Tótó Franco 1x2
Igual em curiosidade, incerteza e paixão à presença da
selecção nacional no Euro 96, só os factos e especulações que rodeiam o
ministro das Finanças.
Domingo, é contra a República Checa. Depois, se, como
ansiamos, Portugal vencer, vêm as meias-finais. O país pára. Para ver e torcer:
são os nossos rapazes. Mas, na mesma quarta-feira, dia 26, no Parlamento,
joga-se despique de igual interesse: a do convénio com os clubes, ou
“totonegócio”. O país lá estará, como em poucas matérias da política; e aí,
gerados até sentimentos contraditórios: por um lado, são “os nossos clubes”;
por outro lado, “estão mexendo no meu bolso”.
Nos jogos da selecção, todos nos arranhamos por saber se
João Pinto, ou Rui Costa, ou Figo, ou Domingos, ou outros estarão em campo,
mercê de factores vários e das opções do seleccionador. A querela vai também
por aí desabrida sobre se, no debate parlamentar, Sousa Franco estará presente,
mercê de si mesmo e da liderança do primeiro-ministro, ou não, mercê da
acumulação de “amarelos”, de lesões de caminho, de zangas no “banco”, ou de
outras estratégias, poupando-se para uma outra qualquer final.
Por mim, jogo na tripla: 1X2. Quanto ao facto e quanto ao
resultado. Não são só as cada vez mais evidentes virtudes terapêuticas do chá
com o primeiro-ministro, António Guterres, ora em Seteais, ora em São Bento,
acalmando com Sousa Franco as mais especuladas tempestades do gabinete. (É
seguramente chá de tília.) É também a passada certa com que os tropeços se vão
superando, ora aparecendo Sousa Franco a assinar as propostas de lei relativas
ao convénio com os clubes de futebol, ora triunfando com a unanimidade do
Conselho de Ministros na badalada proposta de lei quanto à reforma do Tribunal
de Contas. E, enfim, pese a alta voltagem da troca de mimos entre o PSD e o
Ministério das Finanças, é o facto de que Sousa Franco ainda não disse em
definitivo que não irá de todo à Assembleia no dia 26.
O ministro queixa-se de “intrigas”. Procura desvalorizar os
factos sucessivos de múltiplas especulações. Pensa seguramente nas “intrigas” no próprio
Governo, ou nos respectivos gabinetes, ou no PS. A mão, ou as mãos, que agitam
a polémica à volta de Sousa Franco, estão obviamente dentro dos círculos
governamentais. Nalguns casos - nomeadamente quando rebentou a questão dos clubes -, estarão até no seu próprio
ministério e “entourage” mais próxima.
Ninguém, senão aí, poderia ter divulgado quanto foi
divulgado do contexto preparatório do convénio. Ninguém, senão aí, poderia ter
aberto o folhetim entre uma secretária de Estado de apelido Arcanjo e um
ministro de anjo perfil. Ninguém, senão daí, poderia ter construído e
alimentado as suspeitas contra um membro do gabinete de Sousa Franco que será
do PSD... Ninguém, senão aí, poderá ter dado divulgação parcial e claramente
enviesada à misteriosa proposta de lei do Tribunal de Contas, no espírito
evidente de a pôr em xeque. Ninguém, senão aí, poderá ter inspirado, por
exemplo, na própria tarde do Conselho de Ministros que aprovou a proposta de
lei, a publicação eloquente da grosa distorcida de pormenores ao nível da
dispensa (emolumentos, vencimentos, etc.) de que “A Capital” se fazia eco na
quinta-feira passada. Ninguém, senão daí, poderia ter podido ou querido dar
cobertura a uma desejada derrota do ministro, embora viesse a provar-se que
errou redondamente o tiro. Ninguém, senão aí, poderia ter iniciado já as
especulações quanto à remodelação de Outubro!...
Os factos não são famosos. A incerteza que daí emerge não é
boa nem para o Governo, nem para o país. A pasta das Finanças é crucial e estratégica,
tanto no plano nacional, como no muito exigente e crítico contexto europeu
actual. As incertezas, aí, enfraquecem-nos a todos.
Nisto, só há duas soluções. Uma, porventura, a da “poção
mágica “ - as sessões de chá de tília
com António Guterres, sendo já evidente a necessidade de uma ronda geral de chá
nos enervados círculos do Governo, em vez dos até agora exclusivos e intimistas
“ tête-à-tête” de Guterres e Sousa Franco. Outra, ou não fosse tudo isto
política e o ministro Franco, a resposta mais óbvia: a própria franqueza do
debate político.
A transparência e a lhaneza são o único antídoto seguro
contra fofocas e intrigas. O mistério é o seu caldo favorito. Tivesse, afinal, a
proposta de lei do Tribunal de Contas sido inteiramente conhecida, para poder
ser abertamente comentada, e não se teria passado um terço do que se passou. A
novidade nas auditorias e nos relatórios do Tribunal de Contas, circunscritos
ao plano do conhecimento público transparente e ao exercício aberto e informado
da responsabilidade política democrática, é de saudar amplamente; quanto ao
mais, o melhor é aguardar para ler, tanta foi a contra-informação alimentada de
dentro do próprio Governo.
