Palhaçada
Salvo o devido respeito - sempre “com o devido e profundo respeito pela Assembleia da República” (!?) que os deputados de saída não tiveram rebuço em declamar-, o que se viu no Parlamento, na passada quinta-feira, foi uma autêntica palhaçada. Por muito auto-regozijo que o feito possa causar nos próprios e seus próximos, intoxicados na aceleração retórica a milhas de distância da realidade, ou por muitas “palmadinhas” que recebam dos centralistas, a patética retirada dos deputados do PP e do PSD desonra o mandato que os pôs lá. Uma vergonha lamentável! Pelo tom e pelo caminho por que enveredaram, pareceram investir-se no estatuto exclusivo de “pais da pátria”. Deram tristíssima mostra. Se a moda pega, esta legislatura pode já não ter conserto.
A meio desta estrondosa viagem para a estratosfera da demagogia, chegaram a ser feitas comparações entre a regionalização e o PREC e sugestões de que atitudes de obstrução radical honrariam o exemplo do voto contra a Constituição do CDS em 1976. É mentira!
Comparar a regionalização ao PREC só pode ser feito por quem não viveu o PREC ou por quem já se esqueceu por completo. Mau gosto brincar-se com coisas sérias, ofendendo a memória. Quanto ao voto do CDS, fê-lo contra uma Constituição redutora, lutando contra a exclusão, contra a exclusão dos não socialistas e dos não marxistas - no que a história das revisões constitucionais lhe deu inteira razão.
Fê-lo para pertencer, afirmando verticalmente a sua pertença. Não se excluiu, saindo porta fora. Lutou e debateu, sessão parlamentar, atrás de sessão parlamentar, às vezes da maior dureza e virulência. O CDS jamais abandonou. Justificou sempre, com coragem e serenidade, com firmeza e permanência, a razão da sua solidão, lúcida e convicta. Não se escudou atrás de referendos, não passou a bola a terceiros, não discutiu a instância ainda quando discordava, nem desviou o debate para o lado. Enfrentou. Não foi “de modas” - foi contra “as modas”.
Eram 15 deputados. Não saíram da sala. Votaram de pé no plenário. Leram a declaração de voto - sobre o fundo da questão. Aceitaram. Ficaram. Persistiram. Na bancada. Não há confusão possível.
O mais espantoso de tudo é que conseguiu não se debater a regionalização... Debateu-se apenas o referendo. Extraordinário!
Para que é que o PP fez um referendo interno sobre a regionalização? Porque é que 25 mil militantes ou filiados foram votar? Por que é que não fez antes um referendo sobre o referendo?
O que os deputados do PP foram afirmar no plenário não foram as razões por que são contra a regionalização, por que a não querem e o que defendem. Isso é que era importante conhecer - e ver. Não em monólogo de surdos, para manchete; mas em debate parlamentar, sério, detido e fundamentado. Para isso é que havia mandato interno , referendado. Não foi cumprido.
Pior ficou o PSD. A menos, claro!, que enverede de vez pela fúria anti-regionalista, na linha meteórica de Durão Barroso - um, “falta de senso”; dois, “monstruosidade”; três , “verdadeiro crime”. Ena!
No conjunto , o PSD mostrou-se mais preocupado em marcar o PP do que em afirmar convicções próprias. O país não é propriamente tolo e, por mais extenso e sedoso que seja o papel de embrulho destas voltas e reviravoltas, o país deu-se conta de que o PSD andou sempre a reboque do PP: na linha escolhida, no tom do discurso e até - pasme-se! - no abandono final. O PP empunhou a batuta e o PSD dançou.
Neste duelo, o PP tem vantagem. Pense-se o que se pensar, o PP tem essas convicções. O PSD não se sabe. Foi talvez o único momento certeiro no debate. Quando Manuel Monteiro desafiou o PSD a deixar o líder parlamentar na sala, para que se soubesse como votavam os sociais-democratas sobre a questão de fundo. Ficou sem se saber. O que permitirá - dirão os teórico-tácticos - que, em infindável ambiguidade , o PSD possa continuar a dizer que “não é contra a regionalização” ou vir mesmo a jurar que “fomos sempre a favor da regionalização”. Ou o contrário de tudo isso e também o contracontrário.
