Sua Excelência, o Contador

Um: o prof. Sousa Franco é, sem sombra de dúvida, um homem probo, rigoroso e recto, além da incontestável competência como professor de Finanças e de Direito Financeiro.

Dois: os mais arredios professores de Direito podem sofrer de defeito típico, filho dos sonhos mais científicos - o extremo perfeccionismo, imaginando nos laboratórios da academia “o mundo perfeito” em que toda a vida, administração e política se regeriam por lei automática, quimicamente pura, com tudo previsto e tipificado de antemão.

Três: em matéria de Direito Financeiro, quase todos somos um bocadinho ignorantes, tamanha é, por um lado, a obscuridade técnica da matéria mesmo para licenciados e tal é, por outro lado, o matagal de legislação dispersa em vigor, alguma datando do princípio do século.

Quatro: a mistura no mesmo cadinho da condição de sonhador professor perfeccionista, de ex-juiz do Tribunal de Contas frustrado pelos apodos de “força de bloqueio” (e limitações inerentes) e de poderoso ministro da pasta desafiado no seu estatuto de “independente” pode redundar em caldo explosivo.

Cinco: anda por aí, de há anos, uma doença mortal, animada pelos círculos mais diversos. É a “demagogite espongiforme”, progressiva, contagiosa e demencial - polui o ar, ensandece os espíritos, embriaga acusadores, multiplica suspeições, cega julgadores, municia tiranos, enche a boca e, ao assalto furioso da chamada “classe política”, corre o risco de liquidar por completo a própria actividade política, de destruir o Estado democrático e de aniquilar os fundamentos da democracia, atropelando a liberdade pelo caminho.

Valha a verdade que Sousa Franco estará a apanhar com culpas que não são suas e com a ressaca de factos a que não deu causa, no que toca à projectada Lei Quadro do Tribunal de Contas e à mais recente celeuma (ou nova crise) em seu redor.

Os acessos de perfeccionismo dos mestres são de dois tipos principais: um, procurar sistematizar o que se ache disperso e avulso, facilitando o seu conhecimento e compreensão (é sempre bom); outro, tudo querer inovar e reformar, querendo circunscrever a vida ao espartilho interminável de um regulamento havido por “perfeito” (é frequentemente mau).

Não conheço da lei que se prepara mais do que disse a imprensa. Mas, pelo muito que ecoou, tudo leva a crer que o “defeito” principal do projecto do ministro das Finanças e do novo presidente do Tribunal de Contas é mais do primeiro tipo do que do segundo. Ou seja, o geral repúdio da reunião de secretários de Estado, sem prejuízo da razoabilidade da reacção, é mais fruto de ignorância (compreensível) quanto às normas que já hoje estão em vigor do que propriamente das poucas novidades verdadeiras que, aqui ou ali, com a mão na massa, o projecto dos Contadores-Mor possa ter acrescentado.

Por estranho que possa parecer, a reforma preparada até será, em muitos pontos, benévola para os que ora se escandalizam. Por exemplo: a redução do prazo de prescrição para dez anos. 

A alguns, ainda parecerá demais - e pode ser que sim. Mas saberão as pessoas que o prazo de prescrição para as “infracções financeiras” é actualmente de 30 anos? Sabem que este apetitoso instrumento persecutório está em vigor por decreto de 1933? Sabem que, se se quiser ir incomodar hoje governantes ou funcionários (ou seus herdeiros!... ) por alegados factos tão antigos quanto 1966 ou 1967, ou 1974, ou 1975, ou 1979, ou 1980, ou 1983, ou 1985, tendo a memória morrido e os arquivos dispersado, ainda vão a tempo? Sabem os governantes, os dirigentes e os funcionários que, a manterem-se as leis actuais, quanto a decisões ou actos de hoje, ainda poderão ser inquietados ou perseguidos, por si ou seus herdeiros, no ano de 2026!?...

Aparentemente, não saberão. Mas é assim. E, já agora, para que outro “mestre de Finanças” de costas largas não leve as culpas todas, nem foi Salazar quem inventou esta preciosidade predadora. Consta já em legislação de 1915 (em vigor), relativa ao velhinho Conselho Superior da Administração Financeira do Estado e, de mais atrás, é anacronismo novecentista que foi sobrando.

A legislação do Tribunal de Contas precisa de reforma. Vão por mim... A lei actual, de 1989, foi simples ensaio incompleto, aparentando compromissos mal cosidos. E essa reforma não integrou, nem reviu, a longa série de diplomas avulsos que andam por aí, em excertos vigentes ora de 1915, ora de 1930, ora de 1933, ora de 1936, etc. Nem enquadrou, sistematizando, outras normas extravagantes mais recentes que foram espirrando aqui ou ali, na voracidade tentacular da “demagogite espongiforme”, sempre que os ventos lhe estavam de feição. Se a legislação não for globalmente revista com critério sério e uniforme, “há sempre uma norma desconhecida que espera por nós.” Vão por mim.

Pelo que li no PÚBLICO, esse seria até um mérito da iniciativa contestada, por muito que, com mais sensatez, venha ainda a decidir-se melhor do que conste da versão actual. Mas o facto é que os aparentes motivos de escândalo no seio do Governo já constam das leis vigentes: desde a responsabilidade por “pagamentos indevidos” ou não liquidação ou cobrança de receitas a uma hidra de responsabilização potencialmente interminável; desde infracções simples que se quis criminalizar à intimação de herdeiros ou à responsabilidade directa dos ministros, que, em termos algo excessivos, vem do decreto de 1933; e por aí adiante.

