Dois em nenhum

A seguir ao grande êxito - popular e nas elites - da “Macarena” dos Los Del Rio, a música que mais se dança no final deste Verão é a badalada “reconstrução da AD” dos Los Del Pio. Já se viu, leu e ouviu tudo. O mais provável é que não dê em nada e não passe daquilo mesmo - música já vista, de marcação rigorosa, orquestrada por encomenda, a preparar outros lançamentos de épocas a seguir.

A direita de um modo geral tem de si mesma, caracteristicamente, a convicção de ser gémea do poder. Acontece com quase todas as direitas; e de modo ainda mais acentuado nos países que, historicamente, com escassas tradições democráticas, têm da “alternância” uma experiência fresca. Dito de outro modo: tal como as esquerdas gostam mais de se identificar com os “amanhãs que cantam”, as direitas prezam mais de si mesmas a posse dos “hojes, que mandamos”. A direita tem sempre tendência a “sentir-se mal” fora do poder e arredada do governo; e chega mesmo a sentir como uma “injustiça”, profunda injustiça, quase contrária ao direito natural senão à própria natureza das coisas, ver-se afastada do comando e preterida por outros.

Até por isso é fácil compreender a presente animação. Há o impulso disperso de regresso. Existe o desejo de satisfazer, ao menos na aparência, aqueles eleitores que, como programa político, se motivam pelo simples propósito íntimo de que “o que é preciso é correr com estes socialistas, que já não se podem aturar”. E, ao mesmo tempo, o aceno saudoso da velha AD salta como ferramenta simpática, ilusão de óptica, erro de paralaxe, para atender à ansiedade das clientelas, adjacências e demais filiados cujo pensamento principal não vai além de uma obsessão: “boys” por “boys”... antes os nossos!

Neste quadro, o PSD, teoricamente menos à direita, é aquele que aparece como mais vulnerável - porque foi o que contraiu maior dependência do poder. É o que já está a ver-se. Mas designar por AD ou comparar à AD uma simples coincidência de saudades, de fomes, de apetites ou de desejos de desforra (guardados desde a noite de 1 de Outubro) não é só ser muito pouco. É uma mascarada. E é... poucochinho.

Descartando circunstâncias dificilmente repetíveis - como o quase colapso e a crise generalizada do sistema partidário, concorrendo com o início do chamado “eanismo” nos três Governos de iniciativa presidencial no fim dos anos 70 -, a Aliança Democrática era, de facto, sobretudo uma ideia e um projecto para Portugal. Certo que visava a conquista do poder; e combater a “maioria de esquerda” foi um dos motores determinantes. Mas visava-se o poder porque se tinha uma ideia para cumprir; não se tinha somente o poder como única ideia e obsessão. A AD queria o poder para poder fazer -  não queria o poder para poder sentar-se.

Hoje, quando se assiste a esse bailarico evocativo, não se pode deixar de sorrir. A AD arrancou da convergência programática do PPD e do CDS, além do PPM e dos chamados “reformadores”, num amplo projecto reformista para Portugal. A AD foi precedida por essa convergência de fundo, natural mas trabalhosa, através do que começou por chamar­-se justamente “Convergência Democrática”. E não fora a obtenção desse efectivo encontro de fundo no plano das ideias, no quadro da doutrina de intervenção política e ao nível dos projectos de reforma política, económica, social e cultural do país, começando pelo plano mais saliente da Constituição, não teria havido AD coisa nenhuma. Mais tarde, aliás, tão profunda viria a ser a osmose e o encontro de pensamento fundamental entre os dois principais partidos e, nomeadamente, os seus dirigentes mais destacados que, apenas um ano depois, no final de 1980, o tema que estava na ordem do dia era já o da “institucionalização da AD” - destino tragicamente comprometido pela morte de Sá Carneiro e de Amaro da Costa e pela desagregação progressiva que se seguiria.

O país atravessou, por isso, nessa altura, a sensação vibrante de que tinha “dois em um”. E porque isso era verdade, a AD gerou como efeito as inerentes mais-valias, que se prolongaram por muitos anos seguintes e ainda permanecem latentes, vogando por aí.

Ora, hoje, a sensação que se tem face ao que ressalta das conversas - ou, melhor dito, dos recados... - entre PP e PSD é a de que, agora, estamos antes a falar de “dois em nenhum”. Não dará provavelmente em coisa nenhuma. E, ainda que se concluísse por um qualquer acordo formal, não se vê nenhuma ideia coerente que iria servir Portugal, nem se antevê que projecto identificador e mobilizador transportaria para o país.

A confusão quanto a ideias em questões fundamentais é tanta que a imagem que ressalta, em várias matérias essenciais, é até a de que PP e PSD, cada um por seu lado, terão primeiro que “coligar-se” internamente dentro das hostes de cada um e sanar as suas divergências intestinas, antes de procurarem coligar-se um com o outro. E, olhando para o futuro de Portugal e para as ideias apresentadas, não se vê entendimento fácil em questões cruciais para o país, como o da construção europeia. Ou, pior ainda: a ironia e a caricatura seriam tão grandes que, pelo andar da carruagem e com um PSD tão tributário da marcação do PP, o acordo programático da “nova AD” se faria justamente para, em traços marcantes essenciais, ser rigorosamente o oposto do que foi o projecto da Aliança Democrática - quanto à Europa, quanto à descentralização democrática da administração, quanto à regionalização.

