Um dia, o Estado vem abaixo
João Garcia, o chefe da família cigana que anda em bolandas desde terras de Vila Verde, é português há mais tempo do que eu sou. Por mim, vou nos 42. Pelas imagens da televisão, ele aparenta andar pelos 60.
Por sinal, pelas imagens da televisão e dos jornais, ele é também mais antigo português do que a maioria dos que o perseguem e lhe recusam e aos seus familiares direitos fundamentais.
Nesta coisa das perseguições, a perspectiva das pessoas muda radicalmente consoante o lado que lhes cabe. A história é sempre a mesma. Mas tendemos a vê-la e a senti-la de modo oposto consoante a ponta que nos cabe.
Não sei se os caceteiros que agitam Oleiros, Cervães e Cabanelas já foram comunidade minoritária nalgum sítio do mundo, se foram emigrantes ou se têm familiares emigrantes. É provável que sim.
É ainda provável que a mesma ira furibunda que hoje descarregam sobre aquela família cigana se convertesse em igual fúria, mas agora dorida e solidária, se soubessem que, num qualquer lugar da América, porque um português fora acusado ou condenado por violação, o povo se levantava em massa para expulsar todos os portugueses da sua vizinhança, entre os quais eles ou seus familiares, porque se sentenciava: “Os portugueses são violadores.” É provável que explodissem de raiva, mas ao contrário de hoje, se soubessem que, num qualquer lugar de França, porque num só mês se noticiaram três casos de álcool ou droga, pancadaria, arruaça e assalto envolvendo portugueses, o povo se amotinava para expulsar todos os portugueses das redondezas, entre os quais eles ou seus familiares, porque se decretava: “Os portugueses são desordeiros.” E é provável também que fervessem de indignação, mas agora inversa, se soubessem que, num qualquer lugar da Alemanha, porque um português foi acusado de um caso de roubo e homicídio que gerou forte comoção pública, a populaça se levantava contra todo e qualquer português, entre os quais eles ou seus familiares, porque se estava certo: “Os portugueses são gatunos e assassinos.”
Assim como é provável que os mesmos arruaceiros destes dias bramassem aos céus ou recolhessem a penates, se, pelo facto do próprio crime da arruaça, as autoridades ou outras comunidades indignadas caíssem sobre eles sumariamente, sem processo, nem julgamento, com a mesma fúria e a mesma bestialidade que usam sobre a família cigana, visando desforço ou igualmente a expulsão das suas terras.
Estas histórias são assim. Basicamente cegas e cobardes. Uma vergonha!
No meio da escandalosa agitação de Vila Verde, salvam-se basicamente o governador civil e a Igreja bracarense. Vá lá! Nem tudo é mau nesta história e há motivos de regozijo e aplauso, no meio de todo aquele vexame e daquela nódoa popular.
A posição, clara e firme, do arcebispo de Braga e de organismos católicos não tem em si nada de extraordinário, sendo expressão directa da doutrina cristã e dos sentimentos humanistas fundamentais que merecem esse nome - cristão. Mas quer em si mesma, quer pelo seu vigor e oportunidade, a tomada de posição não deixa de merecer devido realce. Sobretudo quando são muitos aqueles que, por vezes, fazem gala em usar a Igreja católica como “bombo da festa” de outras fúrias sempre que tal “se proporciona” - e que agora se calam... Ou quando são também muitos os que estimam referir a Igreja como coberta ou passadeira de outras ambições - e que agora se calam também.
Atento o largo peso do povo cristão em Braga - ou, ao menos, do que usa esse nome e teve esse baptismo -, pode ser, aliás, que a posição e o magistério local da Igreja acabem por ter efeito positivo nos arruaceiros, infundindo-lhes serenidade, bom senso e, sobretudo, básica humanidade. Também alguma vergonha, remorso e arrependimento, se possível. É que a memória e a ideia dos cristãos e da sua Igreja a respeito da dita “justiça” popular não são propriamente as melhores... desde Barrabás.
Destaque especial merece a corajosa, frontal e persistente actuação do governador civil de Braga. Dá gosto ver um representante da república e do Estado democrático assim! Vá lá... não está tudo perdido! Ainda há valores e ainda há convicções por aí, mesmo quando o clima dito “político” poderia aconselhar a lavar as mãos, ao modo de Pilatos.
