E Timor, aqui à mão?


Apesar dos efeitos do vendaval anti-regionalista, há dias em que, face a discursos mais brandos e à evolução do pingue-pongue das posições à volta da ausência do PSD, apetece ser de novo optimista e pensar que, apesar dos extremos a que se chegou, o processo da revisão constitucional poderá não estar totalmente comprometido.

Os temas fundamentais da agenda são conhecidos: o sistema eleitoral, o referendo europeu (sobre o Tratado da União ou sua revisão) e, agora também, a regionalização e o(s) seu(s) referendo(s). São estes, aliás, os temas que o líder do PP sublinhou na abertura do processo, para o efeito de procurar marcar o centro dos debates e capitalizar a iniciativa "pêpista" na circunstancial ausência do PSD.


Há, porém, outra matéria, constante do projecto do PP e que tem a maior relevância. Diz respeito a Timor e consiste num aditamento ao art. 293º, ao qual, mantendo a reafirmação do que lá se encontra, se aditaria um nº 3: "No exercício das suas competências, o Presidente da República nomeará um Alto Comissário para Timor-Leste."

Como ideia, não é totalmente nova, o que em nada diminui a importância extraordinária da iniciativa parlamentar e do que, por ela, venha a resultar da revisão efectiva. O duque de Bragança, D. Duarte Pio, tem abordado repetidas vezes esta ideia. E eu próprio, faz agora seis anos, a seguir a um outro artigo de Adriano Moreira sobre a questão timorense, avançara com aquela mesma ideia, num artigo então publicado no "Diário ele Notícias", em 16 de Abril de 1990, que intitulei de "Um governador português para Timor". É daí, aliás, que recordarei várias passagens, praticamente sem tirar nem pôr, pois infelizmente o problema mantém-se igual.

Não está em causa a insistência com que o Presidente da República, o Governo e a diplomacia portuguesa vêm abordando o assunto em várias instâncias e oportunidades. Portugal tem conseguido, aliás, até hoje, com maior ou menor dificuldade, fazer prevalecer a posição do povo timorense e, reflexamente, a sua, não só em todas as votações efectuadas nas Nações Unidas, mas crescentemente noutros âmbitos internacionais.


Só que os efeitos práticos não têm sido muitos. E a questão é, por isso, a de que, podendo fazer-se algo de mais efectivo para reforço da causa de Timor-Leste, esse algo deva ser feito, aproveitando-se todas as virtualidades do direito internacional. Isso mesmo é reclamado pelo texto actual do art. 293º da Constituição, que, depois de vincular Portugal a "promover e garantir o direito à autodeterminação e independência de Timor-Leste", compromete o Presidente da República e o Governo a "praticar todos os actos necessários" à realização daqueles objectivos.


Ora, a designação de urna espécie de "governador no exílio" - e "no exílio" apenas por força da actuação ilegítima e ilegal da Indonésia ocupante - seria justamente uma forma de dar um passo em frente, um salto qualitativo, na luta pela causa timorense ao abrigo das responsabilidades portuguesas, bem corno de extrair plenos efeitos, ao abrigo da Carta das Nações Unidas, da declaração reiterada pela ONU de que, por um lado, Timor é um "território não-autónomo" e, por outro, Portugal é a "potência administrante" até que a autodeterminação possa concretizar-se.


O facto exigiria, depois, a publicação de uma lei estatutária provisória, adequada às circunstâncias, precisando-se o mandato do Alto Comissário e definindo-se o modo de articulação deste com o Presidente da República e o Governo, no âmbito das atribuições e competências de cada um. E exigiria ainda, a seu tempo, a escolha para o lugar de urna personalidade com as capacidades políticas, jurídicas e diplomáticas e, bem assim, a imaginação adequadas a urna missão tão atípica e sui generis.


Mas este passo - estou em crer - representaria um facto político internacional de primeira grandeza, conferindo novo fôlego e enquadramento quer às aspirações legítimas do povo maubere, quer à afirmação persistente das posições e das responsabilidades solidárias de Portugal. A ilegitimidade da ocupação e da administração indonésia ficaria mais claramente exposta e a nu perante toda a comunidade internacional, além de que, no desempenho das responsabilidades que nos assistem, a posição portuguesa passaria a dispor de um interlocutor permanente e investido num quadro que deixaria bem claro, em si mesmo, aos olhos de todos, a usurpação de mandato que a Indonésia consumou há duas décadas, pela violência e contra o Direito.

Tenha-se presente a importância qualitativa de Portugal, irmanando-se mais no sofrimento dos timorenses espoliados dos seus direitos, passar a dispor de um sinal notório e personalizado do que significa e representa a agressão indonésia: de um Alto Comissário, exclusivamente dedicado com o seu gabinete, ao estudo, ao recenseamento, à denúncia, à comunicação e à condenação, nos planos nacional e internacional, de todas as vertentes do problema, desde as constantes violações dos direitos humanos às matérias mais complexas no domínio institucional.


Imagine-se o Alto Comissário e a sua equipa a produzirem relatórios constantes. Pense-se no Alto Comissário, despojado pela força indonésia da plenitude do exercício do seu mandato, fundado e legitimado pela Carta das Nações Unidas, a discursar perante a Assembleia Geral da ONU ou a intervir continuamente noutras múltiplas instâncias internacionais. Adivinhe-se o reforço da pressão assim induzida sobre a generalidade das chancelarias estrangeiras, a respeito da causa de Timor. Avalie-se o impacto e o eco de uma actuação com este recorte nos grandes meios de comunicação social internacionais e, por via deles, na opinião pública mundial.
Num ponto de melindre crucial, os papéis e as dificuldades quase que se inverteriam entre Portugal e a Indonésia.

É manifesto, na verdade, que o problema só se resolverá em definitivo por intermédio do estabelecimento de algum tipo de diálogo, com maior ou menor mediação de terceiros, entre Portugal - potência administrante - e a Indonésia - potência ocupante. Ora, hoje, Portugal corre sempre o risco, nesta frente, de, ao mínimo deslize ou interpretação maliciosa, os seus movimentos poderem ser havidos ou apresentados como reconhecimento e aceitação da situação de facto. Ao contrário, a partir da nomeação do Alto Comissário, o ónus inverte-se por inteiro, sempre que, por estatuto, este seja incluído na representação portuguesa ou a encabece mesmo - a dificuldade passará por inteiro para o lado da Indonésia, assim confrontada com a inevitabilidade de reconhecer implicitamente a ilegitimidade das suas posições básicas, da agressão que praticou e da ocupação que mantém há duas décadas.

A eventual revisão constitucional do art. 293º deve, por isso, ser acompanhada com a maior atenção. Veremos o que todos os partidos pensam sobre uma proposta que o PP já apresentou quanto a um novo nº 3. Veremos como reagem ao reenfoque de uma elementar questão de princípio. E veremos sobretudo da sua abertura e disponibilidade a, de modo mais imaginoso, enérgico e visível, através da instituição do Alto Comissário português para Timor-Leste, contrapor ao facto consumado da força e da violência indonésias um outro facto consumado: o facto consumado do Direito - do direito constitucional português e do direito internacional, aceite e reconhecido pela comunidade dos povos e dos Estados em todo o mundo.  


José Ribeiro e CastroJurista

PÚBLICO, 11.Maio.1996

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