Recentragem - "porque sim"
No PÚBLICO, aqui há dias, Fernando Jorge Cardoso concluía:
“A criação da CPLP(...) corresponde a uma opinião pública francamente
favorável, mesmo quando a argumentação dos apoios se faz sem uma argumentação
lógica, mas ao jeito do 'porque sim'. Afinal de contas, a realidade não se
constrói também a partir de emoções?”
José Ribeiro e Castro
É assim, de facto, com a criação nesta semana da tão ansiada
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Seria difícil encontrar um tema da
nossa política externa que merecesse uma tão significativa unanimidade em
Portugal.
O “porque sim” ali notado diz tudo. Sentimo-nos bem nessa Comunidade
“porque sim”. Ela decorre da nossa própria natureza, da nossa cultura e
identidade, da língua comum, de laços fraternos que arrancam do instinto do
coração.
Quando, ausente a nossa, sofremos pela selecção brasileira
de futebol; quando seguimos com curiosidade e interesse os primeiros passos de
Angola ou de Moçambique na Taça Africana das Nações e torcemos por que ganhem;
quando jingamos o corpo ou abanamos o capacete ao som de sambas e lambadas,
mornas e coladeras, merengues ou rebitas, e não só dolentes ou melancólicos no
fado; quando nos pelamos por feijoada, um rodízio, urna cachupa ou uma moamba,
ou até um caril; quando seguiremos, como nossos fossem, os feitos de atletas
africanos que falam português nos Jogos de Atlanta, desejando-lhes os mesmos sucessos que aos portugueses - é a Comunidade que fala pelos mais naturais e
espontâneos sentimentos populares. “Porque sim.” Tão simples e tão profundo.
Apenas genuíno.
Vinte anos depois da descolonização, os povos que cresceram
irmãos desde a era de quinhentos reúnem-se outra vez. Num quadro diferente e
num quadro mais amplo, onde o Brasil se junta também e com relevo importante.
A Comunidade é um abraço por cima da História e por causa da
História.
Não foi fácil a sua génese. Basta recordar a série de
peripécias e de mal-entendidos que lhe tolhiam o caminho ainda há um ano. Mas,
aparentemente, pelos ecos que chegam, pela solenidade unânime da cerimónia e
pelo tom dos discursos, a unanimidade que vibra em Portugal é a mesma
unanimidade que se respira nos outros seis países. Também “porque sim” - isto é, igualmente autêntica, enraizada e
duradoura no sentimento popular.
Porque não há bela sem senão, nem regra sem excepção, só
fica a merecer bola preta a ausência lamentável da União Europeia e do seu
comissário... português! Coisas...
O Governo averba êxito marcante, com louros sobretudo para
Guterres e para a diplomacia de Jaime Gama. Há meses, face aos últimos
embaraços de 1995, poucos adivinhariam que, relançado, o projecto se
concretizaria de facto nesta data, com tão unânime entusiasmo e tão sonoras
presenças.
Portugal recentrou finalmente a sua política externa.
Europeu na União, atlântico na NATO, faltava este outro pilar essencial da
nossa identidade internacional - de
atlantismo civil e cultural, de país do Sul, de fraternidade linguística. Sendo
a mais autêntica e profunda daquelas três vertentes, foi a mais problemática e
a que mais demorou. A NATO sobrevivera; na CEE e, depois, na União Europeia,
fomos caminhando; a Comunidade de países-irmãos tardou até quase ao virar do
século.
Que seja verdade que “os últimos são os primeiros”.
A política externa portuguesa está de parabéns. Está feita a
recentragem do país. Portugal, como os outros seis, pode gozar agora de um
quadro de condições de afirmação internacional que não conhece paralelo no
passado recente. Dando asas à imaginação, apetece citar um dito optimista de
Mário Soares noutro contexto: “Nada será como dantes.”
Curiosamente, o tema do “porque sim” ocupou o lugar central
das cerimónias. Foi o caso do primeiro-ministro Guterres a afirmar na rádio que
a Comunidade não pode “transformar-se numa lengalenga”. Ou o Presidente
angolano querendo olhar e apontando para além da mera “retórica sentimental e
grandiloquente”.
É curioso como se generalizou a tendência de políticos,
mesmo quando discursam, evidenciarem menos confiança nos seus discursos.
Discursam contra os discursos. É moda. Eles lá sabem.
Sobra a evidência de que é fundamental que a Comunidade
caminhe por outros actos concretos, mais efectivos, nas relações multifacetadas
entre os Estados e, mais vivas, entre os países e povos. Sobra a evidência de
que é decisivo que saiba superar o mero plano dos “cocktails” nas chancelarias
e escancarar outro dinamismo sobretudo nas relações económicas e culturais, na
circulação frutuosa dos cidadãos e das empresas e na cooperação solidária nas organizações multilaterais, num
quadro mundial que é cada vez mais globalizado. E sobra a evidência de que, com o
tempo, possa até superar os últimos pudores e reservas defensivas ao nível dos
Estados e, um dia, entrar também pelo caminho de, com isenção e abertura de
espírito, ajudar os respectivos povos a crescerem na compreensão e na
verificação atenta dos temas mais delicados - por
exemplo, os direitos humanos e uma efectiva consciência social não racista.
