Recentragem - "porque sim"

No PÚBLICO, aqui há dias, Fernando Jorge Cardoso concluía: “A criação da CPLP(...) corresponde a uma opinião pública francamente favorável, mesmo quando a argumentação dos apoios se faz sem uma argumentação lógica, mas ao jeito do 'porque sim'. Afinal de contas, a realidade não se constrói também a partir de emoções?”

É assim, de facto, com a criação nesta semana da tão ansiada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Seria difícil encontrar um tema da nossa política externa que merecesse uma tão significativa unanimidade em Portugal.

O “porque sim” ali notado diz tudo. Sentimo-nos bem nessa Comunidade “porque sim”. Ela decorre da nossa própria natureza, da nossa cultura e identidade, da língua comum, de laços fraternos que arrancam do instinto do coração.

Quando, ausente a nossa, sofremos pela selecção brasileira de futebol; quando seguimos com curiosidade e interesse os primeiros passos de Angola ou de Moçambique na Taça Africana das Nações e torcemos por que ganhem; quando jingamos o corpo ou abanamos o capacete ao som de sambas e lambadas, mornas e coladeras, merengues ou rebitas, e não só dolentes ou melancólicos no fado; quando nos pelamos por feijoada, um rodízio, urna cachupa ou uma moamba, ou até um caril; quando seguiremos, como nossos fossem, os feitos de atletas africanos que falam português nos Jogos de Atlanta, desejando-lhes os mesmos sucessos que aos portugueses - é a Comunidade que fala pelos mais naturais e espontâneos sentimentos populares. “Porque sim.” Tão simples e tão profundo. Apenas genuíno.

Vinte anos depois da descolonização, os povos que cresceram irmãos desde a era de quinhentos reúnem-se outra vez. Num quadro diferente e num quadro mais amplo, onde o Brasil se junta também e com relevo importante.

A Comunidade é um abraço por cima da História e por causa da História.

Não foi fácil a sua génese. Basta recordar a série de peripécias e de mal-entendidos que lhe tolhiam o caminho ainda há um ano. Mas, aparentemente, pelos ecos que chegam, pela solenidade unânime da cerimónia e pelo tom dos discursos, a unanimidade que vibra em Portugal é a mesma unanimidade que se respira nos outros seis países. Também “porque sim” - isto é, igualmente autêntica, enraizada e duradoura no sentimento popular.

Porque não há bela sem senão, nem regra sem excepção, só fica a merecer bola preta a ausência lamentável da União Europeia e do seu comissário... português! Coisas...

O Governo averba êxito marcante, com louros sobretudo para Guterres e para a diplomacia de Jaime Gama. Há meses, face aos últimos embaraços de 1995, poucos adivinhariam que, relançado, o projecto se concretizaria de facto nesta data, com tão unânime entusiasmo e tão sonoras presenças.

Portugal recentrou finalmente a sua política externa. Europeu na União, atlântico na NATO, faltava este outro pilar essencial da nossa identidade internacional - de atlantismo civil e cultural, de país do Sul, de fraternidade linguística. Sendo a mais autêntica e profunda daquelas três vertentes, foi a mais problemática e a que mais demorou. A NATO sobrevivera; na CEE e, depois, na União Europeia, fomos caminhando; a Comunidade de países-irmãos tardou até quase ao virar do século.

Que seja verdade que “os últimos são os primeiros”.

A política externa portuguesa está de parabéns. Está feita a recentragem do país. Portugal, como os outros seis, pode gozar agora de um quadro de condições de afirmação internacional que não conhece paralelo no passado recente. Dando asas à imaginação, apetece citar um dito optimista de Mário Soares noutro contexto: “Nada será como dantes.”

Curiosamente, o tema do “porque sim” ocupou o lugar central das cerimónias. Foi o caso do primeiro-ministro Guterres a afirmar na rádio que a Comunidade não pode “transformar-se numa lengalenga”. Ou o Presidente angolano querendo olhar e apontando para além da mera “retórica sentimental e grandiloquente”.

É curioso como se generalizou a tendência de políticos, mesmo quando discursam, evidenciarem menos confiança nos seus discursos. Discursam contra os discursos. É moda. Eles lá sabem.

Sobra a evidência de que é fundamental que a Comunidade caminhe por outros actos concretos, mais efectivos, nas relações multifacetadas entre os Estados e, mais vivas, entre os países e povos. Sobra a evidência de que é decisivo que saiba superar o mero plano dos “cocktails” nas chancelarias e escancarar outro dinamismo sobretudo nas relações económicas e culturais, na circulação frutuosa dos cidadãos e das empresas e na cooperação solidária nas organizações multilaterais, num quadro mundial que é cada vez mais globalizado. E sobra a evidência de que, com o tempo, possa até superar os últimos pudores e reservas defensivas ao nível dos Estados e, um dia, entrar também pelo caminho de, com isenção e abertura de espírito, ajudar os respectivos povos a crescerem na compreensão e na verificação atenta dos temas mais delicados - por exemplo, os direitos humanos e uma efectiva consciência social não racista.

