O MAI já está a arder?
Passa-se qualquer coisa estranha nas relações do Ministério
da Administração Interna com as corporações que dele dependem. Parece vírus.
Volta, não volta, o ministro Alberto Costa distingue-se por
conflitos com as corporações policiais. Chegou a comentar-se amplamente que a
sua nomeação havia sido infeliz, senão “contranatura”, por se tratar de pessoa
com passado e formação marcadamente “antipoliciais”. A demissão do comandante
da PSP de Lisboa, Vasco Durão, nunca foi muito clara nas suas razões - não parece verosímil que o motivo estivesse
apenas em declarações usualmente proferidas em circunstâncias do género:
celebrações do Dia da Polícia. Há mesmo um recurso que rola para o Supremo
Tribunal Administrativo. A situação de “tensão respeitosa” em que, de há meses,
se arrasta o quadro de relações com a hierarquia policial parece ter-se desanuviado ultimamente.
Diz-se. Mas o melhor é esperar...
Entretanto, foi a vez de o secretário de Estado brandir a
vara sobre os bombeiros, a propósito do primeiro grande incêndio da época, no
Gavião. Apagado o fogo, inflamou a querela. De pronto, veio o ministro a
público reafirmar o “respeito e admiração” pelos bombeiros em geral e depor que
o Governo não questionava o seu “esforço e abnegação”. Procurava pôr água na
fervura - expressão largamente apropriada
ao caso, aliás.
Armando Vara poderá talvez lastimar-se do eco estrondoso que
o inquérito que determinou teve na opinião pública e do gravame explícito que o
caso assumiu, ribombando até à política. Mas não é claro, desde logo, que ele
ou o seu gabinete, de modo inadvertido e precipitado, não tenham desejado esses
ecos, no fito de extrair dividendos políticos da sua deslocação ao local - um pouco como quem quer dizer: “Vêem? Eu
fui lá e o fogo foi logo apagado.” O que transmite um pré-juízo leviano: “nós
somos bons; eles não”.
Não se questiona o direito (e até o dever) do MAI em apurar
as circunstâncias em que se desenrolam os combates aos fogos e aos incêndios
florestais. Mas é de questionar frontalmente que se o faça em termos que
agravem o respeito devido àqueles que os combatem no terreno.
Em áreas desta sensibilidade, tem a obrigação de inquirir
com respeito pela delicadeza das situações e não dando a ideia de que rompe
sucessivamente solidariedades públicas elementares, antes pressuroso nos “bodes
expiatórios”. Se não... reage a “flashes”, termina em recuos semânticos
sucessivos e generaliza o desconcerto.
Um secretário de Estado não é sequer um inspector, ainda que
tutele a inspecção. Um secretário de Estado é um governante e, por isso,
sobretudo um político. Cabe-lhe, em primeira linha, medir e gerir em termos de
oportunidade e de conveniência todas as decisões que toma e divulga. Ora, a
forma como o inquérito foi determinado e propalado teve exactamente o condão
contrário: foi inoportuna; foi altamente inconveniente.
Independentemente de cada questão pontual, o que resulta
sempre destes desentendimentos entre a hierarquia superior do ministério e as
corporações que de si dependem, insinuando-se “julgamentos” públicos sobre
estas, é alguma desmoralização dos aparelhos e um enorme saldo de insegurança
para todos nós.
Se os primeiros conflitos na área policial criaram preocupação
quanto a questões gerais da segurança interna e da sua efectividade, os últimos
encontrões no domínio dos bombeiros puseram em causa e em risco a determinação
dos meios humanos, na altura mais crítica. Comedimento e sensatez teriam sido
recomendáveis.
Aliás, há nos dois casos uma hipersensibilidade preocupante.
Se for verdade que a “culpa” do major Vasco Durão foi ter dito fundamentalmente
que não era correcto que as responsabilidades fossem assacadas por sistema aos
polícias; e se é verdade que a razão determinante do inquérito à actuação do
comandante Jorge Ribeiro foi o ter dito que “eram precisos mais meios” - o caso é muito preocupante.