Um dia, o país cansa-se.
Não é verdade que a regionalização seja um tema da esquerda e que apenas os partidos de esquerda lhe sejam favoráveis. A aparência da votação parlamentar, com o centro e a direita às moscas, não traduz de todo a realidade do país.
Há muita gente, mas muitíssima gente, que não é de esquerda e que é favorável à regionalização. Gente que não é socialista, nem comunista - que não quer ser tão-pouco. Gente que sabe que a regionalização consiste numa estrita e importante reforma da Administração Pública, que sabe perfeitamente que não constitui o “esfrangalhar da pátria” em que quiseram pintá-la e que não aceita lições de patriotismo. Gente que apreciaria sempre maior sentido de responsabilidade e mais seriedade por parte dos seus representantes. Gente que queria a regionalização e que, pelo modo escolhido, se sentiu violentamente não representada. Gente que se sentiu traída - perigoso sentimento.
O que põe, de facto, um problema de legitimidade para o futuro. Mas um problema que, salvo se o tempo o apagar, poderá recair a prazo sobre o espaço do PSD e do PP, não sobre os partidos da esquerda que aqueles quiseram encurralar.
Defensor da regionalização, não posso dizer que me sinta satisfeito. Tenho pena que o referendo nacional não se fizesse. Seria positivo. Constituiria um tira-teimas da maior utilidade no clima de dramatismo artificial que se foi animando nalguns meios. Permitiria recentrar o debate no seu plano exacto, esvaziando o tom tonitroante - a resvalar para a histeria - que cresceu nos anti-regionalistas e nos que escolheram ir a reboque.
A regionalização vai seguir. Para os que nela acreditam, até que enfim! Mas vai seguir em muito piores condições do que seria desejável. É pena.
Neste clima de braço-de-ferro exacerbado e de contínuo estendal de ameaças e recriminações, não é de estranhar que o rescaldo fosse o que fosse. As culpas são amplamente repartíveis no intenso “jogo de sombras” a que se assistiu, em pressões, ultimatos e chantagens de todo o tipo, e com jogadas de contra-informação como há muito se não via. Uma pura conversa de surdos nas “altas esferas” e uma vulgar querela desfocada por detrás do biombo referendário.
Lastimo o que se passou e receio pelos efeitos que possa ainda induzir na evolução deste processo. Mas apetece-me saudar a coragem do engº António Guterres e dos deputados da bancada socialista que, conscientes dos riscos e por certo lastimando o clima, deram ao menos um sinal de honrarem convicções.
O processo será, agora, gradualista e progressivo, como sempre toda a gente soube que seria. É de esperar que seja mais cuidado. É de desejar que o futuro possa eliminar os estragos com que, logo no arranque, se o quis minar.
Se a reforma efectiva for bem prosseguida e concluída, o PS acabará recolhendo os louros disso mesmo. Se resultar mal por causa do clima político gerado ou se soçobrar mesmo, em sucessivos tropeços, o PS acabará responsabilizado. A vida é mesmo assim!... Mas, ainda aqui, poderá contar com a simpatia das convicções dos que sempre estiveram do lado da regionalização administrativa.
E já agora: se tivermos eleições regionais em 1997 ou em 1998 , o que é que irão fazer o PP e o PSD? Vão boicotar as eleições , como boicotaram o voto parlamentar? Vão desistir de ir às urnas regionais, da mesma forma que abandonaram o plenário? É claro que não. Mas vai ser complicado.
No saldo do extremismo referendário, este produziu, no imediato, um outro fracasso para o país: a revisão constitucional, ao que parece, foi-se... Mais uma vez. Triste sina. Pobre sistema político.
Quem ganha é o PCP. Onde o PCP ganhou não foi na regionalização - foi na liquidação da revisão constitucional, decretada pelo PSD e ajudada pelo onda “pêpista”.
Comprometida a revisão da Constituição, o sistema eleitoral continuará intocado. E, conhecidas de há muito as posições a este respeito, o PCP tem razões de sobra para esfregar as mãos. Parabéns ao PSD e ao PP! Força, força, camaradas!
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 4.Maio.1996
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