PP & PP: manobras de Verão
A recente posição de Paulo Portas era mais ou menos
aguardada. Mas, aguardada, não é por isso menos importante.
Geralmente considerado um estratego fundamental da
transmutação do CDS em PP e havido até como “o criador da criatura”, Portas vem
repor a questão do centro. Ele próprio desdenhará de interpretações que
dissessem tratar-se de um “regresso ao centro”, conhecidas que são as suas
posições críticas quanto a qualquer centrismo referencial. Mas foi explícito em
declarar que o território de crescimento do PP estará nas planícies do
centro-direita e não nos penhascos da direita radical em que o discurso oficial
e o estilo de Manuel Monteiro mais têm carregado.
“Recuperar a alma”, como Portas veio propor recorrendo à
imagem do carregador inca, não é tarefa fácil, nem muito clara. Como irá “o
criador da criatura” recriar outra criatura? E “que alma” exactamente é que se
quer recuperar?
A dificuldade maior na recolocação de partidos e de
movimentos políticos não está só no discurso aparente, mas na real capacidade
de re-federar. E, ao federar ou re-federar, na afirmação da linha central. Nos
movimentos políticos, pode haver vários grupos, famílias e tendências; mas
todos se organizam à volta de um eixo. Este eixo é que marca o carácter e constitui
a referência de agregação. E o que marcará toda a diferença é saber se esta
migração para o centro-direita é apenas um outro passeio pelas margens ou, de
facto, a recolocação da alma e do eixo fundamental do Partido Popular.
Há dificuldades. O Partido Popular fez-se de algum soberano
desprezo pelo antigo CDS. É facto que a vergasta estava sobretudo assestada
contra um elitismo sinuoso e alguns tiques nobiliárquicos que marcaram
negativamente a sua decadência e enterro, nos sucessivos baldões dos anos 80,
post-Amaro da Costa. Mas, no meio de vagas ora nacionalistas, ora
ultraliberais, visou-se também o seu núcleo doutrinário essencial, afundando a
sua marca personalista, social, moderada, democrata-cristã, europeia, em certo
sentido de “conservadores de progresso”. Os cacos recebidos pela geração
monteirista não eram, de facto, famosos - sobretudo
se nos lembrarmos que muitos dos protagonistas da viagem da demolição, como
Lucas Pires, ou Vieira de Carvalho, ou José Gama, concluída a obra, acabaram
rumando ao PSD, entendido como federação “tutti fruti”.
Agora, não basta olhar-se e dizer-se: “Centro-direita, gosto
muito de ti!” A questão do centro-direita é uma questão de políticas, qualquer
delas difícil face ao radicalismo fundacional do PP. É a Europa e a questão
europeia, onde já se notaram mudanças de tom. Mas está o PP disposto a
reconsiderar a sua reinserção na família democrata-cristã europeia? Quererá o
PP regressar ao PPE, indo aí mitigar as acelerações federalistas? E pode? Ou
continuará a disparar, orgulhoso, só e protestatário, alienando de vez esse
espaço? São ainda a regionalização, a descentralização e o municipalismo.
Reencontrará o PP convicções mínimas ao nível da autonomia e da iniciativa
regional e local? Ou preferir-se-á porta-voz do centralismo iluminado? Ainda
estamos todos à espera do famigerado documento de proposta descentralizadora
“original e avançada” do PP, que, qual quadratura do círculo, iria demonstrar
como o municipalismo dispensava a regionalização... É também o discurso sobre a
classe política e o sistema político. Será o PP capaz de concorrer para a
reforma efectiva do sistema político para melhorar a democracia? Ou continuará,
“grilo falante” de bibe e porrete, a preferir martelar tão-só a classe política
para aperfeiçoar a demagogia? E é, em geral, a reposição de um sólido lastro
doutrinário fundamental, que possa reorientar a definição coerente das
políticas económicas e sociais, a afirmação de uma ideia nacional no quadro
europeu e a resposta à questão-chave do desenvolvimento - isto é, avançar uma proposta de
alternativa global que possa candidatar-se a ser escolhida; em vez de simples
repentismos, populistas e oportunos, que podem merecer amplas “manchettes”,
numerosos comentários, favores de ocasião, mas... que nunca serão escolhidos.
