Prolongamento


O culpado - está visto - foi o Boborsky. Quando o extremo checo fez aquele chapéu a Vítor Baía, não ditou só a má sorte da selecção nacional. Foram também os clubes, o Governo e as suas propostas de lei sobre o chamado “totonegócio” que foram eliminados. Ninguém obviamente o pode garantir. Mas parece claro que, estivesse Portugal a disputar a meia-final com a França no passado dia 26 - e outro bem diferente teria sido o curso do debate e dos braços-de-ferro internos nos vários partidos e grupos parlamentares.

Tivesse Portugal, como a desmancha-prazeres República Checa, conseguido eliminar ainda a França nos penaltis, assim mantendo a ansiedade nacional para a final de amanhã - e outra teria sido a extraordinária votação de quinta-feira.

O Governo, aliás, pressentiu-o. Com um faro algo oportunista - de certo mau gosto, no meu modo de sentir -, cedo o Governo procurou trunfar expressamente a sua iniciativa e amaciar a controvérsia gerada, recorrendo à carreira positiva que Portugal estava a fazer na primeira fase do Euro 96.

Pouca sorte... O Boborsky estragou tudo.

Nem devemos estranhar muito que fosse assim. É natural que surjam alguns ditos a este respeito, interpretando-o como mero sinal de “terceiro-mundismo” larvar. Poderão até, ao modo que portugueses tanto gostam de cultivar a respeito dos portugueses, não faltar os que se aprestem a crucificar esses sinais como sintomas fatais de “alienação”, de “baixo nível cultural”, etc. Não é tanto assim.

Quando vemos que a Inglaterra inteira parou, suspensa do resultado da meia-final com a Alemanha; quando assistimos à lamentável histeria da imprensa popular britânica nas vésperas desse confronto; quando vemos o ar de luto nacional e de genuíno pesar dos habitualmente circunspectos apresentadores internacionais da Sky News no satélite e no cabo, a seguir à eliminação inglesa; quando se sabe que o ténis de Wimbledon tinha os olhos postos não nos “courts”, mas em Wembley; quando, pelo facto de se ganhar o simples direito de ir a uma final europeia de futebol, ouvimos os prognósticos de Vaclav Havei ou assistimos às explosões de alegria na Praça de São Venceslau ou por toda a República Checa; quando as vemos, igualmente intensas, generalizadas e vibrantes, no coração disperso de toda a Alemanha, desenvolvida, rica e poderosa - temos a confirmação de que nós, portugueses, não somos diferentes disso; somos apenas iguais. Esse é, afinal, o poder do futebol. Podemos, intelectualmente, pensar o que quisermos, lamentar ou aceitar, confabular ou ver. Mas é assim. Do Burkina Fasso à Alemanha, passando naturalmente por Portugal. Não há razão para qualquer vergonha ou para alimentar complexos deslocados. O poder dos dirigentes do futebol e dos clubes é exactamente esse. Volta e meia, o futebol é capaz de parar, em suspenso e em uníssono, um país inteiro, do mais humilde dos iletrados ao mais diletante dos intelectuais, como uma greve geral jamais conseguiria, mesmo no mais exaltado e febril dos períodos revolucionários.

É assim. Ponto final. Ninguém o dita, mas todos obedecem.

Os deputados, de resto, bem o demonstraram há coisa de uma semana, quando deixaram às moscas, com o primeiro-ministro e o ministro Marçal Grilo presentes, o debate parlamentar sobre o “pacto educativo”, porque o que toda a gente queria mesmo seguir a essa hora, era... o fundamental Portugal-Croácia. É normal. O país identifica-se com isso. Só que o mundo do futebol é também seco, frio e cruel. Ninguém o sabe melhor do que os jogadores, os treinadores e os dirigentes. É um território de emoções irracionais em que muito se pratica o cínico e generalizado hábito de “passar de bestial a besta” de um momento para outro. A regra tão comum, quanto injusta, é esta: unidos na vitória, sozinhos na derrota. A política é, aliás, muito parecida. Por isso é que o Boborsky estragou tudo.

Seja como for, o Governo, empatando, perdeu. O momento político foi recheado de factos novos, que, não haja ilusões, não pararam aqui. Tudo segue para prolongamento. E haverá penaltis para todos.

