Os índios da parvónia
Há duas siglas parecidas: o Protal e o Protali. Um é o Plano
Regional de Ordenamento do Território do Algarve. O outro o Plano Regional de
Ordenamento do Território do Alentejo Litoral. Pode parecer que a designação do segundo
seria já a gozar com os alentejanos e o seu sotaque mais característico, com a
acentuação final no “i”. Mas não. A explicação é aquela.
Conta-se também uma anedota - verídica - contemporânea da aprovação já não sei
se do primeiro, se do segundo desses planos. Imaginemos que foi a respeito do
segundo, o Protali, que foi um tema da semana.
No Conselho de Ministros que o aprovou, aqui há anos, o
então ministro do Planeamento e da Administração do Território, Valente de
Oliveira, fez uma longa exposição sobre as virtualidades do Protali: o Protali
isto, o Protali mais aquilo, o Protali aqueloutro, o Protali assim, o Protali
assado... Ao fim de hora ou mais de exposição, o primeiro ministro, Cavaco Silva, abriu o debate, perguntando se
algum dos outros ministros queria pronunciar-se. Pediu a palavra João de Deus
Pinheiro, ministro dos Negócios Estrangeiros, que, irónico e brincalhão,
perguntou: “Achei excelente a exposição, que segui com o maior interesse. Só
não percebi um ponto: é se o Protali é bom para os dentes ou para as gengivas.”
Risota geral.
Na prática, o assunto não tem tanta graça. Na terça-feira
passada, as cinco câmaras do litoral alentejano, de Alcácer a Odemira, voltaram
a reivindicar a revisão, ou mesmo a revogação, do tal de Protali, contra o qual
pende mesmo, aliás, há algum tempo, uma acção no Tribunal Constitucional,
contra a ofensa à autonomia do poder local e ao atropelo múltiplo de
competências próprias dos municípios.
As resistências à justa movimentação das autarquias agitam
argumentos estafados e suspeições gratuitas: as câmaras, comunistas ainda por
cima - sacrilégio! -, “estão feitas com os promotores e os
especuladores imobiliários” e “o que eles querem é repetir os desmandos do
Algarve.”
Bem podem os autarcas e as populações repetir e esclarecer,
como têm feito sem cessar, que não é disso que se trata. Os teóricos da
Administração Central não admitem sequer a dúvida e, napoleónicos, decretam o
gosto e o espartilho.
Ligado a Odemira pelo sangue e aí tendo sido autarca nos
anos 80, pude acompanhar nas minhas deslocações a irritação e a indignação
legítimas que o Protali causou, como factor de estrangulamento e usurpação da
democracia local. No caso de Odemira e, em parte, de Sines, isto cruza-se,
aliás, com outra tirania central: a forma como foi implantada, primeiro, a
Zona de Paisagem Protegida da Costa Vicentina e Sagres (muito saudada na
altura) e, depois, agravando-se as restrições, o Parque Natural do Sudoeste
Alentejano e da Costa Vicentina.
Aquilo que se ouvia localmente e ainda hoje prossegue - “tratam-nos corno se fôssemos uns
índios” - é o sentimento de que os
naturais da região são uma espécie de fauna especial que dá colorido a zonas
espartilhadas para deleite de visitantes ocasionais, veraneantes e outros
passantes. Não já os índios da Amazónia, mas uns “índios da parvónia”, criação
brilhante dos crânios da tecnocracia central, das concepções policiais do
inspeccionismo e da enorme corte de aliados do estalinismo ambiental.
Os sentimentos populares a este respeito não podem
desgarrar-se dos abusos de muitos agentes que entram pela terra alheia, sem
prestar contas a ninguém: não as prestam às populações que administram, antes
tendo as costas quentes pelo poder central que os nomeia; nem as prestam
tão-pouco em rigor no plano nacional, pois Lisboa é longe, são muitos (os mais
indefesos) os que desistem e nem se queixam e, mesmo quando sobem, os processos são vistos pelos critérios catedráticos da
secretaria, desgarrados da realidade, insensíveis aos problemas de que se trate
e para puro gozo autoritário de tecnocratas em circuito fechado.
