São estradas, Senhor!
Pode imaginar-se a cena: o primeiro-ministro Guterres,
cruzando-se com o ministro João Cravinho ou o secretário de Estado Crisóstomo
Teixeira, perguntar-lhes o que levam no regaço e algum destes, travestido de
Rainha Santa, desenrolar, sorriso rasgado, o PRN 2000 e depor: “São estradas,
senhor!”
De facto, não se esperava. Depois de anos de críticas à “cultura
do betão” e do aparente travão imposto logo no início do mandato rosa, este
“milagre das estradas” não era esperado. O novo Plano Rodoviário Nacional - o tal PRN 2000 -, reformulação do anterior, é uma boa medida. Embora tenha
insuficiências e desequilíbrios de perspectiva que não se esperavam de um
Governo presidido por Guterres.
A primeira coisa boa do PRN 2000 é aquela que, porventura,
mais se procurará esconder - é a
continuação do “ferreirismo”. As obras vêem-se. E, vendo-se, ficam associadas
àqueles que mais as dinamizaram. O nome que marcou foi indiscutivelmente o de
Ferreira de Amaral, nome que milhões de automobilistas ou camionistas evocam
todos os dias, cada vez que circulam nas nossas estradas e recordam o quadro
calamitoso de poucos anos antes. O antagonismo político e as críticas
despeitadas do “antibetão” podiam fazer recear o pior - que o desenvolvimento viário acelerado iria ser
interrompido sob o império rosa. Aparentemente, não é assim. E essa é a
primeira boa notícia, quando o debate se reabre e se aguarda pelos orçamentos e
pelo calendário final de obra, que é o que verdadeiramente importará em obras
que são de asfalto e betão e não de papel e tinta.
Basta ir aqui ao lado, à vizinha Espanha, para verificarmos
empiricamente uma realidade que nos esmaga. Apesar do espantoso progresso da
era “cavaquista” e do acelerador “ferreirista”, o atraso português nas estradas
não só é enorme como, em termos comparados, poderá até ter aumentado. Com as
mesmas ajudas comunitárias, a Espanha fez muitos mais quilómetros de vias
modernas - não só em termos absolutos
(o que nada espantaria), mas, à vista desarmada, também em termos relativos e
proporcionais. E continua.
Por isso, se as obras viárias merecem alguma crítica, não é
que se tenha feito de mais. É que é preciso construir muitíssimo mais e
depressa, para acompanharmos o passo dos nossos vizinhos e, no virar do século,
acedermos a uma rede viária efectivamente europeia e moderna.
A oposição rosa andou aqui com o discurso errado durante
anos. É bom que tenha afinado tiro e discurso após aceder ao Governo, em lugar
de teimar numa medíocre “contenção” que penalizaria largamente o país e o nosso
desenvolvimento.
O PRN 2000 faz, de resto, alguma “actualização em execução”
do plano original de há onze anos atrás. Era indispensável e devido. As
inovações são positivas e traduzirão um esforço assinalável: mais 600
quilómetros de Itinerários Complementares (os IC), a multiplicação dos troços
com faixa dupla nos Itinerários Principais (os IP) - o plano, afinal, já será do séc. XXI!... -, a resolução de alguns “becos” ou “nós cegos” em
certos entroncamentos da rede básica e a superação da ambiguidade algo
fantasiosa nas relações com as autarquias, através seja da retoma das Estradas
Nacionais (e da revisão do seu regime), seja da criação do novo escalão das
Estradas Regionais.
O Governo terá sabido articular a revisão do Plano
Rodoviário com a regionalização em perspectiva. As novas Estradas Regionais
(cerca de 4500 km de estradas assim reclassificadas) serão indício disso - e não é verdade que esteja a “pôr os
carros à frente dos bois”, já que as actuais CCR serão instância suficiente de
administração transitória, até que as Regiões Administrativas sejam uma
realidade. É normal que tenha feito assim e é positivo que o faça, revelando
imaginação e capacidade de adaptação descentralizada. Estradas e regionalização
são, afinal, peças estratégicas essenciais de um comum e mais geral processo de
desenvolvimento: de desenvolvimento regional. Não se excluem, nem se substituem
- complementam-se. Uma rede viária
moderna, completa, célere, articulada, moderna e um quadro administrativo
descentralizado, próximo das populações e responsável perante estas, são uma
das últimas reservas (se não a última) de desenvolvimento do país. A que mais
tem tardado. A que mais longe nos poderá levar, abstraindo de outros factores
externos.