Mas, dito isto, convém não diminuir a importância do
discurso, do simples quadro político, do tal “porque sim”. As melhores coisas
que se fazem em política são aquelas que são aptas a desenvolver-se depois como
que “em automático”, filhas da sua própria dinâmica, gerando frutos por si
mesmas. Esta Comunidade pertence aí. Mesmo enquanto mero envelope de relações e
de intercâmbio, o facto da Comunidade é importante por si mesmo - pelo que rasga, legitima e estimula.
Certo que é relevante que os Estados amadureçam a
consciência e o imperativo de acrescer-lhe muito mais e de multiplicar-lhe os
conteúdos. Outra coisa, porém, será indispensável, antes: que os Estados não
compliquem, nem bloqueiem; e que deixem os povos fazer o que lhes apetece.
Peregrina é a ideia, nesta onda de entusiasmos, de fazer
uma nova RTP - a RTP África.
Compreende-se o contexto e aplaude-se a generosidade. Mas o projecto tem que se
lhe diga.
Por um lado, pode ser pretexto para “neocolonialismos” ou
“paternalismos”, sobretudo os que se lhe imputarem - ou seja, fonte de embaraços. Por outro lado, cada vez menos se
compreende a política para a RTP. Face a um quadro económico-financeiro
desastroso da televisão pública e do sector, a possibilidade facilista é a da
fuga em frente. Hoje, já temos cinco RTP: as duas propriamente ditas; e três
outras, cuja legalidade é aliás duvidosa face ao exacto texto da Lei da
Televisão em vigor - a RTP-A, a
RTP-M e a RTPi. Para quê uma sexta RTP? O sistema está longe de estar saneado e
equilibrado.
Todos os anos as RTP custam ao erário público uma fortuna,
que “corrompe” por tabela o funcionamento do mercado e todo o sector. Só este
ano, serão mais 15 milhões de contos - pelo
menos... Uma política de clonagens sucessivas, tipo RTP'n, não é seguramente
boa linha.
De resto, nem é preciso, nem é uma boa ideia. Além dos
custos, o pior neste tipo de figuras é que cedo se transformam em prateleiras
internas - desnatadeiras na cosmética
dos custos e, salvo raras excepções ou momentos esporádicos de vontade, fáceis
depósitos para encostar os que são incómodos na unidade-mãe. Com quadros
desmotivados e meios sobrantes, estas margens empresariais, feitas de restos e
de “enxotanços”, cedo se burocratizam e se aprisionam em rotinas de inutilidade.
A ideia é boa. Mas melhor seria, com tal espírito, que o
Governo e a administração da RTP soubessem agarrar na RTPi e dotá-la de um
caminho novo. A RTPi é praticamente a única coisa boa que, no sector, resultou
do Governo anterior. Muito deve à competência e à dedicação de Afonso Rato, que
deu corpo e caminho a iniciativas preparatórias onde se destacara o jornalista
Carlos Pinto Coelho. Mas a RTPi carece de qualquer coisa mais, na construção de
uma grelha e de uma política de grelha que a revista de efectiva identidade,
extraindo todos os êxitos possíveis ao seu quadro de comunicação global.
É um êxito técnico; com imaginação, pode ser também um êxito
de programas.
O melhor seria que se resolvesse de uma vez a velha questão
de colocação na RTPi de produções dos canais privados. E que, além disso,
dispondo sempre dos grandes produtos da RTP1, se soubesse aprofundar o quadro
de relação especial com a RTP2, se olhasse de novo para o futuro das RTP-M e
RTP-A, se animasse, enfim, por aí, a relação com estações africanas e
brasileiras, abrindo novas tiras, géneros ou formatos mais ao jeito e ao gosto
dos trópicos.
Ninguém precisa de mais uma RTP. Com imaginação, visão e
talento, a RTPi pode ser uma televisão de toda a Comunidade. Sem onerar, nem
emprateleirar. Antes permitindo-lhe personalidade e carácter e estimulando-lhe
uma química de mestiçagem.
Detesto siglas. E embirro solenemente com a mania das
siglas. Têm o dom de esvaziar de autenticidade aquilo que verdadeiramente é.
São tique tecnocrático e burocrático que mata o que há de mais humano e
sensível. São lixívia de sentimentos e emoções, apagador do que é genuíno. As
palavras nunca são indiferentes. São elas que identificam e são elas que
antecipam. A CPLP nunca prestará para grande coisa. CPLP? Alguém sabe o que
isso é? A Comunidade com certeza. É esta que importa saudar. Por extenso e
antonomásia. Porque sim.
P.S. - Uma palavra sobre o caso dos exames do 12.º ano. Um caso que não acaba. Agora há outra confusão danada nalgumas escolas quanto à interpretação da bonificação. Uns tiveram a mais, outros a menos. Toca a rever as pautas. Intervém o Júri Nacional a explicar tudo de novo. É um caso manifesto - e grave - de “iliteracia” de conselhos directivos. À especial atenção do ministro que abriu o mandato com o famoso relatório da dita.
P.S. - Uma palavra sobre o caso dos exames do 12.º ano. Um caso que não acaba. Agora há outra confusão danada nalgumas escolas quanto à interpretação da bonificação. Uns tiveram a mais, outros a menos. Toca a rever as pautas. Intervém o Júri Nacional a explicar tudo de novo. É um caso manifesto - e grave - de “iliteracia” de conselhos directivos. À especial atenção do ministro que abriu o mandato com o famoso relatório da dita.
Jurista
PÚBLICO, 20.Julho. 1996
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