Somos personalistas


A eleição de Marcelo Rebelo de Sousa para a liderança do PSD completa a "grelha de partida" para o novo ciclo político aberto, nas últimas eleições legislativas e presidenciais, pela saída dos dois homens que marcaram a última década em Portugal: Cavaco Silva e Mário Soares. E a forma como se desenrolou e por que se concluiu o congresso "laranja" é de molde a animar significativamente o fluir deste ciclo. Desde já. Não é só a circunstância de ter terminado uma prolongada crise de liderança do PSD, nem são só também as múltiplas qualidades próprias de Marcelo. É o facto de, diversamente das "birras" que desperdiçaram o recente congresso do PP, o congresso do PPD/PSD, no meio dos seus incidentes, das leais disputas e dos seus códigos próprios, ter efectuado um profundo e amplo debate de ideias, clarificando. E é a forma como Marcelo soube definir, agregar, balizar e apontar o espaço político futuro de uma oposição reconstituída.

António Guterres terá que cuidar-se mais. Não poderá continuar a cometer ou a consentir tantos erros quantos os que muitos lhe têm apontado já, ora ao seu Governo, ora ao seu partido. E é evidente que, terminado o interregno que se arrastava desde a demissão de Fernando Nogueira, acabou também a trégua que prolongara artificialmente uma aparência de "estado de graça".

Marcelo Rebelo de Sousa destacou o posicionamento personalista. E, nestes tempos pós-­queda do Muro, tão avessos à discussão de quadros de valores e de princípios, é importante ouvir uma tão explícita afirmação doutrinária.

Fê-lo logo no seu primeiro discurso, definindo: "Somos personalistas!" Retomou-o mais desenvolvidamente, no discurso de fecho, quer na forma cuidada corno escolheu definir a identidade passada e futura do PPD/PSD - "popular, democrática e reformista"-, quer no modo como precisou outros traços - "personalistas, reformistas, adeptos da integração europeia, anti-estatistas mas solidários". E logo extraiu e declinou um extenso programa político consequente.

Confesso que o personalismo é, para mim, como que uma palavra ou uma ideia mágica, desde os meus 20 anos, quando, trabalhando com Adelino Amaro da Costa, a aprofundei para lá de um simples instinto embrionário e adolescente. Haverá muita gente, porventura mais impressionável pelos "pragmatismos" a eito, que não entenderá (ou não partilhará) a relevância do que quero dizer. Mas há boas razões para pensar como acredito. Sem ir aqui mais longe, a conclusão evidente é a de que, em política, só pode confiar-se em duas coisas: nos homens e mulheres políticos, consoante os traços próprios do seu carácter e as suas próprias características; e nas ideias em corpo de doutrina. Tudo o mais "leva-o o vento".

"Diz-me os teus valores, dir-te-ei quem és." Foi bom ouvir o regresso das Ideias, pela voz do novo líder do PSD.

O pensamento personalista foi, não só em Portugal, mas na Europa, o grande triunfador latente da segunda metade do século XX. E poderá ser também a base doutrinária moderna por que os povos caminharão na viragem do século, sobretudo se, passando do estádio de filosofia disseminada, vencer a prova da organização política concreta e do enraizamento social.

O mundo, de resto, e sobretudo as novas gerações, andam em busca disso mesmo: de novas referências de sistema. Os vários revivalismos "neo-isto" ou "neo-aquilo" ou a tentativa constante de rebaptizar ideologias velhas, repondo-as com qualificativos de "humanista" ou "de rosto humano", são claro sintoma dessa procura; e evidência de que o lugar de encontro se chama "humanismo personalista" ou só personalismo.

Numa história das ideias políticas tão marcada pela dialéctica infrene desde meados do século passado, por materialismos e extremismos à esquerda e à direita e pelo rol de violências ou de injustiças que inspiraram de um lado e de outro, não é difícil identificar uma comum influência personalista, de afirmação do lugar central da Pessoa Humana, nos movimentos fundamentais da segunda metade do séc. XX, que apontam claramente ao futuro. Foi a "desmarxização" dos socialistas, foi a "queda do Muro" e o fim do bloco comunista, é a "socialização" dos liberais ou a "liberalização" dos socialismos; é a construção europeia, edificada claramente para o serviço da paz e da coesão económico­-social; e por aí fora.

