Claques? Não, obrigado


Sou o sócio nº 10.816 do Benfica. Já fiz 25 anos de sócio. Alturas houve em que era um espectador frequente. Desde há anos, porém, que não vou ao futebol para as bancadas. A verdade é que aquilo me aborrece cada vez mais. Até quando se ganha, há quem estrague tudo.

Fui um dos intervenientes no último Congresso do Benfica, justamente sobre a "mística". A verdade é que a mística foi adoentada desde há uns anos para cá e tem sido muito maltratada, sob mal assimilados e pior digeridos sopros da "modernidade". Em minha opinião, quanto ao que se passa no campo, Futre e Artur Jorge, cada um de sua vez, deram-lhe golpes fatais. E, quanto ao que se passa nas bancadas, as claques vão-lhe dando os últimos golpes de misericórdia.

Quando tinha a idade que o meu filho rapaz tem hoje, não perdia um domingo de futebol no Estádio da Luz. Também é sócio - tem o nº 63.868. Pede-me para ir. As irmãs também. Digo-lhes sempre que não. A verdade é que tenho medo do que lhes possa acontecer. Algumas vezes, dei comigo a argumentar com ele "racionalmente" - a sério - que tem ainda que crescer um bocado em altura, que ganhar peso e que ser mais entroncado. Questão de "cabedal". Torci-me de o ter dito e pensado. A verdade é que os estádios não são, hoje, sítios seguros e ... mais vale prevenir.

A morte no Estádio Nacional, há uma semana, ultrapassa toda e qualquer capacidade de compreensão. Não há razão para alguém morrer num estádio de futebol - nem para ser agredido, nem para ser miseravelmente assassinado por um míssil disparado da bancada oposta.

Nunca consegui entender por que se tolera a existência das claques. Nunca consegui entender a teia de cumplicidades que se foi criando entre as direcções dos clubes e esses bandos de selvagens. E menos quero entender a passividade dos governos e das autoridades, desde há largos anos, perante estas autênticas associações de malfeitores e escolas de marginalidade.

De um modo geral, os governos têm estado de cócoras diante do futebol. Nunca percebi porquê, nem para quê. Nas questões do fisco, é o que se sabe. Quanto a levar os clubes e as organizações do desporto a honrarem efectivamente as obrigações que contraíram no plano da formação da juventude, os discursos são mais do que os actos. E até quando está em causa a elementaríssima ordem pública, a abdicação continua a ser quase completa. Já ouvi várias explicações políticas sobre o peso social do futebol, eufemismo destinado a explicar a sistemática complacência diante da degradação acelerada do fenómeno ainda dito futebolístico. Mas isto?...

No sábado passado, no Jamor, assistimos todos à mais clamorosa demonstração de impotência das autoridades. Ouvi na rádio e segui na televisão. Ouvi o presidente da Federação Portuguesa de Futebol. Ouvi o Presidente da República. Ouvi vários outros dirigentes do Estado e do futebol. Preparava-se a decisão salomónica de deixar acabar o jogo, mas não entregar a taça. Todos estavam de acordo que era uma "tragédia" e que "a festa tinha sido estragada". Mas, além das "temíveis sanções da UEFA", era "imprudente" interromper o jogo, pois tal facto iria agravar o caso e desencadear violências imprevisíveis.

Voilá! ... Aqui temos o Estado agachado diante da multidão.

Estava lá o Presidente, o primeiro-ministro, o Governo em peso, a fina flor do futebol já cheia de "utilidade pública desportiva". O pior de tudo é que a avaliação foi certa, o diagnóstico correcto e a decisão ajustada ao ambiente de "crise". Mas o facto diz tudo: o Estado é incapaz! O Estado é mais fraco do que as tribos. Há um ano foram os incidentes no Bairro Alto, que também acabaram com um morto. Foi a isto que as claques nos fizeram chegar: o Estado pasmado e encolhido, basbaque e paralítico.

