O tigre de papel


Nas suas arremetidas contínuas contra a “classe política”, os dirigentes do PP deram o exemplo mais lastimável do que mais apreciam criticar. Raramente se viu um espectáculo em doses tão concentradas de dissimulação total, de patifaria menina, de falsidade grotesca, de pulhice básica, de falta de palavra, de fratricídio anónimo - a “classe política” no seu pior.

Já me aborrece comentar negativamente incidentes do PP. Mas, na verdade... Há uma semana, quando criticava o evidente resvalanço do Partido Popular nos terrenos da completa falta de ética política, estava longe de imaginar que iria brindar-nos com o espalhafato desta semana. Não que um qualquer choque não fosse previsível, a qualquer momento. Mas porque dificilmente podia prever-se coisa tão lamentável.

O mais irónico de tudo é que este episódio de vergonha se segue a um outro jogo de ilusões “pêpista”: a campanha por uma “nova AD”. É de gargalhada!

Nas suas arremetidas contínuas contra a “classe política”, os dirigentes do PP deram o  exemplo mais lastimável do que mais apreciam criticar. Raramente se viu um espectáculo em doses tão concentradas de dissimulação total, de patifaria menina, de falsidade grotesca, de pulhice básica, de falta de palavra, de fratricídio anónimo - a “classe política” no seu pior, a “partidocracia” no esplendor dos tiques pequenos, totalmente submetidas ao movimento cego das “cliques”. E, quando tudo isto se passa em plenas eleições regionais nos Açores e na Madeira, a um ano de eleições autárquicas, nas vésperas do debate da moeda única e a semanas do Orçamento de Estado para 1997, vê­-se bem aonde chegou de facto a “dimensão política” e a “estatura dirigente” de políticos assim. Não há a menor perspectiva de Estado, nem interesse do país, nem tão-pouco qualquer noção de partido político entendido como expressão de um corpo de ideias, alavanca de um programa político e representação de sectores de opinião - importante, importante é só mesmo o tal “grupo do Altis”, misteriosa entidade com que Manuel Monteiro balizou o galarim no último congresso de Coimbra.

Não é de estranhar, por isso, que, por entre os comentários já ouvidos das estruturas distritais dos “populares”, abunde uma crítica comum: “falta de maturidade”. Nenhum crítico do PP conseguiria infligir-lhe tanto dano quanto a sua direcção lhe fez por estes dias. Apareceram a dar do PP uma imagem não só nova, não só jovem, mas verdadeiramente garota. De tal modo que o verdadeiro pensamento subjacente a estas manobras só pode descobrir-se no suplemento infantil do velho “O Século” - o “Pim­ Pam-Pum” - e na consagrada lengalenga de vários jogos da pequenada: “Pim-pam-pum cada bola mata um.”

Foi assim. Primeiro acto: no congresso de Coimbra, em Fevereiro, Manuel Monteiro bate com estrondo na mesa, contra bastidores ignotos; segue-se a “cena do café”, o drama do estilo e o retorno ovacionado. Pim! Segundo acto: depois de alguns empurrões internos, vertidos para a imprensa em doses q.b., Manuel Monteiro, nas jornadas parlamentares em Junho, no Funchal, zurze em público nos seus deputados, chamando-lhes os piores nomes; segue-se a demissão de Paulo Portas da comissão política. Pam! Em Setembro, depois do não avanço de Lobo Xavier para a liderança parlamentar e da candidatura de Portas, abunda uma indefinida mistura agridoce de conspirações privadas/acordos públicos, tudo terminando na vergonha de segunda-feira passada e na demissão do próprio Monteiro à terça. PUM!

Edificante! Com duas outras ironias sintomáticas.

A primeira: em Junho, quando Monteiro se lançou contra os deputados do PP, acusando­-os, entre outros mimos, de “cínicos, cobardes e hipócritas”, toda a gente interpretou que estaria a dirigir-se aos seus críticos e alegados adversários internos; agora, na segunda­-feira, viu-se que estava antes a dirigir-se aos seus apoiantes e a si próprio, pois nunca se vira na Assembleia da República, em eleições internas, num só acto, tanto cinismo, tanta cobardia e tanta hipocrisia quanto naqueles cinzentíssimos votos brancos e no discurso de envelope que os precedeu e rodeou.