Ora aflorando em textos da doutrina social da Igreja, ora em múltiplos escritos agnósticos, o personalismo foi expandindo a sua influência, fazendo-a sentir nos mais diversos quadrantes e marcando difusamente todas as mudanças principais que ficaram. E, se, em larga medida, ao longo do séc. XX, o primado das ideias foi assumido por correntes socialistas de vários matizes, este morreu e a sua "moda" passou de vez. Mas o primado das ideias voltará à política e far-se-á seguramente sob a matriz do personalismo e do seu modo integrado de compreender a pessoa e a sociedade, demarcando repentismos radicais e agregando ao centro, de modo dinâmico e não meramente geométrico, na base de valores militantes socialmente enraizados e não no simples fascínio elegante de algumas elites.

Esse terreno, que sempre tivera cultores no PPD/PSD, em dispersos sectores independentes e na parte do antigo CDS mais militante, social e popular, Marcelo proclamou-o e reclamou-o em exclusivo para si e para o partido que lidera. Desde que o PP resolveu desertar do CDS sobre que se construiu (e excomungá-lo mesmo), é um caminho devoluto, onde não terá qualquer rival.

Marcelo, em resposta a Santana Lopes, ainda recordou o velhinho e fugaz "Governo PS/­CDS", acenando com o risco (que estaria aí) de o PP e o PS se entenderem numa reedição da antiga "estratégia da tenaz" ou, como Amaro da Costa a definira, das "bossas do camelo". Mas Marcelo sabe que a comparação não é possível e que qualquer coincidência não passa de caricatura.
Ao contrário, é claro que Marcelo, pelo discurso e por múltiplos indícios, se prepara para fazer exactamente o contrário: "empurrar o PP para canto", consolidando o PPD/PSD como o único e grande espaço do centro político, do centro-esquerda à direita moderada, incluindo todo o centro e o centro-direita. A matriz personalista servirá seguramente para isso mesmo, assinalando-a como espaço congregador e cimento de referência. No meu entender, faz muitíssimo bem, pois é Portugal quem mais precisa.

Um dos propósitos principais do PPD/PSD é o de reconstruir e, desta vez, sedimentar as fronteiras que o cavaquismo rasgou. Cavaco Silva, por índole própria, por simples desnecessidade ou porque não dispôs do tempo suficiente, não o resolveu por inteiro e, como se viu por várias eleições, o PPD/PSD, que até 1985 nunca ultrapassara a fasquia dos 30 por cento, não conseguiu, apesar de tudo, enquanto tal, crescer eleitoralmente além de 35 por cento, mesmo quando Cavaco conquistava as suas maiorias. As presidenciais mostraram-no outra vez.

O PSD - está à vista - quer partir à reorganização desse espaço e capitalizá-lo, de forma a reconquistar e, agora, "soldar" uma outra maioria. A anunciada assembleia magna da social-democracia, com este ou com outro título mais mobilizador e menos ao modo de uma "academia de história", será por certo uma ferramenta desse propósito favorito.

Às vezes, esta fome cega; e alimenta a vertigem de, na conquista do que se quer, perder o que já se tem.

Porém, Marcelo Rebelo de Sousa, compreendeu bem, diversamente do que demoliu o CDS desde meados dos anos 80 até dar lugar ao PP final, que só se cresce reunindo, e não fragmentando o que já se é, ou querendo reescrever a história e os fundamentos dos grupos políticos.

Compreendeu e mostrou-o. A bizarríssima palavra "refundação", que é a loucura à la page de muito dirigente político suicidário, não se ouviu uma única vez no congresso de Santa Maria da Feira. Antes Marcelo foi brioso na reconvocação de todo o passado, assumindo-o ponto a ponto e na íntegra; e foi vigoroso ao afastar o espectro de qualquer crise de identidade "laranja". O personalismo será, talvez, o segredo bem guardado da "social-democracia à portuguesa".

O congresso teve várias notas, importantes, que vão acentuando o carácter do PPD/PSD. Por exemplo, o comportamento exemplar de Cavaco Silva, presente mas contido, referência segura mas não intrometido, por vezes até de novo tímido quando unanimemente ovacionado. Que contraste, por exemplo, com a história do PS e as reincidências freudianas do soarismo ... Santana Lopes terá sido premonitório, ao apontar a António Guterres "o partido que tem". 


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 6.Abril.1996


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