Os incidentes passam-se num município -Vila Verde. E envolvem ruidosamente algumas freguesias e as suas juntas, “governando” aos baldões de plenários amotinados. Ora, já no próximo ano, vai haver exactamente eleições autárquicas que concentram as atenções. E, por isso, no quadro das “prudências” conformistas e do mais indiferente oportunismo que se foi generalizando tristemente por aí, seria de admitir que o sr. governador, na linha dos costumes do tempo e ao modo de outros, fosse dizendo que “sim, mas também”, entretendo e andando, a pensar nos votos... dos arruaceiros.
Pedro Bacelar Vasconcelos não o fez. Escolheu servir a lei e princípios essenciais. Há motivos de alegria e de esperança. Nem tudo está perdido.
Em pólo oposto, está quase tudo o resto. Dos partidos das oposições, não se ouviu - que eu tenha ouvido - uma palavra, muito menos um só protesto indignado e menos ainda a expressão devida, esclarecida e oportuna de repúdio e de pedagogia. É outra vergonha.
Mas o pior de tudo é a generalidade dos autarcas locais envolvidos, desde o cinismo contorcionista dos dirigentes camarários à surda instigação e à cumplicidade de responsáveis das juntas de freguesia. É a vergonha final. Pobre Vila Verde, tão mal servida! Não há um bocadinho de dignidade? Saberão eles que as leis e as autoridades públicas se fizeram para servir a razão e não a força? Saberão eles, por isso, que as leis e as autoridades públicas se fizeram mais para proteger, na razão, as minorias do que, na mera força, as maiorias? Saberão eles que, se fosse para vivermos na selva directa das meras relações de força e dos seus sopros e ventanias, elas próprios - autoridades - não teriam a menor razão de existir, nem para estar sentadas onde estão?
Se há caso que, a meu ver, deveria determinar a perda de mandato de tais autarcas e, onde houvesse colaboração criminosa ou instigação à arruaça, inclusive a sanção judicial de inelegibilidade temporária, é seguramente este tipo de comportamento cúmplice por parte de autarcas. Se não for assim, é uma pena. Não pode permitir-se o exercício de poder público a quem colabora com tamanha ignomínia; nem pode ficar-se indiferente quando quem está vinculado à lei e ao seu serviço ajuda antes a torpedeá-la em questões tão nucleares e essenciais da convivência colectiva.
O país foi abalado, por sinal, nesta mesma semana, por um outro crime horrendo: um casal e duas crianças, uma família inteira, assassinados em Ourém, em sua casa. O caso provocou larga e compreensível comoção pública. O assassino, que já foi preso e confessou, chama-se Paulo, tem 20 anos, andava de motorizada e consta que queria comprar uma bateria.
Porém, há um “problema”: ele não é cigano, nem preto. O que é que vamos fazer? Perseguir todos os Paulos? Marcar e escorraçar todos os rapazes de 20 anos? Expulsar aqueles que andem de motorizada e toquem bateria?
Ao mesmo tempo, os noticiários vão cheios com os ecos sem fim do tremendo caso dos pedófilos na Bélgica. O que é que vamos fazer? A “caça aos belgas” já começou?
Chega de tanta loucura e insanidade. Mas, para acabar com isto de vez, importa também compreender o que se passa - desde que compreender não seja justificar; e explicar não seja desculpar.
No meio disto tudo que atropela costumes, destrói tolerâncias e apaga noções elementares, anda a droga. Tal como nas milícias de há um ano, o que anda aí é a droga - anda aí a ideia popular difusa a respeito da droga e do seu estado; e andam aí sentimentos de insegurança latentes que, associados à droga e à sua criminalidade dispersa, vão minando tudo como ácido.
O Estado tem que fazer mais e melhor. O Estado tem que reunir e accionar eficazmente todos os seus instrumentos de acção. Não se percebe, por exemplo, por que é que o Ministério Público ainda não foi restituído à tutela do ministro da Justiça - de pouco serve ao Governo dizer que “a droga é o inimigo público nº 1”, se a corporação do Ministério Público, sobre si mesma, entender que são outras as “suas” prioridades e o sistema se for assim entretendo em vénias mútuas ou em atritos de poderes ou de critérios, nomeadamente com a Polícia Judiciária.
Se o Estado não se mobilizar coerente e não melhorar significativamente o seu desempenho neste combate contra a droga, um dia é o Estado que vem abaixo. Na balbúrdia generalizada, de medo em medo, de fúria em fúria, de cegueira em cegueira, de indiferença em indiferença, de pouco nos valerá o que ainda for sobrando na consciência de cada um.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 31.Agosto.1996
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