Independentemente do que vier a passar-se e do sucesso que
esta nova linha retomada venha, ou não, a ter, uma coisa parece certa: no
horizonte das autárquicas de 1997 e das legislativas de 1999, o revisionismo já
começou no seio do Partido Popular.
O discurso de Paulo Portas não é um facto isolado. Poderá
mesmo ser objecto de acordo tácito com os “monteiristas” ou, pelo menos, com
Manuel Monteiro ele próprio, ao modo de uma repartição de flancos em que a
direcção do PP quisesse ampliar a frente de ataque. Mas, ainda que assim não
seja, parece evidente que é a linha enunciada por Portas que irá ter
continuidade.
Por um lado, pela simples natureza das coisas - o discurso radical e “de protesto” que fora
suficiente antes das legislativas do ano passado, atingiu há muito um beco sem
saída e é notório que não só não é apto a levar o PP a ultrapassar e a crescer
para além da barreira dos 10 por cento, como inclusive o poderia
reconduzir de volta aos 4 ou 5 por cento se nada fosse feito a esse respeito. A
fase protestatária tinha que ser substituída por uma outra fase construtivista.
Por outro lado, o anunciado regresso de Lobo Xavier à
liderança parlamentar, a concretizar-se, deverá ser entendido na mesma linha.
Essa é também, afinal, a linha que lhe corresponde. E, além disso, a suave
maturação que o poderá reconduzir “sem dor” à chefia parlamentar terá que ser
vista como outro sinal de um mais amplo consentimento tácito no quadro da
direcção dos populares. Com o que poderia antecipar-se uma próxima sessão
legislativa com tentativas de algum retorno do PP a, ao menos, “algum CDS”.
Pode haver nas posições de Portas alguma influência do
espírito aveirense. E, se assim for, o reposicionamento que propõe merece ser
seguido com atenção. Paulo Portas, que também cultivou distâncias várias face
ao conceito CDS, pareceu surpreendido com o que foi encontrar em Aveiro quando
por ali se candidatou e fez campanha. E, surpreendido ele próprio, surpreendeu
com declarações sucessivas de admiração pelo CDS e pelos CDS aveirenses,
proclamados como exemplo. Por sinal, sei bem do que fala Paulo Portas. E,
apesar dos quase 20 anos passados, é natural que as coisas não tenham mudado
muito no essencial.
Não era, de facto, por acaso que Amaro da Costa considerava
expressamente Aveiro “a capital do CDS”. Os militantes aveirenses sempre
estiveram entre aqueles que melhor sabiam exprimir e identificar a linha de um
partido democrata-cristão popular, onde mais palpitava o coração e o instinto
de Adelino Amaro da Costa.
Pode ser que esse resíduo do CDS original, genuíno e
militante, tenha inspirado também - além da
mera necessidade - este desejo de
recolocação. E, se assim for, há que seguir os movimentos.
O avanço anunciado por Portas procura ser certeiro. É que,
de facto, um dos maiores vazios actuais da política portuguesa está, na
verdade, no centro e no centro-direita de que se desertou. Por um lado,
directamente por força do próprio radicalismo e populismo que mais
caracterizaram o discurso do PP; por outro lado, indirectamente, ao terem
sucesso na marcação da agenda, produziram também um arrastamento do discurso do
PSD, obcecado com a ideia de proteger o seu flanco direito da ameaça “pêpista”.
O centro-direita e o centro são, por isso, novo território aberto de conquista
e, de facto, aquele que ditará boa parte do futuro próximo. Sem preenchimento
deste vazio, onde uma grande mancha do eleitorado se situa, nenhuma alternativa
se poderá construir à actual maioria socialista.
José Ribeiro e Castro
Jurista
Jurista
PÚBLICO, 10.Agosto. 1996
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