Uma das dezenas de histórias que se contam, ilustrativa dos
abusos dos agentes desta política, é eloquente: um agricultor local foi
proibido de cultivar bróculos, porque não era uma espécie agrícola indígena...
Já sei que isto poderá suscitar críticas e reacções,
conhecidas e datadas: “Lá está! O que eles querem é desfigurar isto tudo... “Mas, de facto, o problema ilustra bem uma das questões em que a falada
regionalização, poderá (e deverá) vir a trazer alterações significativas, do
maior alcance.
Ninguém de bom senso deseja a ausência de regras nestas
matérias sensíveis, nem que valores colectivos, como o ambiente e o património
arquitectónico e paisagístico, fiquem à mercê da anarquia dos especuladores e
do empreiteirismo selvagem. Mas, se o Alentejo é das zonas mais
preservadas do país, é elementar reconhecer-se que isso se deve totalmente à
consciência das suas populações e ao esforço dos seus autarcas e quase nada ao
paternalismo da corte, querendo entreter os “lobbies” ambientalistas. Do poder
central tanto vem, aliás, o espartilho mais absurdo, como por vezes a
desregulamentação mais desastrosa - pense-se
só por um momento no que se passou no tristemente célebre empreendimento do
Brejão de Thierry Roussel...
A questão nestas matérias é sempre a de compaginar as
preocupações, as necessidades e os imperativos de desenvolvimento e de progresso,
com as outras de protecção do ambiente e de preservação do património. E, por
isso, o problema válido está em definir que nível administrativo é que deve ter
essa responsabilidade e bem assim a que tipo de controlos democráticos deve
estar sujeita. Nem às instâncias autárquicas locais pode ser feita a injúria da
suspeição do erro, nem às centrais a santificação do monopólio da virtude.
Dentro do que disponha a lei geral, que não deve ir além da
definição dos princípios, a regulamentação e a acção administrativas só podem
competir ao nível da administração local e, desejavelmente, quando for
instituído, ao nível da administração regional, para todas aquelas frentes
que, como é o caso do âmbito do Protali, excedem as fronteiras dos municípios e
atingem uma complexidade técnica a que estes não podem responder apenas por si
mesmos.
Tudo o que for diferente disso, além de atentado a
princípios democráticos elementares, só serve a aberrante concepção daqueles
para os quais a protecção do ambiente passa pelo atraso económico e exige a paralisação
do desenvolvimento. Esses cultores da ideia escondida de que o critério dos
veraneantes de “bom gosto” é superior ao critério dos indígenas; esses
monopolistas do gosto e decretadores sem controlo da conveniência dos outros;
esses arquitectos da província paralisada como paisagem, em que são eles os
senhores deleitando o olhar e o povo, “índios” pontuando o cenário - esses são os construtores sinuosos do tal
estalinismo ambiental. Por um lado, pelas concepções profundamente autocráticas
de que dão filhos, gerindo administrados que tiranizam sem ter que lhes prestar
contas; por outro lado, porque o atraso ou o bloqueio do desenvolvimento e o
desperdício cego e arrogante das oportunidades acabam por levar à migração forçada
das populações, um pouco ao modo “agiornatto” dos tártaros da Crimeia...
É natural que os alentejanos tenham de si próprios a ideia
de serem mais do que assunto de anedotas ou meros figurantes de um museu da
história natural. E, por isso, a questão é outra vez a mesma que está em jogo
no municipalismo e na regionalização: a devolução de poderes às próprias
populações interessadas - ou, noutra
óptica, o princípio da subsidiariedade.
Estou a ver um passante na Costa Alentejana, aí pelo ano
2043, a fazer um desvio na estrada para Lagos, e ali por alturas do Cavaleiro
ou do Mal-Lavado, na mesma estrada estreita que é a de hoje, lobrigar um
homem, ainda agarrado à charrua, cultivando grão-de-bico, porque bróculos é
proibido, e apontar à criança: “Estás a ver, meu filho? Aquilo ali é que é um
alentejano.” Que bonito!... Que bucólico, que romântico.
Tanto “Alentejo profundo”, não. Quem é que não quer a
democracia local e regional?
Jurista
PÚBLICO, 1.Junho.1996
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