A imprensa e o contraditório
Um dos assuntos sobre que pendem planos legislativos é a Lei de Imprensa, que aqui uso no sentido de corresponder ao conjunto dos “media” - imprensa, rádio e televisão. E uma das matérias em redor das quais a polémica mais se acende sempre que se mexe na legislação é a do direito de resposta.
O direito de resposta é, na nossa realidade social, um direito curioso. Por um lado, é um direito irrecusável e, em tese, de um modo geral irrecusado (muito embora existam talvez aqueles que gostariam mesmo de o ver eliminado). Mas, por outro lado, é um direito frequentemente sofismado, no sentido de que é corrente ouvir a seu respeito um conjunto de pseudolimites, de contrariedades, de obstáculos, assentes as mais das vezes em argumentos falsos, senão em ideias de poder desmedido e não contraditável.
Nunca compreendi a generalizada antipatia que o exercício do direito de resposta suscita na classe jornalística. E considero mesmo que se, hoje, há por aí uma chuva de processos judiciais - quantas vezes sem adequado fundamento e sem que, para tanto, parecesse impor-se necessidade -, é porque, em Portugal, se foi generalizando a ideia de que “não vale a pena responder”, “eles nunca esclarecem nada de jeito” e “eles só vão lá em tribunal”. “Eles” somos nós: os “media” em geral.
Alguns dos termos do debate ocorrido quando, em 1995, então com maioria PSD, o Parlamento mexeu na regulamentação desta matéria são, aliás, bem eloquentes deste estado de espírito geral. Essa legislação foi, entretanto, revogada; mas o problema subsiste e a ele se voltará seguramente em breve.
Que alguém que se sente visado por uma notícia tenha o direito de a ela responder, esclarecendo o que lhe aprouver, parece irrecusável. E que esse esclarecimento seja merecedor de destaque similar à notícia que lhe deu causa parece também de elementar bom senso, provendo ao adequado equilíbrio de interesses. É assim, desde 1975, na Lei de Imprensa.
Porém, na prática, as coisas complicam-se e... destroem-se. Desde logo, o legislador veio estabelecer alguns limites rígidos, de ordem objectiva e por estes se ficou, não acolhendo quaisquer outros conceitos ou outros modos de satisfazer o essencial em termos de razoabilidade. O que acontece talvez por duas ordens de razões: primeiro, porque a lei sempre teria necessidade de fixar algumas regras objectivas como garantia (exemplo: um limite no número de palavras, a balizar a extensão da resposta); e, segundo, porque a antipatia com que o direito de resposta é frequentemente recebido nos “media” não tem gerado condições de colaboração franca com o legislador no enquadramento do problema, por forma a que, em alternativa e com espírito aberto, mas sério e honesto, se abrissem em paralelo outros modos igualmente jornalísticos de acolher o essencial do que está em causa.
E, neste quadro, de rigidez divorciada, justificada pela ideia de que os “media” não são cartórios, nem os jornalistas tabeliães, a prática que se generalizou é conhecida: o direito de resposta é frequentemente mal recebido na imprensa; na televisão, são-lhe opostas ainda outras “dificuldades” de “carácter técnico”, arguindo-se simplistamente que “televisão é imagem, não é texto”; na rádio, o problema é homólogo; as respostas, quando recebidas, são de um modo geral remetidas para um canto qualquer, em letra pequenina; e, nalguns órgãos, tornou-se também frequente a prática de a estas respostas, publicadas em letra pequenina (às vezes, apenas nas “Cartas ao Director”), acrescentar notas da redacção em que, muitas vezes, se procura destruir o respondente ou a resposta, repondo exactamente aquilo a que procurara responder-se. Assim, alastrou o mal-estar e se ampliou a desconfiança. O que, como quadro, não é saudável. Sobretudo não está certo que seja assim.
