O estado da nação
Quando António Guterres venceu facilmente há quase dois
meses o debate parlamentar sobre o estado da Nação, isso não significou que ganhasse
o estado da Nação propriamente dito. Pelo contrário, o sentimento que cresce é
o de que a nação se limita apenas a rolar num enorme e arrastado gerúndio: vai
andando.
O que mais surpreendeu nesse debate foi que não aparecesse
ninguém, na Assembleia da República, a inventariar um qualquer retrato da
situação do país, fosse um apanhado geral, fosse em detalhe sector por sector,
e a, de modo enérgico e mobilizador, afirmar ou propor: “Quanto a isto, vamos
por ali; sobre aquilo, o caminho é por aqui.” Antes, para a fácil vitória parlamentar
do Governo, bastou uma ou outra invocação das “dificuldades herdadas”, uma ou
outra comparação com um ano atrás e algum relatório de medidas avulsas, antes
da estocada final do ministro das Finanças sobre a evolução positiva da
execução orçamental. Mas, se antes do debate o país não tinha uma ideia clara
de um rumo colectivo, depois... também não.
O país não ouviu no Parlamento as suas perguntas. E, por
isso, não ouviu também qualquer resposta que valha.
Era importante que o primeiro-ministro fosse capaz de o
intuir e de corresponder a essa outra necessidade de maior fôlego, quando
reabre agora o ano político.
A maioria pode estar bem, o PS pode até sentir-se seguro com
qualquer cenário que passasse por eleições antecipadas (terror das oposições), as
projecções para as autárquicas podem ser radiosas, mas o país não está bem e a
nação não se recomenda. Ao fim de quase um ano da “nova maioria”, o sentimento
mais vulgarizado já é tão-só, como nos anos do fim do cavaquismo, outra vez o
de que “não há alternativa” - fraco
consolo, escasso alimento para uma maioria fresca.
O tal “diálogo” e o atendimento pontual de algumas das
questões que o “tabu” deixara empanadas por 1995, junto com o mero facto da
alternância, terão chegado para marcar o ano que passou, pelo contraste dos
estilos e pela mudança dos actores. Agora não vai chegar.
Permanecem as questões maiores e generaliza-se a ideia de
vivermos num mero estado de fatalismo clientelar, volteando ora “laranja”, ora
“rosa”, sem grande visão global que se afirme, nem projectos mobilizadores que
espevitem, nem coragem nem arrojo, nem vontade nem sonho, nem ambição nem
destino. Vulgarizam-se penosos sentimentos em gerúndio.
O problema para Portugal é que ninguém se apresenta a interpretar
qualquer grande desígnio de futuro. Nem no Governo, nem nas oposições. O país
vai andando, mas não parece saber muito bem para onde. Há mesmo um ambiente de
dormência. A política vai fraca, o desenho de rumos falta, escasseiam sonhos de
arrojo e vontades de vigor. Anda uma crise anímica por aí e a melhor síntese do
estado da nação é a de que o país está desmoralizado.
O pior de tudo é a economia ou, melhor dito, a sensação que
dela transparece para os sentimentos da sociedade. Os indicadores até podem não
ser maus, sobretudo para a estrita leitura dos tais critérios de convergência.
Mas a sua sensibilidade social é claramente negativa - o desemprego vai mais alto, o seu espectro insinua-se nos espíritos como fantasma negro a assombrar o futuro e, com
tanto subsídio europeu para deixar de fazer isto e mais aquilo, foi-se
generalizando uma tristeza remunerada à medida que os campos param, as pescas
encolhem e as indústrias não crescem. Sente-se por aí uma inquietação contida
caminhando nos corações: o que vai ser de nós? Um dia, pode ser angústia. Por
ora, é apenas o velho lugar-comum: não estamos bem, nem mal, antes pelo
contrário.
Em plena CIG, qual é a ideia europeia de Portugal? Como é
que vamos integrar o “pelotão da frente”, se, numa multidão de problemas e
indicadores, continuamos é a disputar a “lanterna vermelha” à Grécia? Uma vez
que isto nunca é igual para todos, quem é que viajará à frente e quem é que
continuará a penar cada vez mais atrás?
Seremos capazes de acelerar como a Irlanda conseguiu? O que
vai ser e em que vai consistir a nossa economia, quando não houver mais nada
para pararmos de produzir? Teremos agricultura? E pescas? E marinha? Voltará
alguma vez às nossas costas e portos? E indústrias quais, entre as tradicionais
e as novas? Como vai evoluir o emprego e para onde? Como seremos sem subsídios?