No PSD, vem o ajuste de contas anunciado. E não é fácil opinar. De um lado, discutir-se­-á se os dois deputados indisciplinados foram “eleitos pelos partidos” ou “eleitos pelos clubes”; mas, do outro lado, nomeadamente por todos os que já defenderam e defendem a reforma do sistema eleitoral, poderá arguir-se se é melhor ter deputados “vertebrados” ou meros “funcionários” obedientes. A confusão, no sistema actual, é que não é famosa - hoje, ninguém pode invocar qualquer tipo de legitimidade individual, embora devesse poder.

No PP, as coisas também não vão fáceis. Para já, no caldo das questiúnculas que vão dividindo os populares e afectando a sua liderança, o PP já conseguiu uma proeza paradoxal do maior alcance: é o mais anti-regionalista dos partidos que já produziu, afinal, e que está a avalizar a Região Autónoma do Porto.

No PS, os humores não serão pacíficos, no sempre amargo rescaldo de uma derrota, algo dramática ainda por cima. De tudo, depois de várias mazelas, só se salvou para os socialistas o ministro Sousa Franco - o filho pródigo cai sempre bem.

Independentemente do que disse ou do que não disse, foram marcantes a sua presença e intervenção em São Bento, sereno e solidário ao lado dos seus colegas. Não ganhou a votação. Mas ganhou o facto, como o futuro só poderá confirmar. As mais das vezes, em política, vale mais a solidariedade nos momentos difíceis, e numa derrota, do que o mero triunfo fátuo disto ou daquilo.

No desporto e na vida política nacional e local, em termos que é difícil antecipar, vai soar e ressoar a reacção enfurecida dos clubes e dos seus tenores de maior peso específico, tendo aparentemente no PSD o alvo predilecto.

E, enfim, quanto à política geral, confirmou-se que o Governo - o que estava a esquecer-se - é, de facto, governo minoritário. Foi a primeira vez que se o experimentou. Outras poderão vir.

O prolongamento ainda agora está a começar. Em várias frentes. Vai ser duro.

Houve vários desacertos políticos na condução desta matéria. Partiu-se do particular para o geral. Inverteu-se por inteiro o que poderia ter sido uma lógica mais digerível.

O último Governo de Cavaco Silva teve na questão da ponte sobre o Tejo um problema igual de inversão do processo. Primeiro, fez o aumento dos 50 por cento. Depois, face à fúria da “Maria da Ponte”, foi aprovar à pressa alguns descontos e estudar outras medidas excepcionais. E, no fim, é que foi explicar a razão do aumento e apresentar os benefícios futuros, numa campanha maciça, dirigida a fazer recuar a explosão popular. Por essa subestimação política e inversão da lógica das coisas, Ferreira do Amaral passou as passas do Algarve. Agora, noutro “dossier”, foi a vez do Governo socialista. A lógica não é uma batata.

De tudo, fica o problema por resolver. Terá mesmo que ser resolvido. Começando por o conhecer em toda a sua exacta extensão.

Fica a memória dura, confirmada pela voz autorizada do ministro das Finanças, de que ninguém sabe exactamente - nem os próprios clubes!... - qual é nesta altura a dimensão da questão. Foram feitas denúncias vigorosas - e, se verdadeiras, justas - da completa paralisia da administração fiscal até Outubro de 1995, quanto a este simples e elementar apuramento. É capaz de ser verdade. O argumento é severo e poderoso. Mas fica fraco o consolo. Se não foi feito, há que o fazer e concluir agora, dando-o a público com absoluta transparência.

E fica sobretudo na responsabilidade do Governo a questão da resolução do problema. Os socialistas, zangados com a desfeita, poderão reagir em tom de amuo: “Ah, é? Querem assim? Pois é assim que vai fazer-se. Não se conte mais connosco.” Compreende-se. Mas o desforço não pode durar muito mais tempo do que o curto intervalo para os desabafos do estilo e os remoques próprios da natureza humana.

É que é o Governo que tem que governar. Por isso, ironia das ironias, o problema sobra na mesma para ele. As coisas são mesmo assim.

José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 29.Junho. 1996

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