Patinar em 4x4


Parece ter-se generalizado a ideia da “normalidade”, entendida pejorativamente no seu sentido mais cinzentão. Seja ou não um sentimento pós-praia, a verdade é que a generalidade dos comentadores - eu incluído - o tem referido nas últimas semanas quanto à situação do país. É tema glosado nos mais diversos tons, do cinzento-claro ao cinzento-escuro.

As críticas e os comentários, aqui, aparecem normalmente - eu incluído - como dirigidos ao Governo e à maioria PS. Mas o mal é geral, como se deslizássemos placidamente a quatro rodas, sem nada de novo que anime, viesse de onde viesse. Pode ser, aliás, uma nova fórmula de sucesso - vamos por partes, partido a partido.

A avaliar pela letra dos discursos de Carlos Carvalhas e de Álvaro Cunhal na Festa do Avante! - o velho “Pontal” dos comunistas -, quase parecíamos de volta ao “Verão quente” dos idos de 1974-75 ou, ao menos, às eras ainda agitadas e de brega mais acesa que sobraram até às greves gerais e às bandeiras negras dos anos 80.

Foi a reafirmação clara do “marxismo-leninismo” por extenso, presumindo-se que de novo com todas as suas consequências ideológicas - ditadura do proletariado, regime de partido único, etc. e tal. Foram outros ecos vários do verbo revolucionário. Foram apelos explícitos à ampliação da luta política fora do quadro da democracia parlamentar - nas ruas, nos locais de trabalho, etc. Um recuo aparente a datas heróicas de maior “pátine”. E, de facto, fosse há 20 e poucos anos, com a “Aliança Povo-MFA” nas pancartas e nos megafones, ou ainda só há dez anos, e tais proclamações do PCP não teriam deixado de logo gerar violentos contrapronunciamentos, comunicados vigorosos exigindo a clarificação das intenções políticas dos comunistas, denúncias inflamadas dos seus propósitos totalitários de assalto ao poder, inquietas reuniões das direcções dos outros partidos, manifestações de repúdio e de apego à defesa da democracia em perigo.

Nada disso! A completa indiferença (certa ou errada) com que tais proclamações foram acolhidas equivalem a outro generalizado e incrédulo bocejo: “Ainda!?” Olhou-se e ouviu-se como adivinhando, ali, simples eco folclórico de fervores novecentistas; encolhendo os ombros, assinalou-se outra “normalidade” do mesmo “nada de novo”; ou cumprimentou-se até, sem receio de qualquer espécie, a “honrada coerência” dos que não mudam; os mais novos não se terão apercebido sequer.

E, na verdade, sem tensões sociais agudas à vista e com as gerações em completa mudança, os tempos também não vão de feição para que de tais gritos ressoasse qualquer “anormalidade” atraente ou, quando menos, interessante. Antes pelo contrário: tudo indica que, já nas próximas autárquicas, é mais o PS (ou até outros) que poderá continuar a crescer e a alargar-se para dentro dos outrora “fortins” eleitorais do PCP, do que o PCP a ver ampliada a sua base social de apoio e a revigorar condições de agitação popular.

Dos lados do Partido Popular, houve algumas novidades. Só que tais novidades são de tal sorte que tornam o PP cada vez mais “normal” e cada vez menos “diferente”, ampliando a sensação e o bocejo.

A não candidatura de Lobo Xavier, seguida do avanço de Paulo Portas para a liderança parlamentar, trouxe alguma animação. Mas muito poucos conseguirão perceber e explicar o que efectivamente se passou e o que efectivamente se passa, por ali. Sendo breve: Paulo Portas a romper publicamente há meses com conferência de imprensa em grande estilo, para acabar a prestar vassalagem a Manuel Monteiro, em peregrinação ao Caldas; Manuel Monteiro que, segundo os jornais, terá passado os dias, dia a dia, a conspirar activamente contra o protolíder parlamentar Paulo Portas, à procura com lanterna e lupa de um qualquer outro líder alternativo, para acabar sempre a dizer publicamente que “não, senhor”, que “o líder do partido não interfere”; e um grupo parlamentar do PP que, pese o valor individual dos seus membros (ou talvez por isso mesmo), aparenta ter quase tantas tendências quantos os quinze deputados que o integram.

