Com bomba e circunstância

O PSD está ainda amarrado a 1 de Outubro. E, por isso, perdeu o debate do estado da Nação. Não foi a actuação do grupo parlamentar. É a linha política.

No último Congresso social-democrata, Santana Lopes afrontou a plateia. Propôs frontalmente outra linha: a de que o PSD compreendesse a sério, que reflectisse mesmo e que aceitasse as razões por que perdera as eleições (legislativas e presidenciais), partindo para outra. Marcelo Rebelo de Sousa não foi tão claro, embora desse a ideia de querer o mesmo. Mas, ganha a liderança, cedo Marcelo se tornou cativo das emoções difusas de um partido que se vê totalmente fora do poder, ao fim de 15 anos contínuos e de 10 anos sozinho. Cedo Marcelo esqueceu o discurso doutrinário próprio com que apresentou a sua candidatura na abertura do Congresso. Cedo Marcelo passou dos tributos devidos a Cavaco Silva à condição de prisioneiro de um “cavaquismo” mal-ferido. Cedo Marcelo se enredou, amarrado nos sentimentos de um partido que se tem por “injustiçado” e nos arremedas efémeros de uma linha e de um discurso políticos de “desforra”.

Tudo isto é, aliás, muito compreensível e respeitável. Mas está errado. E, tal como perdeu as eleições a 1 de Outubro - é um facto -, o PSD continuará a lembrar a derrota e a perder de novo, enquanto for por aí. As razões serão, aliás, as mesmas - será outro facto.

A posição do PSD no debate do estado da Nação e nos dias antes é uma excelente ilustração de como a catarse laranja não foi feita.

Está normalmente adquirida a ideia de que o desempenho da segunda maioria absoluta de Cavaco Silva foi pior do que o da primeira. As eleições confirmaram-no. E parece uma evidência que, dentro do último mandato, o último ano em particular é para esquecer.

Não foram tanto os desempenhos sectoriais e os respectivos brios individuais. É, no quadro político geral, o registo que ficou. 1995 foi, por iniciativa de Cavaco, o ano do “tabu”, aberto logo nos primeiros dias do ano e prolongando-se penosamente arrastado até ao fim. Esta simples circunstância deixou quase tudo em suspenso e teve reflexos praticamente em todos os domínios, ora em incerteza, desagregação ou desnorte, ora em inconsistência, paralisias e adiamentos. Era inevitável. Não falemos mais nisso...

Mas, por isso mesmo, neste preciso primeiro ano de Guterres, a vantagem é sempre claramente do primeiro-ministro. Mesmo que o Governo PS não tivesse feito muito. E Guterres até pôde desfiar o rol.

Na específica comparação de 1996 com 1995, era muito difícil que o Governo e “nova maioria” pudessem sair-se mal. 1995 foi o “annus borribilis” do PSD, do seu Governo e da sua relação com o país. A simples existência de um rumo, onde em 1995 era a incerteza total, ou a simples circunstância de se estar a arrancar, quando em 1995 eram os tempos do fim, coloca sempre a vantagem do lado governamental de hoje.

Ao ir por onde foi, na escaldada brega da desforra, o PSD não marcou um único ponto. Abdicou de afirmar sentido de Estado. Prescindiu de perfilar uma alternativa. E, pior do que tudo, “pôs-se a jeito”: pôs-se a jeito quanto a várias comparações 1996/1995, tendencialmente desfavoráveis; pôs-se ajeito na memória colectiva, quanto a um dos seus piores anos, de memória mais fresca; pôs-se a jeito para que todos se lembrassem das razões por que perdeu as eleições. Pôs-se a jeito para não poder de todo ganhar o debate (o que seria sempre difícil, neste primeiro ano), nem para conseguir empatar. E perdeu.

Tique flagrante do passado inútil é a linha da “picareta falante”. Apesar da verrina da expressão, esse tipo de ataque não surtiu o menor efeito. O dia 1 de Outubro falou.

Ao fim de dez meses, o PSD ainda o não entendeu e insiste no “cliché”: “O Governo”, diz ele, “discursa bem, mas governa mal.”; ou, sofistica Marcelo, “o primeiro-ministro fala muito, e bem; decide pouco, e mal.” É a mesmíssima ideia. Ora, o país não dá sinais - antes pelo contrário - de se ressentir com a ideia de um primeiro-ministro que se exprime correctamente e que explica com frequência o que anda a fazer...

