Família e educação - a abstracção fiscal
No debate parlamentar do convénio com os clubes de futebol,
Sousa Franco reafirmou expressamente o sentido rigoroso do princípio da
igualdade. Este não consiste em fazer tudo exactamente igual para todos, mas em
“tratar de modo igual o que é igual e de modo diferente o que é diferente”.
A formulação é clássica e não tem nada de novo em si mesma.
O que terá algo de novo é que o ministro das Finanças, além
de se ter lembrado dela para fundamentar o gorado “totonegócio”, consiga
efectivamente concretizá-la nalgumas áreas mais trágicas e necessitadas do
nosso sistema fiscal. Nomeadamente no que toca à família e à educação, que estão
entre os parentes mais pobres da nossa política fiscal.
Em 1980, no governo Sá Carneiro, houve um primeiro ensaio de
definição e animação a nível governamental de uma política de família. Chegou
a ser criado um departamento governamental específico - a Secretaria de Estado da Família. Foi Sol de pouca dura.
A experiência, inovadora entre nós, mereceria ser melhorada
e prosseguida. Mas não. Foi sucessivamente demolida.
Pesaram talvez os ventos do “reaganismo”, dos “Chicago boys”
e da geração “yuppie”, do “sucesso” e do efémero total. Terão pesado alguns
preconceitos lorpas contra um receado “moralismo”. Mas foi sobretudo o peso
infernal e a inércia gordíssima de uma Administração burocrática e preguiçosa,
desprovida de imaginação e de agilidade, distante e despersonalizada, avessa ao
desenho de políticas sociais integradas e mais atreita ao “ponto-por-ponto” -
em que o indivíduo é o “ponto” q.b.
Anos depois, com o fim da Aliança Democrática em 1983, a
experiência falecia e a nova linha entraria em decadência progressiva. O
declínio começou logo no Bloco Central.
Depois, os anos dos governos de Cavaco Silva foram de
apagamento contínuo de qualquer ideia de política familiar, global e integrada,
munida, por um lado, de um vértice próprio e, por outro lado, de instrumentos e
de agentes adequados a temperar e influenciar horizontalmente as várias políticas sectoriais
que interferem na situação das famílias.
O actual governo parece ter-se limitado a consumar essa
linha de declínio: extinguiu já, ao que parece, a Direcção-Geral da Família.
Não se lhe conhece tão-pouco qualquer outro discurso de política familiar.
Aparentemente: ponto final!
A abstracção individualista das políticas públicas - sobretudo na área das políticas
sociais - é um autêntico desastre. Por um
lado, concretiza desigualdades muito acentuadas, onde a realidade das famílias
devia ser tida em conta - é o caso da
política fiscal. Por outro lado, erra sistematicamente orientações, métodos e
metas, por ignorar e desprezar aquela que é a rede básica das solidariedades
sociais elementares: a família.
Todavia, sinal de esperança, saiu há dias no “Diário da
República” uma recomendação que merece ser seguida com interesse. É a Resolução
da Assembleia da República nº 25/96, onde se recomenda ao Governo um conjunto
de medidas tendentes a temperar a política fiscal por critérios de política
familiar. A Resolução chama-se pomposamente de “política global de família”,
embora tenha apenas aquele objecto. Só que esse objecto é suficientemente
importante e nuclear.
Medidas como “a adopção do quociente familiar” ou “a
correcção das deduções à colecta”, fazendo-as corresponder aos encargos reais
das famílias, são medidas que há muito deveriam ter sido desencadeadas,
honrando a efectiva modernização do nosso sistema fiscal, a sua correspondência
à sociedade real e o desenvolvimento de políticas sociais básicas.
O tratamento das famílias pelo fisco é abaixo do sofrível e,
nalgumas áreas, como as despesas de educação, a abordagem é absolutamente
medíocre. A diminuta consideração da dimensão do agregado familiar e a
imposição de tectos absolutamente irreais são os maiores contribuintes para uma
generalizada aberração.
