A coroação
Não, não é a propósito do baptizado do príncipe Afonso, no
Minho. O mais marcante acontecimento “monárquico” da semana foi o da Fundação
Mário Soares, na terça-feira. Pela projecção do protagonista e pelo longo
passado de dores de cabeça dadas aos seus sucessores na liderança socialista,
voltaram a murmurar-se especulações quanto aos efeitos futuros da iniciativa.
Mas não é esse o significado marcante do acto, que coroa sobretudo uma longa e
intensa carreira política, reunindo à sua volta vastíssimo leque de amigos de
sempre e de adversários de sempre.
Não é só o “homem do PS”, mas é também o homem da Alameda,
onde tantos nos reunimos e nos revemos em duros meses da emergência cívica de
1975, no pico mais agudo e mais decisivo da luta do povo português em defesa da
liberdade, ameaçada de morte antes de se estabelecer. É também, em vários
momentos, o optimista incorrigível, o não desistente, uma referência de
pedagogia cívica, de irradiação e enraizamento da tolerância. E é ainda “o
senhor Presidente”. Foi sem dúvida uma coroação.
São muitas as questões que de Mário Soares me separam no
plano ideológico. Indo pelo lado mais simplista da autodefinição que elegeu,
não sou “laico”, não sou “socialista” e não sei se a questão “republicana” me é
essencial. Mas, assim sendo, há muitas coisas em que me revejo quanto a trechos
fundamentais dos seus desempenho político e combate cívico. É esta raríssima
qualidade de ser não só fundador de adeptos e prosélitos, mas também fundador
de opostos que fez dele figura emblemática da construção da democracia, da
alternância livre, do contraponto aberto, projectando o prestígio e influência
muito para além da sua estrita área específica.
Mário Soares ficou, na nossa história recente, como um
fundador da República, o maior fundador do quadro institucional em que vivemos.
Não é só a circunstância de, dos grandes líderes históricos partidários, ele
ter sido o único que interpretou com o mesmo denodo exactamente o mesmo combate democrático antes e
depois do 25 de Abril, assim se colocando no centro determinante dos acontecimentos
e da sua evolução. Mas é também a forma singular como desempenhou os seus dois
mandatos de Presidente da República, em termos que vestiram em definitivo uma
função em busca de identidade.
Quando o regime democrático começou, havia uma curiosidade
difícil de sistematizar: o regime semipresidencialista. Era uma criatura
complexa de compreender, de assimilar e de introduzir nos nossos hábitos
institucionais. Tanto que nunca deixaram de aparecer, pontualmente, ao longo
destes 20 anos, sugestões ora de presidencialização do regime, ora da sua
parlamentarização, para “resolver” o que muitos estimavam como uma ambiguidade
perversa e chegando a propor-se algumas vezes que se acabasse mesmo com a
eleição directa do Presidente da República.
A primeira experiência com Ramalho Eanes acabou por não ser
feliz. Chamado a intervir, primeiro, pelos chamados “governos de iniciativa
presidencial”, a conflitualidade agudizou-se com a AD e nos partidos onde se
agitavam correntes eanistas. A experiência acabou mal, no efémero PRD - assim subiu, assim sumiu.
É como se a função presidencial estivesse à espera de Mário
Soares para vestir e ganhar a plenitude da sua natureza. No fundo, Mário Soares
compreendeu e actuou, como ninguém, um poder semiescrito: o poder moderador.
Nos textos constitucionais portugueses, este poder aparece,
assim assumido, uma única vez: na Carta Constitucional de 1826, outorgada
justamente pelo Rei liberal, D. Pedro IV. A Carta definia-o assim, no artigo
71º: “Compete privativamente ao Rei, como chefe supremo da nação, para que
incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia
dos mais poderes políticos.” Confesso que, estudante de Direito Constitucional,
este poder sempre exerceu algum fascínio teórico sobre mim, guardando admiração
pelo constitucionalista do princípio do século XIX que o “descobriu” (Benjamin
Constant) e que inovou para além da clássica teoria dos três poderes
(legislativo, executivo e judicial) que Montesquieu acabara de estabelecer e
sobre que se edificaram a Revolução Francesa e os regimes demo-liberais.
Escrito ou não escrito, é um poder implícito na função da
chefia do Estado; algo que está sempre presente no imaginário dos povos e
seguramente no dos portugueses. De resto, a Constituição actual retomava-o,
algo escondido. E, hoje, depois de Mário Soares, não é difícil lê-lo no
seguinte trecho do art. 123º: “O Presidente da República (...) garante o regular
funcionamento das instituições democráticas” - que
era precisamente, dos seus vários papéis, aquele que Soares mais gostava,
sintomaticamente, de invocar e de recordar.