É aqui justamente que o PRN 2000 surpreende negativamente
pelo seu conservadorismo.
Quando se define um plano destes, há duas linhas possíveis:
uma é servir basicamente as tendências de tráfego dominantes já estabelecidas
e os fluxos de desenvolvimento instalados; outra que consiste em (obviamente
sem ignorar aquela dimensão indispensável) procurar agir sobre a própria
realidade, servindo a instalação de outros fluxos de desenvolvimento e
procurando favorecê-la justamente pela equidade (ou até pela discriminação
positiva) ao nível das comunicações e acessibilidades. Esta última atitude é
que seria reveladora de alguma visão, já que a primeira se limita a ser
serventuária do que existe.
Nesta óptica, o PRN 2000 é uma desilusão. Num Governo que
tanto tem feito alarde - e bem - das questões da interioridade, não se
esperava. Apesar dos seus méritos, o Plano não traz nada de significativamente
novo em termos de transformação da malha fundamental de desenvolvimento do
país. O Sul alentejano e o interior são claramente discriminados negativamente
(como já eram antes), o desenvolvimento regional não é servido em termos da
respectiva descentralização e desconcentração efectivas, e basta olhar para o
mapa publicado para se verificar como o PRN continua servil perante a
sobreconcentração no litoral centro e norte e na excepção algarvia. O Plano faz
um mero “upgrade” das tendências instaladas, mas não parece apto a alterar
coisa nenhuma. E, sabido como estas coisas (acessibilidades e comunicações
rápidas, de um lado, e desenvolvimento, do outro) interagem entre si, o facto é
de criticar, sobretudo quando se trata de um plano debruçado sobre o tal
“século XXI”...
Três sinais disto: com a única excepção do troço do IP2
entre Vila Velha de Ródão e Guarda, não há uma única via rápida com faixa dupla
a servir o interior (sabe-se que o senhor primeiro-ministro reclama a sua
condição adoptiva de “beirão”, o que só lhe fica bem; mas cabia-lhe lembrar-se
de que “o interior” não é só a Beira); o porto de Sines continua “esquecido”,
sobrando-lhe apenas os escassos quilómetros de via rápida que datam do seu
nascimento no tempo de Marcelo Caetano; o Baixo Alentejo continua menosprezado
e desprovido de qualquer eixo transversal a nível da rede básica dos IP ou dos
IC, seja pela linha clássica de Aljustrel, seja pela de Ourique-Castro Verde,
na ligação do seu litoral a Beja - Beja
fica mesmo a ser o único distrito cujo atravessamento por IP ou IC não é
garantido.
Aqui, na verdade, é que poderia ver-se alguma diferença
qualitativa, em lugar do simples “upgrade” do “ferreirismo”. Na capacidade quer
de antecipar (e evitar) estrangulamentos futuros, quer de agir sobre a
realidade no sentido de a reformar e modificar, rasgando novos eixos de
comunicação rápida e servindo novos pólos de desenvolvimento, equilibrados e
mais descentralizados.
Três sugestões, por isso: primeira, que todo o traçado do
IP2, desde o IP4 perto de Bragança até ao IPl cerca de Ourique ao sul de Beja,
passe a faixa dupla, à semelhança de tantos outros IP - o que habilitaria o interior com uma via homóloga de
comunicação autónoma, vertical, paralela à fronteira, sem a crónica
“litoralo-dependência” dos actuais eixos dominantes; segunda, que o traçado do
IC33 e do IP8 de Évora a Sines passe igualmente a via dupla, permitindo ao
porto de Sines beneficiar de condições similares de acesso ao de Setúbal (e ao
de Lisboa, a partir do Sul) e fomentando, assim, um tráfego alternativo em via
dupla contínua até Sines, desde Espanha, pelos IP7 (Caia) e IP1 (Ayamonte,
Algarve) ou, em via simples, pelo próprio IP8 (Ficalho); e, terceira, a
graduação em IC (o IC34) da via que, do IC4 e pelas antigas (e restauradas?)
N263 e N123, liga Milfontes-Odemira a Ourique (IP2), assim repondo um eixo
moderno de atravessamento do Baixo Alentejo, de Beja ao litoral.
Em questões como estas é que uma visão rosa se veria. E que
entraria pelo séc. XXI, diferente.
José Ribeiro e Castro
Jurista
Jurista
PÚBLICO, 3.Agosto.1996
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