Spínola, Portugal e o futuro


A homenagem ampla que rodeou o falecimento de António de Spínola diz muito do modo como marcou o destino de Portugal. E, todavia, fê-lo de forma muito pouco típica: sendo General, marcou pela paz; africano, retornou-nos à Europa; dito autoritário, rasgou a liberdade; não sendo político de raiz, nem tendo ocupado o Poder longamente, apontou os desígnios seguintes do País e da política nacional; não sendo um escritor, nem um pensador, marcou uma geração com um livro, “Portugal e o Futuro”.

Não foi Presidente da República mais do que cinco meses e, todavia, 22 anos depois, congrega honras e palavras que só aos grandes fundadores se destinam. Fracassou politicamente, teve que exilar-se em Espanha, chegou à condição de perseguido e proscrito, revolucionário clandestino; e, pacificada a República, regressou pela porta grande das boas memórias.

Na minha vida, como na de muitos outros, este homem passou como um meteoro. Entrou em Fevereiro de 1974. Saiu em Setembro do mesmo ano. Entrou com o “Portugal e o Futuro”. Saiu com a sua renúncia de Presidente da República, a seguir ao 28 de Setembro.

No início de 1974, era a esperança de todos os que, do centro para a esquerda, queriam a mudança imediata do regime. Em Abril/Maio de 1974, tornou-se a esperança de todos os que, do centro para a direita, receavam a aceleração revolucionária. O MFA usou-o como gazua junto dos mais conservadores. Os mais conservadores queriam-no como travão contra os ímpetos do MFA. Ele também. Estava, de facto, no centro do vulcão.

É neste cruzamento de contradições que Spínola encontrou o seu lugar e marcou o seu destino imediato. Era a bandeira de um mastro que não empunhava. Com o trote político­ militar da época, era cada vez mais um arvorado e menos o comandante. Não queria assim. Poucos meses depois, sucumbia às tensões político-militares e preferiu renunciar. Muitos não entenderam porquê, nem para quê. Eu fui um deles. Ficámos mais sózinhos. Com 20 anos, eu tinha sido um dos muitos milhares de portugueses que, mal publicado o seu livro de referência, invadiram as livrarias e esgotaram várias edições sucessivas em poucas semanas. Lembro-me de o ter devorado em poucos dias. O seu projecto federalista era apaixonante.

Para todos os que acreditavam na África portuguesa, para todos os que a amavam, para aqueles que sentiam que a guerra só poderia ter uma solução política, para os que acreditavam que era possível e necessário continuar - e não abandonar -, para os que sentiam a pluricontinentalidade como desígnio e o multirracialismo como uma natureza, o federalismo de uma Comunidade Lusíada democrática era um caminho extraordinário. Uma viagem apaixonante. Uma promessa de entusiasmo. Havia até os que pensávamos que a capital desse outro Portugal poderia ser em Angola, em Luanda ou na Nova Lisboa de Norton de Matos. Grande ilusão. Sonho espantoso.

A estes anos de distância, ainda esmaga como tudo isso começou e acabou em poucos meses. Logo em Julho/Agosto de 1974, já tudo estava terminado, em descolonização apressada e à toa que tomara definitivamente o freio nos dentes. Arrepia a memória da febril aceleração histórica desses meses de 74/75.

Para muitos, o plano de Spínola era tardio. Chegava já tarde de mais. Nisso, muito sossegam a consciência. Para outros, o problema foi só o de que nem se tentou sequer.

O facto é que o plano spinolista não durou. A sua liderança gerava controvérsia e entrava em crise. Muitos dos que o haviam chamado, desconfiavam dele. E ele desconfiava também deles.

Escorraçado pela Revolução a que presidira, escolheu o exílio. A alternativa seria a prisão, naquele estranho 11 de Março. Viria depois o MDLP. Ainda hoje não sei bem o que foi, nem sei se lhe devemos pouco, muito ou nada. A memória que tenho desse tempo é a de que a resistência contra o avanço totalitário foi predominantemente civil, quase exclusivamente civil e popular. O “quase” eram as assembleias e os conclaves militares onde avançavam e recuavam as peças do xadrez do escasso poder organizado que ia sobrando.

Spínola e o MDLP foram muito pouco, quase nada, nesses meses quentes, decisivos. Tivessem os factos ido um pouco mais além, não tivesse o galope louco sido interrompido no 25 de Novembro, tivesse a resistência que pular desgraçadamente de política e popular para militar e armada - e é possível que o MDLP e Spínola ainda tivessem tido um papel. Assim não.

Porém, a imagem deste homem não é a de um derrotado. Não ganhou a Guiné, não ganhou a federação Lusíada, nem ganhou Portugal. Quis proteger Portugal da ameaça totalitária comunista, mas quando esta foi vencida e afastada não estava lá. E, todavia, não é de um derrotado que nos lembramos.

O que mais espontaneamente se evoca é alguém que assinalou uma geração. Não só a dos oficiais e soldados que combateu ou que comandou; mas também a da multidão de civis sobre que pairou num breve tempo profundo. Lembra-se o carisma. O monóculo. O porte gaullista. Os discursos graves dessa segunda Primavera falhada, que marcaram. E o livro, o livro “Portugal e o Futuro” que marcou um destino.

Fui relê-lo agora, querendo recordar um pouco do sonho federalista, que era a única memória que ficara. Mas encontrei mais. Encontrei por exemplo isto: “A construção da unidade europeia foi assim, de facto, como alguém disse, e durante quase um quarto de século, um 'fervoroso debate de mitos e uma construção de abstracções'. Foi-o efectivamente enquanto teve peso a geração dos que viveram a guerra [a II Grande Guerra]; hoje prevalece uma geração menos sensível à herança de ódios que não partilhou. E cremos bem que, no quadro actual, volta a desenhar-se, com justificada esperança, o pensamento de Jean Monnet; e ainda que os 'Estados Unidos da Europa' não tenham efectivamente começado, tudo leva a crer encontrar-se a Europa, de facto, no arranque da 'Confederação Europeia'. 

A atitude actual dos povos europeus orienta-se já franca e decisivamente num sentido que, embora ainda não totalmente liberto dos preconceitos que estão na origem das vicissitudes por que tem passado o processo de unificação europeia, parece não deixar dúvidas quanto à concretização, num futuro não muito distante, dos propósitos até aqui tomados em diversos sectores como mitos e abstracções. É que, na verdade, há cada vez menos gente a aceitar que se sacrifique à intransigência dos nacionalismos exacerbados o futuro das gerações vindouras.”

Escrito há 22 anos, ainda sob a ditadura, 12 anos antes da integração europeia de Portugal e quase 20 anos antes da própria transformação da CEE em União Europeia, é, de facto, extraordinário. Já não me lembrava. Spínola era assim.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 17.Agosto.1996

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