As despesas de educação, por exemplo, estão incluídas num
conjunto de deduções sujeitas a um tecto. Na prática, isso significa que não se
pode deduzir anualmente em despesas de educação mais do que duas a três
centenas de contos. Se tem um filho no ensino particular e paga de mensalidade
40 contos, as suas contas dizem-lhe que gastou pelo menos 400 contos nesse ano
- o fisco diz-lhe que não:
diz-lhe que só gastou no máximo duzentos e tal contos. Se tem dois filhos nessa
situação, as suas contas dizem-lhe que gastou pelo menos 800 contos nesse ano - o fisco diz-lhe que não: diz-lhe que só gastou
no máximo os mesmos duzentos e tal. Se tem três filhos nessa situação, as suas
contas dizem-lhe que gastou pelo menos 1200 contos nesse ano - mas o fisco insiste que não: diz-lhe
que só gastou no máximo ainda os mesmíssimos duzentos e tal contos. E esta
escandalosa desigualdade igualitária podia seguir por aí fora.
O Sol quando nasce é para todos. Em matéria de justiça e
igualdade fiscais não é assim, sobretudo quando a família e a realidade real
entram em campo.
No caso das despesas de educação, a discriminação é, aliás,
dupla. Não são só as famílias mais numerosas que são discriminadas. É também o
ensino particular e cooperativo, além da agressão feita à constitucionalíssima
liberdade de ensino.
Os tectos fiscais actualmente definidos serão talvez
suficientes para aqueles cujos custos escolares já são suportados pelo Estado
na sua quase totalidade: os que frequentam o ensino público e que, portanto, já
beneficiam dessa “dedução” integral e absoluta. E, por isso, o sistema
discrimina contra as escolas particulares e cooperativas, porque penaliza
gravemente a escolha que por elas seja feita. As escolas privadas não se regem
pelo lucro; mas não estão (como ninguém está) isentas das leis inexoráveis da
economia. E a situação actual é, por isso, quanto a elas, também de grave
concorrência desleal e de inaceitável discriminação fiscal, através dos seus
alunos e respectivos pais.
Sendo o ensino público gratuito, a igualdade, e, portanto, a
efectiva liberdade de escolha, só seria restabelecida com a introdução de um
sistema de “cheque-ensino” - velho
tema da agenda política democrata-cristã e personalista - em que as famílias pudessem escolher
livremente a escola para os seus filhos, pública ou privada, suportando o
Estado os respectivos custos em condições de igualdade. Mas, não se fazendo
isto, o mínimo é que, à semelhança do que acontece com as despesas de saúde, as
despesas de educação sejam dedutíveis pela sua totalidade efectiva e não
comparticipada. Tudo o que for diferente disso é agredir a igualdade fiscal,
discriminar famílias e maltratar a liberdade de ensino.
A correcção desta desigualdade, antiga e gritante, seria,
aliás, particularmente bem-vinda, oportuna e merecida neste rescaldo turbulento
dos exames do 12.º ano. É que, segundo os dados publicados, só um parece ter
tido boa nota - precisamente o tão maltratado ensino particular e cooperativo
que, face aos resultados dos seus alunos nos exames nacionais, sai claramente
por cima, depois de tantas desconfianças.
O ministro das Finanças poderá anunciar já no Orçamento para
1997 estas boas medidas, mostrando-se efectivo cultor do exacto conceito da
“igualdade fiscal”, exactamente como o expôs a respeito do “totonegócio”, e
leitor atento da esperançosa Resolução nº 25/96 da Assembleia da República.
Embora, enquanto não houver uma radical alteração do
discurso por parte do Estado e da Administração Pública em matéria de política
de família, convenha ser céptico. É o que um amigo meu exprime numa outra
máxima de cinismo prudente: “O 'Diário da República' é o maior cemitério de
boas intenções que conheço.” Esperemos que não seja só isto.
José Ribeiro e Castro
Jurista
Jurista
PÚBLICO, 27.Julho.1996
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