Pior, por sinal, será compreender por que é que Marcelo Rebelo de Sousa teve que ir fazer aquela conferência a martelo, em S. Bento, “a las 5 en punto de la tarde”, com bomba e circunstância. Às vezes, a sofreguidão do estoque precipita a colhida. Garcia Llorca.
regionalização, 
Se o gato tem sete vidas, Marcelo terá umas onze. Mas convém não abusar. Até porque poderá já ter gasto umas duas ou três.

Mesmo os dois êxitos que mais reclama são ainda de destino crítico. Quanto ao “totonegócio”, os ecos internos continuam e falta ver como se resolverá o problema. Quanto ao referendo da regionalização, o futuro é que falará de vez. A única ideia consistente que passou é a de que, ao arrepio das declaradas convicções regionalizadoras, Marcelo, condicionado pela linha final do “cavaquismo”, se determina por um único desejo: paralisar; sabotar qualquer regionalização. E, se assim vier a ser, se o PSD a vier a bloquear como sempre no passado, haverá muito quem o não esqueça. Os eleitores não têm memória de elefante senão a respeito destas questões. Se há matéria que marca os casamentos e as separações em política e que torna atraentes ou inaceitáveis os líderes e os partidos são as reais posições destes a respeito de reformas nucleares do Estado. É aí que se vê quem fala muito e quem faz o quê - quem fala só para entreter e quem faz o que diz pensar. E aquilo é o que, no fim, nunca esquece.

Guterres ganhou, na quinta-feira, a sessão legislativa. Correu-lhe bem o debate parlamentar do estado da Nação. Expôs uma larga “agenda do Governo”, atropelou a “agenda das oposições”. Correu-lhe bem por ele. Correu-lhe melhor pela oposição.

O PSD escolheu lembrar o ano errado e falhou quer o debate, quer a conferência do líder nos corredores. O PP marcou as suas questões, mas não incomoda - o seu caminho não é, já se viu, incompatível com o de Guterres. Os seus territórios são distintos. Pôde até marcar, numa fórmula feliz, a agenda do próximo ano: “o ano da revisão, o ano das consultas populares, o ano das reformas”. E o PCP, mais moderado do que noutras vezes, limitou-se ao papel de “grilo falante”, consciência crítica à esquerda suave.

A ideia que tem vindo a alastrar é, outra vez, a de “ausência de alternativa”, tal como nos anos de ouro de Cavaco. O patente desconforto das oposições sempre que se congeminam cenários de crise política e eleições antecipadas é efeito disso mesmo - as oposições pressentem que Guterres poderia passar facilmente de minoritário a maioritário. E o próprio Governo, salvaguardadas as diferenças de estilo, vai arrolando algumas senhas do vocabulário “cavaquista “ - “O Governo”, ecoa de novo, “é o principal factor de estabilidade política.”

O Orçamento, quer o de 1996, quer o de 1997, cedo saltou para o eixo do debate, noutra claríssima vantagem para o Governo, permitindo brilharete adicional ao ministro das Finanças. Os indicadores positivos do estado da execução orçamental em 1996 - unanimemente reconhecidos, de modo expresso ou tácito - deixaram o Governo completamente à vontade nesse terreno, recordando com sabor a vitória as “profecias negras” de há meses atrás e facilitando cunhar a sua senha: “Rigor económico com consciência social.” E, com tal embalagem, o jogo-de-empurra a respeito dos impostos e do seu aumento, ou não, no Orçamento de 1997, salda-se com vantagem também do lado de Guterres - é mais fácil presumir que Guterres e Sousa Franco continuarão a querer, e a conseguir, compatibilizações orçamentais difíceis do que compreender por que motivo o PSD não consegue declarar objectivos antecipados e assumir compromissos claros nesta sede.

Em Outubro se verá de novo. Estar-se-á, então, no fim do Ano I.

Será o tempo em que o Governo menos poderá já alegar a herança de 1995. E será o tempo em que começará a valer sobretudo a herança de si mesmo. Para o bem e para o mal.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 13.Julho.1996

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