Estão a escaqueirar tudo? Deixem-nos escaqueirar, senão é pior. Morreu alguém? Coitado ... é uma pena. Mas deixem seguir, senão é pior. Andam a vandalizar o que encontram pelo caminho? Deixem andar, senão é pior. Em dia de futebol, com claques à vista, o Estado renuncia a boa parte das suas atribuições. Quando os factos aquecem, limita-se, como nos western, àquele procedimento dos vaqueiros procurando encaminhar a manada louca dos bisontes, desembestados pela pradaria. Durante a semana, o PÚBLICO resumia tudo, nas palavras de um agente da PSP que habitualmente faz serviço nos estádios: "Isolados são pacíficos, quase cobardes; em grupo assemelham­-se a uma manada selvagem, capaz de fazer frente a quem lhes surja pela frente." Típico e elucidativo. 

A verdade é que as claques não servem para nada. Como amuletos "desportivos", usam estes mimos: soqueiras, sprays, potes de fumo, tochas, very-lights, navalhas, facas de mato, picadores, sovelas, discos metálicos, matracas, correntes, cabos eléctricos, cassetetes extensíveis e - suprema arte do engenho criador - batatas com pregos!... Ah! Também usam gorros, bonés, bandeiras e cachecóis, mas é para disfarçar. O que verdadeiramente os distingue é a simbologia violenta, os cartazes e os berros recheados de palavrões, o gesticular rasca, o ânimo destrutivo, todos os estereótipos da má-criação, o ritualismo tribal, as denominações fanáticas e extremistas, o hiperculto do ultra-­excesso, os tiques militarizados, a escolarização da fúria, o estagiar da brutalidade, o exercício bronco e grunho, o banditismo iniciático, os cânticos grosseiros, os clamores de guerra, a sinalética suástica e céltica. Não gritam; urram. Não festejam; agridem. Não se manifestam; exibem-se. Não incitam; insultam. Não torcem; emporcalham.

Onde é que está o desporto no meio disto? Duvido que haja algum jogador em campo que se entusiasme e se estimule mercê destas matilhas de bandoleiros, que abafam, envergonham e, às vezes, assustam; que destruíram, que difamam e que atropelam aquilo que eram as verdadeiras massas associativas.

Ao que li, um grupo de 50 sócios ilustres do Benfica enviou a Manuel Damásio um abaixo-assinado em que se reclama "o fim do apoio económico, social e institucional" às claques que usam o nome do Benfica. Podem contar com mais urna assinatura. Mas não chega.

É preciso pôr termo às claques. As organizações desportivas deviam tomar a dianteira e decretar medidas drásticas. Mas, não o fazendo, como infelizmente é de esperar, o Governo e a Assembleia da República não podem renunciar à autoridade que ao Estado pertence, em nome da ordem pública e da própria política desportiva.

Antes de medidas mais severas e directas (inteiramente justificáveis, aliás), bem podem começar pelo mais simples: o corte imperativo de todo e qualquer apoio público, financeiro, técnico e administrativo, a nível da administração central, regional e local, aos clubes que, até ao início da próxima época desportiva, não tenham tomado medidas dirigidas à dissolução efectiva das claques ou, ao menos, ao impedimento absoluto da sua entrada nos estádios. Para grandes males, grandes remédios.

Cito o artigo 1 º da Lei de Bases do Sistema Desportivo: "...a generalização da actividade desportiva, como factor cultural indispensável na formação plena da pessoa humana e no desenvolvimento da sociedade." Lindo... mas a soar um pouco a extraterrestre. Ou alguns dos princípios fundamentais do desporto, no artigo 2º: "elevado conteúdo formativo"; "valência educativa e cultural"; "projecção nas políticas de saúde e de juventude". Cadê? Cínica ironia.

Só há uma solução: proibir totalmente as claques e acabar de vez com elas. Antes que matem mais alguém. Antes que mandem mais alguém para o hospital. Antes que ocorra desgraça maior. E antes que acabem também com o que resta do futebol.

José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 25.Maio.1996

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