O que queremos ser sem subsídios? E existimos, sem subsídios?
Reaberta uma outra comunidade, através da tal de CPLP - sigla lastimável -, vamo-nos recentrar no espaço
externo? Que outras oportunidades é que a Comunidade vai abrir ou reabrir? Que
perspectivas? Como vai o país empreender-se por aqui, em intensa recirculação
de pessoas e bens, de iniciativas, de novos caminhos e solidariedades mais
estreitas, rumo ao sul?
Na educação, o retrato foi de desastre no meio dos rescaldos
dos exames do 12.º ano? Qual é, afinal, o diagnóstico certo? Estaremos, de
facto, a fabricar gerações desprovidas das competências básicas? Sem prejuízo
da contínua introdução de conteúdos modernos, iremos não esquecer as valências
essenciais do sistema de ensino? Que futuro estamos a desenhar nas nossas
escolas? Se os sinais são mesmo de alarme geral, como chegou a transparecer,
irá o Governo empreender algum “back to basics”? Quando? Como? Com que metas?
E a pobreza? A velha dos campos atrasados e a nova das
periferias urbanas? Com dois milhões e meio de pobres, surpreende como poucos
ainda se escandalizam com tão estrondoso fracasso da geração 60, dos
socialismos vários e de todos os seus amanhãs que cantam. Não estamos melhor.
Antes pior. Falhou o receituário marxista e toda a gritaria revolucionária. Mas
terá morrido também no corpo do país o sentido social elementar? Ficou a faltar
consciência cívica, nomeadamente entre os mais novos? Os modelos de acção são
generosos e solidários ou continuarão norteados para o “jet set” de cá e de lá,
para a mediocridade fútil do seu universo de aparências e para os múltiplos
efémeros de ocasião, em plástico? Como vamos erradicar a pobreza e responder já
às misérias maiores? E a droga? Pode vencer-se? É para vencer? Quando? Como?
As populações, os povos e as sociedades precisam de uma
noção clara da estrada em que se encontram. Precisam de uma ideia para
caminharem. Precisam de metas e de tempos para marcação e verificação de resultados.
De uma noção clara dos obstáculos que se apresentam e dos que se seguirão. De
uma consciência das capacidades necessárias para os enfrentar e vencer. De uma
antecipação. Da antecipação indispensável a reunir as capacidades que existem e
a construir as que faltem. É isso que não existe. Mais do que precisarem, os
povos gostam de se sentir mobilizados. É isso que não estamos. E os povos
agradecem também conhecer o enunciado dos sacrifícios. Quando a viagem é grande e “não há” sacrifícios, os povos desconfiam - porque, assim, a viagem irá fracassar; que
é exactamente o que ninguém quer.
Haverá essa clareza por aí? Visões de rasgo, promessas
mobilizadoras, grandes esperanças sobre o futuro? O Governo tem que dar
resposta a isso. Se não, terá que surgir quem dê; o país terá que procurar quem
dê. Mais tarde ou mais cedo. É que as perguntas não acabam.
A reforma do sistema político e eleitoral vai mesmo
fazer-se? Ou continuaremos a lamentar, disco partido, lengalenga, a patética
inadequação do sistema de representação parlamentar, sem nada fazer, como
acontece desde há dez anos? Os partidos que temos sabem resolver as próprias
questões que lhes dizem directamente respeito? Ou nem isso? Os partidos que
temos sabem resolver os problemas próprios que há muito identificaram? Ou nem
isso? Os partidos que temos são de fibra? Ou são moluscos?
A justiça vai seguir atrasada e lenta, lenta e estranha,
pertença de corporativismos que. não respondem perante ninguém? A política
criminal vai ser cada vez mais propriedade exclusiva do Ministério Público? E
nós? E a consciência popular? E a opinião pública? E as prioridades
democráticas? O cargo de ministro da Justiça ainda faz sentido?
E a regionalização? Ainda há convicções por aí? Ou o
interior, o desenvolvimento e a reanimação de energias vitais já estão
esquecidos? A ideia de um patriotismo solidário já perdeu? O império do centro
já ganhou? Onde? Como? Porquê? A reforma da administração pública já foi morta
e enterrada? A aproximação dos administrados já não interessa?
Vamos continuar como... já éramos?
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 24.Agosto.1996
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