“Nunca me engano e raramente tenho dúvidas” - foi uma frase célebre de Cavaco Silva que lhe custou, aliás, vários amargos. Os “media”, de uma forma geral, não se cansaram de o recordar, transformando esse dito num dos emblemas do chamado “cavaquismo”, fazendo gáudio em vários tons a seu respeito e zurzindo-lhe em conformidade. A frase, assim desgarrada, prestava-se a figurar como marco de suficiência e de arrogância; e, como era isso o objecto frequente das críticas, a frase ficou e o seu espírito foi criticado à saciedade.
Ora bem! Tudo bem. Mas o que acontece, bem vistas as coisas, é que os “media” e os jornalistas que reagem com tanta alergia às tentativas de resposta por parte de quem se sentiu atingido, opondo-lhe resistências e dificuldades de toda a ordem, revelam, afinal, um espírito profissional distorcido, semelhante, senão igual, àquele tão criticado “cavaquismo”. A recusa liminar de se ver “desmentido”, assim sentido como “desonra” ou colocação “em xeque”, e as contrariedades que se opõem às respostas ou as vielas esconsas para que se as empurra são ecos daquele mesmo espírito: “Nunca nos enganamos e raramente temos dúvidas”; “Nós é que sabemos”; “Não admitimos resposta, nem contradição.” Não pode ser.
A questão tem, de facto, que ser revista. Alguma luz poderá fazer-se a partir do chamado “princípio do contraditório”, que é regra processual antiquíssima e também matriz profissional de referência da deontologia jornalística. E, ao mesmo tempo, pela “ideia de continuidade”, isto é, que o noticiário de um caso não consiste numa notícia isolada, separadamente sindicável, mas num fluxo de várias notícias sucessivas à medida que a cobertura jornalística se desenrola e os relatos se sucedem e complementam.
A regra deontológica, de facto, de confrontar as fontes ou de ouvir as partes antes de publicar é, desde logo, na raiz, uma ilustração do mesmo princípio. Só que, além de às vezes parecer que esta regra deontológica tem caído anormalmente “em desuso”, há matérias em que o seu atendimento prévio não foi suficiente no entendimento de qualquer visado ou matérias mesmo em que, no caso concreto, não caberia segui-la (por exemplo: a publicação de um documento). Mas, aí, a reposição do contraditório é indispensável, devendo ser legalmente protegido o seu fluxo aberto e desinteressado, na continuidade noticiosa, sem qualquer pele de galinha por se ver “desmentido”, obsessão teimosa em possuir “a última palavra” ou alergia à contradição.
Dizemos frequentemente que os jornais não julgam e que apenas publicam o que se passa. É assim que estará certo. Mas, quando o argumento é sofismado e usado para recusar o próprio exercício cabal do contraditório, aquilo deixa de ser verdade - e, enquistado em posições próprias sobre interesses alheios, dando-se voz a uns e silenciando outros, automaticamente o órgão de informação se transforma em “parajulgador” ou, pior que isso, acusador e julgador ao mesmo tempo, e em completo atropelo de garantias mínimas do visado. O direito de resposta interfere justamente aqui. Mas, se o órgão de informação tem uma prática aberta e descomplexada e se mostra pronto a acolher e publicar as respostas ou esclarecimentos de quem quer que seja, com dignidade e com autonomia, no modo jornalístico próprio, ainda que fora do formalismo notarial do direito de resposta e para além das suas garantias mínimas - é justo que o legislador acolha também e, de resto, proteja e favoreça este modo alternativo.
Em suma: se o legislador souber reenquadrar o problema, mantendo garantias-limite dos interessados, mas aditando e tutelando os conceitos gerais que são afinal os princípios guia desta questão, pode ser que a prática - sobretudo - mude. A tutela da boa-fé e do equilíbrio na cobertura noticiosa, protegendo-se também os vários modos susceptíveis de acolhimento diversificado e maleável das “respostas”, ajustado às melhores circunstâncias de cada caso, fariam o resto. Com o que ganharíamos todos.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 14.Setembro.1996
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