O “pecado” principal de Sousa Franco terá sido o de sistematizar o que consta já de legislação extravagante, assim atraindo sobre si as iras contra décadas de legislação ignota. O outro “defeito”, espevitando-se talvez a um ou outro arremedo de somenos, terá sido o de, sempre distraído e homem de documentos, ter levado a sério trechos saborosos do Contrato de Legislatura dos Estados Gerais, do Programa Eleitoral de Governo do PS e da Nova Maioria ou do Programa do XIII Governo Constitucional - de todos estes, cito um só excerto do primeiro: “Combate à Corrupção e ao Clientelismo - Assim, urge tomar as seguintes medidas: (...) Reforço dos poderes do Tribunal de Contas, com aperfeiçoamento do sistema de controlo financeiro jurisdicional.”

Esta é, porém, questão bem séria. Merece decisões da maior responsabilidade, sentido de equilíbrio e bom-senso, fora do pingue-pongue demagógico do “dizes tu, direi eu”.

Qualquer dia, com estas e outras normas terroristas à solta, não haverá ninguém que, em são juízo, aceite ocupar funções políticas ou cargos dirigentes na Administração Pública. Ou ninguém que decida em tempo útil aquilo que é sua função decidir, havendo de munir-se de grosas de pareceres antes de cometer o atrevimento de um despacho outrora corrente.

O critério essencial de decisão da Administração - e, por maioria de razão, dos políticos - é, há que dizê-lo, o da conveniência e da oportunidade. Não é o da estrita legalidade. Certo que têm a lei por guia e limite; mas o princípio da legalidade não pode entender-se e aplicar-se de tal forma que, em revolta da criatura, tolha por inteiro os decisores políticos e paralise a Administração.

Tudo o que seja, além do tratamento ajustado ao seu tipo de ilícito (administrativo, financeiro, disciplinar), transviar em exagero de sanções e responsabilizações civil, criminal ou financeira, para além do devido e razoável - isto é, os casos em que há corrupção, crime propriamente dito ou ânimo fraudulento -, matará a própria essência da política e da Administração democráticas. Chegaremos ao absurdo extremo de, perante o próprio clamor da opinião pública que exige, o dirigente se recusar a decidir porque tem medo - medo de, por servir o Estado, ele ou os seus herdeiros, trinta anos depois, virem a ser pessoalmente responsabilizados na sua dignidade, liberdade e fazenda, perante outro brado do público, sedento agora de bodes expiatórios para zurzir, “cristãos” servidos a repasto dos leões na arena e gáudio popular nas bancadas.

Pela maioria das decisões políticas, a única responsabilidade seriamente exigível, no interesse do Estado, na defesa do Estado democrático de direito, é a responsabilidade política. Por isso é que é livre, oportuna e dependente das escolhas livres. Por isso é que é plena, aberta e transparente. Por isso é que é crítica e releva do povo directamente, na fiscalização parlamentar e em eleições.

A Constituição, ao reservar ao Tribunal de Contas o exclusivo da jurisdição em matéria financeira, faz homenagem sensível a isso mesmo. A jurisdição especial justifica-se porque, em rigor, só pode, só deve “julgar” nestas matérias quem delas tenha um mínimo de experiência efectiva da Administração Pública; e, assim, no seu julgamento, possa compaginar a estrita legalidade com as demais circunstâncias que relevam de valorações de conveniência, de oportunidade, de pareceres díspares, de decisões críticas em casos de conflito de interesses públicos relevantes, da relatividade das exigências técnicas - tudo apreciado e pesado em justa medida.

A composição tradicional do Tribunal de Contas honrava isso mesmo - não fora uma alínea infeliz introduzida em 1989. E o espírito da lei de 1989 (e do projecto) confirma-o: a responsabilidade financeira não é imperiosa, mas “pode” ser estabelecida, além dos casos em que pode ser reduzida ou mesmo relevada.

Tudo isto faz repousar muito na jurisprudência, serena e sábia, do Tribunal. E, embora não se conheçam muitos excessos, já houve indícios preocupantes para o futuro. Li há tempos um elucidativo acórdão de 1992: um caso de bolseiros em cooperação militar com Moçambique onde, a meu ver, contra os próprios pressupostos do acórdão, se puniu injustamente funcionários que serviram bem o Estado português, em circunstâncias descritas como de flagrante relevação de culpa.


É indispensável bom senso e prudência, clareza e coragem, sentido de Estado, nestas matérias. Desejavelmente, vindo a integrar-se toda a legislação vigente e revogando ou revendo atentamente os excessos mais ocultos e anacrónicos. Convenientemente, também com algum “mea culpa” sobre excessos verbais pré-eleitorais, filhos da mesma “demagogite espongiforme”. É que, sendo justo, mais do que sobre Sousa Franco, os secretários de Estado do PS deveriam irar-se talvez contra os Estados Gerais e o seu próprio Programa Eleitoral. Indigna-se o feiticeiro com o feitiço. Acontece.

José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 15.Junho. 1996

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