E, quanto ao convénio dos clubes, das duas, uma: ou o
ministro vai e deixa também tudo claro, na sede própria que é o Parlamento; ou,
se não for, deixando de novo sozinho Jorge Coelho, ou outro cordeiro
sacrificial, não poderá estranhar se a tal “intriga” subir de tom e a querela,
em vez de terminar, continuar a corroer o Governo, a sua coesão e ele próprio,
enquanto ministro do fisco.
Da última vez que Sousa Franco interrompeu a actividade
política, há anos, fê-lo batendo estrondosamente com a porta e depondo
violentamente o seu “nojo pela política”. Não o pode - isto é, não deve - fazer
outra vez. Veja-se o caso de Manuel Monteiro, que, pelas bandas do PP, se meteu
pelos mesmo atalhos e se vai consumindo nos mesmos assados, em forno médio. O
líder do PP é caloiro no discurso angelical; Sousa Franco seria acusado, para
mais, de ser repetente.
A matéria do convénio dos clubes é desportiva, é social e
é fiscal. Mas tornou-se fiscal, em primeira linha. A simultaneidade com a
severa condenação à cadeia do empresário da Oliva ofendeu elementares
sentimentos de justiça dos portugueses. E - sejamos
claros -, porque
todos somos parte desta matéria, logo desencadeou especulações e expectativas
sobre a mais festejada e a mais unânime de todas as amnistias: a amnistia
fiscal.
Só isto é susceptível de causar dano ao Estado e ao Tesouro,
pois nunca é bom, sobretudo nos sensibilíssimos comportamentos fiscais, deixar
à solta expectativas de cidadãos e de empresas, legitimadas, justificadas,
avolumando-se sem governo. Se há coisa em que os governos têm mesmo que
governar é no governo das expectativas.
Tive quanto ao convénio dos clubes a comum reacção
epidérmica: contra! Hoje, não penso assim.
Discordo da afectação aos clubes dos 100 por cento da
receita do totobola, ainda que aqui se devesse encontrar parte da solução. Não
creio que os clubes tenham “direito” à totalidade dessa receita - há, e havia, alternativas. Os
tribunais, de resto, no tempo próprio, ainda na década de 80, tão-pouco lhes
reconheceram esse reclamado “direito”. E o Governo tem que reflectir bem no
significado, no alcance e nas consequências de uma declaração política e
legislativa desse tipo.
Com repercussões muito mais vastas do que no futebol, essa
declaração põe em crise pela primeira vez um ponto essencial, de longa tradição
- os fundamentos sociais da política
do jogo. Quebrado o princípio, o edifício pode ruir. Ficam abalados os
fundamentos da posição geral do Estado, com reflexos progressivamente
desgastantes, que poderão, a prazo, ser demolidores: nos casinos, nos bingos,
no totoloto e nos lotos, nas lotarias e, em muitos “dossiers” pendentes, desde
os sérios, como o das apostas mútuas nas corridas de cavalos, aos meros
oportunismos imaginosos que por aí pululam e fervilham.
Mas concordo claramente com o encerramento pragmático,
assumido e definitivo do contencioso fiscal - com
recurso até a perdão fiscal, parcial e condicionado -, posto que haja
garantias efectivas de que será mesmo encerrado e de que não estamos a assistir
apenas a mais um protelamento para outro perdão futuro.
Os termos do convénio quanto à inclusão, no quadro da Liga,
das sanções desportivas e quanto à nova regulamentação das sociedades
desportivas, ajustando com rigor e sem mais eufemismos tudo o que é
profissional à sua efectiva e directa realidade empresarial e comercial, são as
novidades a que importa dedicar atenção. Se aí se for rigoroso e exigente, o convénio funcionará e todos ganharemos: o
desporto, a sociedade, os clubes e a justiça fiscal efectiva. É que o
problema se resolverá na fonte: a vertigem louca dos números milionários, numa
gestão sem responsabilidade exigida, nem controlo atempado. Se os
“rodriguinhos” continuarem, permissivos nos conceitos e nos textos, ou
emperrados na administração prática, desportiva e fiscal, o convénio irá
fracassar - porque o ciclo louco não será
interrompido e o despesismo desmedido não parará de engrossar. E, tal como
aconteceu com o diploma de 1994, voltaremos ao mesmo, depois das próximas
eleições: com uns a rir-se e outros a desembolsar; uns na cadeia, outros à
solta.
O senhor ministro das Finanças também tem que estar presente
no acto de prestação destas garantias, na reafirmação (ou reposição) da
igualdade, no encerramento justo da corrente de ar que se abriu. Ao lado do seu
colega do Desporto e dos demais da política. Esclarecendo - e enfrentando a alegada “hipocrisia”
parlamentar dos PSD e PP. Se não, a tal “hipocrisia” continuará a ecoar e a
fazer ricochete para dentro do próprio Governo.
Jurista
PÚBLICO, 17.Fevereiro. 1996
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