Quanto à “cena da AD”, cumpriu-se sem glória, como mero ritual obrigatório, naquele jogo-do-empurra que os dirigentes do PP gostam de fazer com o PSD (e que, pelos vistos, o PSD também aprecia...), disputando mais umas franjinhas à direita nas fronteiras comuns. Houve até um pormenor delicioso, no encerramento do último Conselho Nacional dos “populares”. No fim da reunião, em declaração do púlpito, filmada para as televisões e fingindo-se pesaroso, Manuel Monteiro garantia que, “se o PS vier a vencer as próximas autárquicas, o país ficará a saber que a responsabilidade total é do PSD”, ao mesmo tempo que jurava que a proposta que apresentara “não foi feita para ser rejeitada”. Devia estar a fazer figas atrás das costas. É que a imprensa logo se apressou a informar que, nesse mesmo Conselho Nacional, Manuel Monteiro havia acabado de esclarecer exactamente o contrário, como toda a gente já sabia: isto é, “tinha explicado aos seus conselheiros que tudo não passara de uma táctica” (v. PÚBLICO de 15/9/96).

Para um partido que fizera da “ética” e da “transparência” na política traves-mestras da sua afirmação e da sua diferença, não está mal. É um modo “à la PP” de conjugar o “todos diferentes, todos iguais”. Cada vez mais na mesma.

Quanto ao PSD, já se viu tudo neste primeiro período do reinado de Marcelo Rebelo de Sousa. Depois de acenos promissores no seu discurso inicial no Congresso da Feira, a liderança marcelista foi-se apagando progressivamente sob o peso aparente de outras forças internas no partido. Conseguidos alguns êxitos “à vista” na cerradíssima marcação da agenda, como no caso do “totonegócio” ou no referendo da regionalização, outros factos vieram deslustrá-los no imediato: os processos disciplinares; ou o completo desconcerto que, na Comissão de Revisão Constitucional, se seguiu ao inflamado debate referendário e às suas já desconcertantes piruetas. Em muitas matérias, o discurso próprio de Marcelo parece ter-se esquecido de si. Quase ninguém sabe assegurar o que é que “o professor” pensa e quer - por exemplo, a respeito da sobredita cuja regionalização.

Chegou ao Pontal exausto: não ele, Marcelo, que não pára; mas o partido, de tanto pedalar em bicicleta de ginásio.

Eclipsadas por inteiro algumas novidades do discurso personalista de Marcelo Rebelo de Sousa na Feira - que eram aptas a alguma reconstrução própria, virada para o futuro -, a afirmação mais frequente do PSD, quando não consiste em repentismos, aparenta oscilar entre os meros sentimentos e ânsias comparativas na desforra dos “injustiçados de 1 de Outubro” (como ecoou no debate do Estado da Nação) ou, mais frequentemente até, em meros tributos receosos ao discurso “hard-liner” do Partido Popular, chegando-se cada vez mais à direita por pavor do flanqueamento - afinal, também outro eco de 1 de Outubro.

Marcelo Rebelo de Sousa vai ter, agora, no Congresso Extraordinário de Outubro, na oportunidade que, à última hora, foi aberta na agenda, nova ocasião para reacertar agulhas, repondo um discurso próprio e liderança efectiva para um rumo claro que relance convicções (se as houver), projecto (se o houver) e capacidade de mobilização. Pode ser que sim. Depende dele e dos “laranjas”. Assim como pode ser que, concluída de facto a eleição de Paulo Portas para a liderança parlamentar do PP, apareçam outras coisas novas e não tão “normais”, animando e polarizando o debate. Depende dele; mas também de outros factores “pêpistas” que não estão na sua mão.

Seja como for, enquanto não há nada de novo, a vida vai politicamente fácil para o Governo e para a “nova maioria”, deslizando “formosa e não segura” como no soneto de Camões. Com o PCP “anos 50” e um PSD a resvalar para a direita ao batuque do PP, os socialistas até podem ver facilmente alargado o seu espaço eleitoral em ambas as fronteiras: à esquerda e ao centro. Por isso, as sondagens lhe continuam favoráveis; e aos outros... não.

Os comentadores - eu incluído - podem sentir-se absolutamente maçados. Mas talvez o país não se sinta tão aborrecido assim, por mais cinzentos que vão os ares, tal como o Outono que aí está. O mal dos comentadores - eu incluído - poderá não passar, afinal, de uma exasperante e prosaica “falta de assunto”. E o país - esse - pode ser que não se ressinta de todo. Sobretudo que não se zangue, nem se queixe de uma tal “normalidadezinha” que lhe sabe antes à desejada estabilidade, agradecendo-a e gozando­-a por contrastar tanto com o “caos” total com que fora ameaçado na campanha eleitoral de há um ano.

No fundo, enquanto assim for gerindo a “normalidade” para que todos concorrem, é igualmente normal que o Governo plane e se consolide na mó de cima. Até pode não ser muito brilhante; mas brilhará no fim, quando se fizerem as contas - à míngua de qualquer alternativa autónoma e conseguindo mesmo manter sempre, paradoxalmente, as oposições mais desgastadas que o poder. “Descalça vai para fonte...” - suavemente.




José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 21.Setembro.1996

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