Mas, dito isto, convém não diminuir a importância do discurso, do simples quadro político, do tal “porque sim”. As melhores coisas que se fazem em política são aquelas que são aptas a desenvolver-se depois como que “em automático”, filhas da sua própria dinâmica, gerando frutos por si mesmas. Esta Comunidade pertence aí. Mesmo enquanto mero envelope de relações e de intercâmbio, o facto da Comunidade é importante por si mesmo - pelo que rasga, legitima e estimula.

Certo que é relevante que os Estados amadureçam a consciência e o imperativo de acrescer-lhe muito mais e de multiplicar-lhe os conteúdos. Outra coisa, porém, será indispensável, antes: que os Estados não compliquem, nem bloqueiem; e que deixem os povos fazer o que lhes apetece.

Peregrina é a ideia, nesta onda de entusiasmos, de fazer uma nova RTP - a RTP África. Compreende-se o contexto e aplaude-se a generosidade. Mas o projecto tem que se lhe diga.

Por um lado, pode ser pretexto para “neocolonialismos” ou “paternalismos”, sobretudo os que se lhe imputarem - ou seja, fonte de embaraços. Por outro lado, cada vez menos se compreende a política para a RTP. Face a um quadro económico-financeiro desastroso da televisão pública e do sector, a possibilidade facilista é a da fuga em frente. Hoje, já temos cinco RTP: as duas propriamente ditas; e três outras, cuja legalidade é aliás duvidosa face ao exacto texto da Lei da Televisão em vigor - a RTP-A, a RTP-M e a RTPi. Para quê uma sexta RTP? O sistema está longe de estar saneado e equilibrado.

Todos os anos as RTP custam ao erário público uma fortuna, que “corrompe” por tabela o funcionamento do mercado e todo o sector. Só este ano, serão mais 15 milhões de contos - pelo menos... Uma política de clonagens sucessivas, tipo RTP'n, não é seguramente boa linha.

De resto, nem é preciso, nem é uma boa ideia. Além dos custos, o pior neste tipo de figuras é que cedo se transformam em prateleiras internas - desnatadeiras na cosmética dos custos e, salvo raras excepções ou momentos esporádicos de vontade, fáceis depósitos para encostar os que são incómodos na unidade-mãe. Com quadros desmotivados e meios sobrantes, estas margens empresariais, feitas de restos e de “enxotanços”, cedo se burocratizam e se aprisionam em rotinas de inutilidade.

A ideia é boa. Mas melhor seria, com tal espírito, que o Governo e a administração da RTP soubessem agarrar na RTPi e dotá-la de um caminho novo. A RTPi é praticamente a única coisa boa que, no sector, resultou do Governo anterior. Muito deve à competência e à dedicação de Afonso Rato, que deu corpo e caminho a iniciativas preparatórias onde se destacara o jornalista Carlos Pinto Coelho. Mas a RTPi carece de qualquer coisa mais, na construção de uma grelha e de uma política de grelha que a revista de efectiva identidade, extraindo todos os êxitos possíveis ao seu quadro de comunicação global.

É um êxito técnico; com imaginação, pode ser também um êxito de programas.

O melhor seria que se resolvesse de uma vez a velha questão de colocação na RTPi de produções dos canais privados. E que, além disso, dispondo sempre dos grandes produtos da RTP1, se soubesse aprofundar o quadro de relação especial com a RTP2, se olhasse de novo para o futuro das RTP-M e RTP-A, se animasse, enfim, por aí, a relação com estações africanas e brasileiras, abrindo novas tiras, géneros ou formatos mais ao jeito e ao gosto dos trópicos.

Ninguém precisa de mais uma RTP. Com imaginação, visão e talento, a RTPi pode ser uma televisão de toda a Comunidade. Sem onerar, nem emprateleirar. Antes permitindo­-lhe personalidade e carácter e estimulando-lhe uma química de mestiçagem.

Detesto siglas. E embirro solenemente com a mania das siglas. Têm o dom de esvaziar de autenticidade aquilo que verdadeiramente é. São tique tecnocrático e burocrático que mata o que há de mais humano e sensível. São lixívia de sentimentos e emoções, apagador do que é genuíno. As palavras nunca são indiferentes. São elas que identificam e são elas que antecipam. A CPLP nunca prestará para grande coisa. CPLP? Alguém sabe o que isso é? A Comunidade com certeza. É esta que importa saudar. Por extenso e antonomásia. Porque sim.

P.S. - Uma palavra sobre o caso dos exames do 12.º ano. Um caso que não acaba. Agora há outra confusão danada nalgumas escolas quanto à interpretação da bonificação. Uns tiveram a mais, outros a menos. Toca a rever as pautas. Intervém o Júri Nacional a explicar tudo de novo. É um caso manifesto - e grave - de “iliteracia” de conselhos directivos. À especial atenção do ministro que abriu o mandato com o famoso relatório da dita.
 

 José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 20.Julho. 1996



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