Segunda ironia: depois de haver votado, Manuel Monteiro assegurou que votara “na estabilidade”. Viu-se. Nem ele resistiu um dia só aos estilhaços do que semeou.

Bem pode talvez Nuno Abecasis, recorrendo ao exemplo de Mário Soares(!?), lembrar a Paulo Portas que “em política, é preciso engolir sapos”. Mas, ainda assim, entre engolir sapos e engolir o pântano todo vai uma diferença enorme.

Ao velho CDS, no fim dos anos 70, era frequente censurar-se-lhe parecer um “grupo de amigos”. De tanto se o censurar, isso acabou por perder-se em revoadas sucessivas nos anos 80, depois de importadas as piores tradições da direita e das suas velhíssimas rivalidades entre as “famiglia” - foi o tempo das lutas intestinas de desgaste constante entre “freitistas” e “piristas” e, depois, ainda em várias outras declinações: “adrianístas”, “barbosistas”, “basilistas”, etc. Da dita nova geração do PP, afirmada contra os “históricos”, podia esperar-se uma atitude diferente. Já se viu que não. Diferente do velho CDS, o que ficou instituído é mesmo o “grupo de inimigos”.

Quando se analisam as razões por que o CDS “grupo de amigos” atingiu os 16% - e, no seio da AD, cerca de 19% - e por que é que, mais tarde, na década de 80, foi caindo sucessivamente para 13%, e depois para 9%, e depois ainda para 4%, aquele folhetim de fratricídio siciliano não pode ser ignorado. Não há mobilização, nem crédito que resistam em partidos assim.

Para alguns, a “refundação” operada no PP teria sido uma barrela e uma regeneração. E, esperançados, viram no novo crescimento eleitoral de 5 para 15 deputados o sinal e o prémio disso mesmo. Viu-se agora que não será assim. E os factos do grupo parlamentar demonstram que quase 10% do eleitorado já serão demais, que 15 deputados já estarão em excesso num partido assim. Bom, bom mesmo, são os 4%, desde que a tribuna esteja controlada na posse do “grupo do Altis”. É a pior herança do passado com que tanto quiseram romper.

Para se fazer um partido, não basta uma lista de “slogans” ou um cardápio de “manchettes”. É fundamental um corpo de ideias. E, depois, nem estas chegam. Sendo um partido um grupo de pessoas, são essenciais e decisivas outras questões que relevam dos métodos. Ora, aqui, o uso de métodos que é comum reconhecer entre pessoas de bem costuma ser mais aconselhável do que a institucionalização do “vale tudo” e do seu extenso rol de truques patifes. É por alguma razão que os abusos dos campos minados são tidos, no conceito geral, como a mais suja das guerras - com uma agravante: a de que vai matando a longo prazo.

Ninguém consegue entender um ponto essencial. Se Manuel Monteiro e a sua corte “altista” não queriam, de facto, Paulo Portas como líder parlamentar, pela razão simples de que não depositavam nele confiança política, porque é que não o disseram? Porque é que enveredaram por atalhos de vergonha e rasteiras de mediocridade? Aquilo, concordasse-se ou não, toda a gente compreenderia, tendo presente nomeadamente a ainda recente ruptura de Portas - teria uma explicação política. Isto é que de maneira nenhuma.

A recuperação pelo PP de alguma credibilidade e de espaço para crescer ficou largamente comprometida. O corpo de ideias já se tinha afastado radicalmente do centro e do centro-direita para que, recentemente, tanto Portas, como Monteiro procuravam redireccionar o discurso. E, agora, o escândalo da baixeza dos métodos poderá cavar muito mais que meras distâncias - antes viscerais alergias. O centro e o centro-direita abominam estas coisas. E a direita conservadora, por muito que cultive as “famiglias”, sempre se arrepiou com as garotadas.

Com o que, se não vier a rever-se, bem poderá o PP protestar, apoiar o PS ou dizer que já não apoia, pressionar o PSD para “novas ADs”. Ninguém o levará a sério. O PS agradece, o PSD idem e nenhuma alternativa passará por ali. Por mais grosso que falarem e mais alto que berrarem, não passarão do tal “tigre de papel” que deliciava os maoístas de há 20 anos.


José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 28.Setembro.1996

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