Foi preciso Mário Soares descobri-lo, para que todos o
descobríssemos também - até
porque é um poder especial, não tanto de o ter, mas de “saber fazer”. E foi talvez,
afinal, por esse traço de ligação republicana a uma ideia do constitucionalismo
monárquico - na sua fonte original, D. Pedro IV - que muitos detectaram nos mandatos de Soares algum
“monarquismo”, merecendo-lhe o baptismo risonho de D. Mário I.
A apreciação, mais ou menos consciente, é inteiramente
conecta. Revendo hoje o ciclo político dos últimos dez anos, surpreendemo-nos
em verificar como Mário Soares conseguiu até cumprir o resto da previsão da
Carta Constitucional de há 170 anos: “O poder moderador é a chave de toda a organização política.” E, se tivermos presente que, ao longo de quase todo o
tempo, teve de coabitar com um governo monocolor e de maioria absoluta, que teoricamente o poderia ter apagado por
inteiro das instituições determinantes, temos que reconhecer que é obra!
Figura marcante, pode hoje ser conhecida por inteiro. A
melhor fonte actual é o livro de Maria João Avillez, “Soares - Ditadura e Revolução”, cujo lançamento,
aliás, antecipara já a “abrangência” (palavra horrível, conceito valioso) da
cerimónia da fundação. Só recentemente acabei de o ler e é, de facto, um livro
extraordinário. Não só pelo objecto, mas pelo género.
Um livro de entrevistas é dos géneros mais difíceis que
conheço. Para ser bem feito, claro - e não
mero despejo ou colagem de declarações alheias. A Maria João Avillez é das
raras cultoras do género em Portugal - suponho
mesmo que é a única. Já havia ensaiado outros títulos, nomeadamente “Entre
Palavras” (sobre o período 1974-78) e “Do Fundo da Revolução” (o 25 de Abril
visto de vários quadrantes, à distância de 20 anos). Mas obra deste fôlego
nunca lera. Se aqueles outros títulos eram compilações, valiosas e
interessantes, de trabalhos anteriormente publicados no “Expresso” e no
PÚBLICO, esta é um vasto e completo inédito.
É uma revisão integral - trabalhosa,
informada, atenta, ordenada, fluente e tensa, aqui ou ali. Ficamos a conhecer
quase tudo. Um livro biográfico para compreender o carácter e o percurso,
pessoal e político, do protagonista; mas também um livro de história e um
documento político de primeira valia - de
algum modo, é o testamento que perpassa. É uma ocasião privilegiada para rever
e conhecer mais da História contemporânea do país, tanto no período do Estado
Novo (visto do outro lado), como nos primeiros anos do regime de Abril e das
suas lutas.
Na última entrevista que lhe fizera para o PÚBLICO, em 1994,
a Maria João Avillez já lhe arrancara, aliás, algumas revelações
extraordinárias. Agora, com jeito jornalista; ora sedutor, ora incisivo e
pontual, com mão esquerda e mão direita, a Maria João tira-lhe grosas de outros
achados. Quem já leu sabe. Quem o não fez tem várias descobertas por fazer.
O 2.º volume será, porventura, ainda mais interessante,
porque recordará - creio - tempos
que nos são mais próximos e evocará, além dos anos de ouro, aqueles outros em
que Soares, primeiro-ministro, como que “tirocinou” para Presidente, que foi,
de facto, a função que o preencheu.
O livro da Maria João Avillez tem, de resto, nas linhas e
nas entrelinhas, tudo a ver com o protagonista “coroado” na terça-feira. Rezam
as crónicas que as várias entrevistas que estão na base deste trabalho
começaram a 5 de Outubro de 1994 - ou
não fora Soares um republicano reiterado, precioso na escolha das
“coincidências”. E Soares, no prefácio, é a si próprio que se resume ao
descrever o livro. Diz ele: “O livro regista uma longa e estimulante conversa.”
Ora, o que foi, afinal, o percurso de Mário Soares, como político e homem
público, senão isso mesmo - uma
longa e estimulante conversa com o país?
Uma conversa que continua na fundação, fazendo apelo aos
“recursos da imaginação”, outra das artes e talentos de Soares.
José Ribeiro e Castro
Jurista
Jurista
PÚBLICO, 8.Junho.1996
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