regiões competirá apenas, depois, às respectivas populações, seja através (hoje) das assembleias municipais, seja directamente (se a revisão constitucional permitir) nos referendos regionais. Que pontue rigorosa e serenamente, mas com convicção, segurança e paixão, aquilo que está estritamente em causa - uma reforma administrativa vital da administração central para a administração regional , não uma falsificada explosão política do Estado, nem um cínico e enviesado atropelo dos municípios. Que afirme esta mudança crucial, enquanto reforma de primeira grandeza para o desenvolvimento do país, o reequilíbrio do território, uma nova dinâmica da economia e uma administração mais responsabilizada, mais próxima, mais diligente, mais envolvida, mais participada.
O referendo é bom. Deve ser bem-vindo. Não é um recuo; é um avanço ao encontro dos cidadãos. Fomenta o esclarecimento. Combate e desfaz muita galopante desinformação que anda por aí. Permite logo uma decisão amplamente participada, se é que estamos efectivamente a falar (e a querer) participação na administração. Protege o sentido ele pertença dos portugueses.
Estou, aliás, convicto de que o referendo se ganha, porque estou convicto de que esta reforma é muito boa para o país e o país a quer. Tamanha é a quase unanimidade entre os autarcas que estou mesmo em crer que o resultado do referendo nacional poderá ter o tom da recente sondagem DN-TSF-Euroteste, entre presidentes de Câmara: Regionalização - 92 por cento; não - 8 por cento. Porventura não tão esmagador, mas claramente favorável. Sobretudo quando todos os portugueses puderem ser devidamente esclarecidos - o que nada assegura tão bem como o referendo, nomeadamente se contar também com o tal envolvimento, ao lado dos partidos, de movimentos cívicos.
PS e PCP são a favor. O PSD está dividido, com tendência “pró”. E o PP dividido está, com tendência “anti”. Vamos, pois, a votos - o referendo é “o teste da barata”.
Pode ser, é facto, que me engane nas contas - e o referendo, afinal, se perca. Se for através de referendo, também estará bem.
Não tenho, desde sempre, a menor dúvida sobre as vantagens da regionalização - e os anos têm consolidado essa convicção, querida a todos os personalistas, que foram eles que cunharam, pela influência europeia dos democratas-cristãos, hoje reunida no PPE, o tão em voga princípio da subsidariedade.
Hoje, não penso só que é vantajosa; creio - mais ainda - que é necessária e indispensável. Não tenho a menor dúvida sobre os benefícios múltiplos que daí advirão para Portugal e para as populações, atendendo de vez a problemas gravíssimos que se acumulam, se adensam e se agravam, como duplo efeito de uma persistente insensibilidade iluminista e de uma vertigem estúpida: áreas metropolitanas cada vez mais afogadas e um interior desprezado, desaproveitado, esquecido e... desertificando-se. Mas, tendo estas convicções firmes, há sempre a história do escuteiro e da velhinha: o escuteiro quer fazer a boa acção do dia e ajudar a velhinha a atravessar a rua; mas... e se a velhinha, ela, não quer atravessar a rua? O escuteiro força-a?
Venha, pois, o referendo. Que seja o cidadão a decidir. Dê-se voz ao “mexilhão”. Para que, de uma forma ou de outra, não seja tramado no fim. E para que, ao contrário do costume, não fique a queixar-se. Do que for.
Oxalá Guterres e Marcelo saibam, no momento decisivo, superar “tácticas & estratégias”, guiar-se por um nuclear sentido de Estado e, fiando-nos nas convicções que afirmam, entender-se num objectivo comum, demasiado importante para a administração pública e o país: que a regionalização se faça mesmo; que se faça nas melhores condições, prevenindo riscos perversos; e que se faça com o mais vasto consenso democrático e directa adesão popular. Para durar. E frutificar.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 20.Abril.1996
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