Os índios do Cimento

Há alguns anos atrás, a argumentação dos que atacavam as medidas que, melhor ou pior, pretendiam proteger o ambiente e pôr ordem na construção desenfreada no litoral (e não só...) invocava, normalmente, os mesmos argumentos: as áreas protegidas ou regulamentadas passariam a ser “reservas de índios”; essas medidas eram sempre obra dos políticos e/ou intelectuais de Lisboa, que queriam passar férias em sítios bonitos à custa da desgraça dos “indígenas”; o desenvolvimento passa, obrigatoriamente, pelas urbanizações sob controlo exclusivo das autarquias; os ambientalistas preocupam-se com os “passarinhos” mas não com as pessoas.

(...) Foi, portanto, com a maior perplexidade que, em finais do século XX, depois dos sucessivos desastres urbanísticos do litoral português, já pública e finalmente assumidos oficialmente, depois, também, de tudo quanto se sabe sobre os enormes prejuízos que tal situação acarreta, me deparo com o artigo de José Ribeiro e Castro “Os índios da parvónia”. Será que voltámos ao passado? Será que há ainda pessoas que duvidam da utilidade dos planos de ordenamento e das áreas protegidas, os quais, obviamente, têm de ser assumidos pelo poder central? Será que alguém tem dúvidas da exagerada “vocação” da maioria dos nossos autarcas para a construção civil? Afinal parece que havia.

(...) Enterneceu-me, também, a visão do autor para o ano 2043, do alentejano agarrado à charrua a cultivar grão-de-bico, como imagem daquilo que os que defendem o ambiente pretendem para os seus compatriotas. É da melhor demagogia que tenho lido (...). Se pudesse, propunha imediatamente medidas de protecção a este artigo como peça de património saída directamente do passado, em impecável estado de conservação. É que até se podiam organizar visitas guiadas, para os jovens de hoje verem como se atacavam aqueles que se preocupavam com o seu futuro.
Miguel Magalhães Ramalho
Cascais

É muito lisonjeira a ideia de o meu artigo ser ainda objecto de leitura em 2043. Obrigadinho. Espero é que o alentejano da charrua e do grão-de-bico tenha melhor sorte. Quanto ao ponto de vista do leitor, também é uma excelente peça monumental de arqueologia argumentativa. Retribuo os cumprimentos e, por aí, ficamos conversados - ombrearemos ambos nas selectas literárias dos meados do séc. XXI, sempre devidamente preservados. Quanto à questão em si, quero tornar clarinho que não sou contrário à preservação do ambiente. E estou certo de que as populações e as autarquias alentejanas também não.

A questão está em saber a quem é que cabe assegurar a compatibilização dessa preservação com os imperativos, as necessidades e as oportunidades de desenvolvimento. A uma administração distante, suserana e insensível, que repõe uma tirania burocrática, usurpando competências das autarquias? Ou à própria administração local, ou, quando existir (como defendo), à administração regional? De que “ambiente” é que falamos'? De quem é, afinal, o ambiente? Não será em primeira linha dos que lá vivem? É esta a questão. O leitor porventura continuará na sua - o que é respeitável. Eu continuarei na minha. Até porque, se o Alentejo litoral permaneceu bem preservado até hoje, não foi por causa do PROTALI, nem por outras intromissões desconfiadas e inaceitáveis do centralismo. Foi apenas graças à sensibilidade das suas gentes e à atenção das suas autarquias. É isso que é imperioso continuar a respeitar.

José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 19.Junho. 1996

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