Por tudo isso, não é de crer que estes recados cruzados possam ir muito além da coligação na cidade de Lisboa. Com uma curiosidade - a de que, aqui, seria o PP a ser posto “a reboque” de Ferreira do Amaral. E com uma confirmação, afinal - são os projectos de poder que avançam antes da apresentação de qualquer ideia marcante sobre Lisboa e o seu futuro, para além da mera imagem do “dinamismo ferreirista”. Que é como quem diz: à falta de estadistas, avança o “estradista'. É o “marketing”!

O PSD é, no mínimo, um partido curioso. Sempre teve alguma tendência para, no seu seio, confundir pensamento político com análise política, e análise política com mera engenharia eleitoral. Às vezes, aliás, nem se deu mal com isso, assim cunhando o seu chamado “pragmatismo”. Mas, agora, atravessa sérios problemas.

O PSD olha excessivamente para o PP. Ainda está irritado com os 5 por cento que acha que o PP “lhe roubou”. E tem demasiado medo de outros quaisquer 5 por cento que o PP ainda “lhe venha a roubar”. Faz contas: por um lado, receando que a continuação do “assalto” o reduza de 34 por cento para 29 por cento; por outro lado, pensando que, se somasse “aqueles 5 por cento” outra vez, saltaria de imediato de 34 por cento para 39 por cento. Desta forma, o PSD não pensa - pensa sobre o que pensa que “aqueles 5 por cento” pensam.

O mais natural é que nunca venha a saber o que é que “eles” pensam, enquanto se esquece de pensar ele próprio. E por virtude de, valendo ainda 34 por cento, não se reunir sobre si mesmo a ver o que pensa, olhando o país e não os vizinhos, procurando congregar os que têm as mesmas ideias fundamentais ou próximas, em vez dos que pensam como os outros, definir o que quer em vez do que parece, propor o que acredita em vez do que paira, defender o que pensa em vez do que ouve - assim é que o PSD se vai perdendo aos 5 por cento de cada vez.

Perde tempo, desperdiça oportunidades de definição de um novo projecto para o país e vai-se tornando, afinal, cada vez mais tributário do vizinho direito. Com uma agravante: o lençol estreita dos dois lados - o eleitorado foge-lhe para a direita; e o centro, com tanta dança, também vai ficando descoberto. À mercê para já do PS; e também de quem vier depois, quando for a altura... depois de “reorganizada” a direita e conquistada a liderança.

O caso Santana Lopes é sintomático. Estou convicto de que não fez mais do “buhh!...” - para ver. Mas, ainda assim, aquilo que fez publicar é esclarecedor. As ideias que fez transpirar como suas são tão iguais às do discurso dominante do PP (como já acontecera no congresso da Feira) que mal se percebe como avançaria para um “novo partido” em vez de se ligar directamente aos “populares”. Mas, ao mesmo tempo, o movimento que insinuou é de molde a acentuar ainda mais o resvalanço do discurso do PSD para as águas “pêpistas” - na apertada vigilância “laranja” a cada “lote de 5 por cento”, as pressões internas “santanistas” vêm somar-se ao assédio externo “pêpista”.

Santana Lopes, contudo, fez também publicar uma visão interessante - para vir a federar no futuro, agora é preciso desorganizar. Assim como quem diz: agora vamos voltar às ideias; depois, com ideias claras, nos entenderemos.

A questão está em saber se a alternativa em Portugal precisa tanto de uma outra redundância do PP ou se precisa antes de novas ancoragens e fortes referências ao centro, no espaço personalista. É que, nos territórios à direita do PS, além de preocupações quanto ao desenvolvimento, à economia nacional, ao emprego, à segurança, à justiça, à reforma do sistema político, à recentragem internacional do país, são justamente os que acreditam na Europa, os que querem a regionalização e a descentralização, os que não temem o progresso e nele confiam, os que se arrepiam (e não calam) perante a voga de atropelo de direitos essenciais aqueles que se vão sentindo cada vez menos representados no sistema.

Ora, a AD foi isso. Um outro olhar diferente sobre o futuro. Completo, integrado, mobilizador. Foi isso que nela valeu a pena e que, de novo, ecoaria no “Prá frente Portugal”: uma estrada para caminhar com o país; não uma mera escada rolante para o trono.

Em suma: o país até pode não estar muito bem. Até pode ser que em Portugal persista o sentimento de que falta projecto, que o clima seja mais o de termos um conselho de administração do que propriamente governo e que o ambiente ande chocho. Mas, para o PS, isto... “está de ananazes”.

Destaque:
O aceno saudoso da velha AD salta como ferramenta simpática, ilusão de óptica, erro de paralaxe, para atender à ansiedade das clientelas, adjacências e demais filiados cujo pensamento principal não vai além de uma obsessão: “boys” por “boys”... antes os nossos! (...) Mas designar por AD ou comparar à AD uma simples coincidência de saudades, de fomes, de apetites ou de desejos de desforra (guardados desde a noite de 1 de Outubro) não é só ser muito pouco. É uma mascarada. E é... poucochinho.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 7.Setembro.1996

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