É absolutamente natural que aqueles que lutam directamente
com as situações mais difíceis exprimam, aqui ou ali, o desejo de “mais meios”
ou reponham, nomeadamente em dias solenes, o garbo da corporação que, no
exterior, possam sentir beliscado. Sempre foi assim e sempre assim será.
Nomeadamente por parte daqueles que, por um lado, aspiram sempre a dispor de
melhores condições para o desempenho eficaz das suas missões e que, por outro
lado, exprimem o brio cívico que têm o direito de sentir pela sua missão, às vezes tão maltratada. Governante que sobre-reage
a essas expressões normais é governante que amputa boa parte da sua
responsabilidade política: a de compreender e transmitir confiança aos que
servem o Estado em situações de risco; e a de transmitir ao público confiança
nos serviços que lhe são prestados.
A época dos fogos está a iniciar-se. Há indícios de risco
severos, como é habitual nesta época do ano. Graças às chuvas, não é natural
que os fogos sejam tão catastróficos como no ano passado, após quatro anos
secos e em que se sucederam, com início logo em Abril na zona de Albergaria,
situações dantescas. Mas tamanho é o quadro de risco da nossa floresta (a que
ainda vai sobrando...) que não há razões para optimismos ou desatenções. De
Julho a Setembro, a situação dos bombeiros é de alerta permanente. E, pela
responsabilidade e dedicação que lhes é exigida, tantas vezes em condições
dramáticas - alguns morreram no ano passado, além de populações civis -,
requeria-se escrupuloso respeito pela serenidade funcional em que deviam estar.
O caso do Gavião abriu, ao contrário, outras querelas
públicas. A Associação Profissional de Bombeiros Profissionais apressou-se a
apoiar a posição do secretário de Estado. A Liga de Bombeiros Portugueses
mobilizou-se em defesa da honra do comandante Jorge Ribeiro e, por via deste,
dos voluntários. Até por isto, ficou uma dúvida perversa neste primeiro
rescaldo: num país que, ano após ano, tanto deve à dedicação, à generosidade e
à coragem dos seus bombeiros voluntários, pretende o ministério alterar a
política e enveredar pela profissionalização com todas as suas consequências? E,
se há reflexões neste sentido, acha que era este o momento adequado para abrir
o debate?
No meio disto tudo, salvou-se o apelo final do próprio
comandante Jorge Ribeiro, visado na contenda, ao apelar na rádio e na imprensa
ao rápido esvaziamento da polémica - pedindo para se “acabar com esta guerra de
palavras, esperar que a situação se acalme e tentar pensar no inimigo, que é o
fogo”. É a habitual nobreza dos voluntários a falar. Se fosse um profissional,
estaria porventura mais preocupado, nesta altura - aliás, legitimamente -, em arranjar advogado, em
trabalhar numa eventual defesa disciplinar ou a preparar já um qualquer
processo, gracioso ou contencioso.
Jorge Ribeiro tem razão. De facto, é assim: o que, agora,
importa são os fogos próprios da temporada. O resto vê-se depois. Nunca devia
ter deixado de ser assim.
Armando Vara que - aqui,
bem - já se disponibilizou a prestar
todos os esclarecimentos necessários na Assembleia da República, também afinou
o discurso político e o gabinete apressou-se a querer “normalizar” o relatório
inspectivo, atenuando-lhe a desmedida carga política e de julgamento com que,
de início, foi posto a soar.
Mas, anunciando-se, por iniciativa do PSD, uma indispensável
audição parlamentar do secretário de Estado, é desejável que, sem prejuízo da
firmeza e clareza devidas, o seu tom não seja outra vez incendiário nem que
propenda para o demagógico.
Tudo o que for reabrir e agravar zizânias ou a perturbação
nos bombeiros é, nesta altura, gravíssimo para o país. O Governo precipitou-se.
É indispensável que o Parlamento (ele) se não engane; e que saiba mostrar que
(por si) vê e ouve bem, além de que conhece o calendário.
Agora, os fogos que interessam são os da praga de Verão. Se,
pelo seu lado, o MAI também estiver a arder, em Outubro logo se verá. Para
isso, há sempre tempo. Agora, não.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 6.Julho.1996
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