Brindes e novidades
Foi violada uma virgem na Praça da República! Há um ano
atrás, o PS afirmou-se maioritário no país contra a acusada arrogância do
“Estado-laranja”. Tudo ia mudar. Pouco tempo passado, já dá um dos piores
exemplos de confusão entre Estado e partido que alguma vez se viu ou ouviu em
Portugal. O escândalo das tarifas da TAP nos voos para as ilhas é a isso que
soa. O sabor é o de uma “golpada” típica de uma qualquer “república das
bananas”. A memória é a das piores coisas de que o PS foi capaz no passado:
brincar com dinheiros do Estado para fins e interesses exclusivos de grupo.
Que um líder partidário regional anuncie, em plena campanha,
num comício, a quatro dias das eleições, uma medida de uma empresa pública
tendente a favorecê-lo e, segundo proclama, tomada a seu pedido por intercessão
do primeiro-ministro - é, de facto, uma
coisa extraordinária. Ainda por cima, anunciou-a mal, em termos que, se fosse
um anunciante, o tornariam passível de sanção por grosseira “publicidade enganosa”,
gerando enorme confusão sobre o verdadeiro alcance da medida da TAP. Açorianos
e madeirenses, bem como o turismo regional, não ficarão a ganhar grande coisa - mas um “mesito” de descontos, tirado
ao modo do “bacalhau a pataco”, dá um jeitão aos amigalhaços. E isso é que era
importante.
O debate cruzado sobre quem é mais eleitoralista, ou a
invocação das inaugurações, das estradas, etc., não traz grandes
esclarecimentos. Em democracia, os responsáveis estão sujeitos a eleições e é
natural que, nos seus actos e calendários, as tenham presentes. Indo a votos, o
debate sobre alegados “eleitoralismos” nunca acabará. Em nenhuma parte do mundo
e em Portugal também. Mas há diferenças e limites de decência. Quando o
“eleitoralismo” consiste em obra, quando é uma escola, um hospital ou uma
estrada, quando se apressa uma inauguração - o
facto será contestável, mas alguma coisa fica e ficou em benefício colectivo.
Há realização. Agora, quando tudo não passa de um mero truque tirado de repente
da cartola, sem explicação séria e consistindo em mero dispêndio de ocasião - o escândalo é enorme! É ilusão.
O PS não terá resistido às sondagens, sobretudo às dos Açores.
E, cheirando a meta, apressou-se a escorregar na mais grosseira das tentações
de desonestidade política para se favorecer à boca das urnas e dar-se um
empurrãozito numa sonhada vitória em mar laranja. É lastimável. Até pode ser
que perca, por causa da brincadeira e dos seus ecos negativos - ninguém gosta de ser
instrumentalizado e aldrabado desta maneira, mesmo quando parcialmente
beneficiado com a medida. Com o que se dirá: “Deus não dorme!” E, se ganhar,
como muitos previam, a sua vitória ficará manchada da pior forma. Ouvir-se-ão
mais os que, mesmo exagerando, a atribuirão mais a uma “golpada” miserável do
que aos méritos de Carlos César ou a quaisquer anseios de alternância regional.
Não era preciso. E, não sendo preciso, foi demasiado feio. De facto, foi
violada uma virgem na Praça da República!
Deveu-se, aliás, a este deslize dos socialistas que a semana
fechasse em alta para as oposições. Para todas elas. PSD, PP e PCP não
pouparam, e bem, o PS na inevitável refrega parlamentar sobre o escândalo das
ilhas.
Assim apagou o Governo os ecos positivos que tirara da
“interpelação sobre segurança”, onde o PSD evidenciou uma vez mais erros
típicos do seu pré-congresso. O PS, com esse debate parlamentar, poderia ter
abafado boa parte do êxito do congresso que consagrou a liderança de Marcelo.
Com o oportunismo tarifário da TAP, devolveu o brinde e abriu um flanco
lamentável.
No congresso do PSD, com que a semana abrira, por uma vez
não ficou “tudo como dantes”. Marcelo Rebelo de Sousa esteve brilhante em todos
os planos e, como aqui admitia há três semanas, aproveitou a ocasião para
reacertar agulhas, repor um discurso próprio e liderança efectiva e relançar
convicções (que parece haver), projecto (que apareceu) e capacidade de
mobilização (que os “laranjas” nunca enjeitaram, onde sentem líder e caminho).
Ele próprio diria como analista, “Marcelo apareceu em grande
forma”. Só que a interpelação sobre segurança voltou a pôr a nu algumas das
fragilidades, vulnerabilidades ou dificuldades maiores do seu partido.
Primeira, a circunstância de o seu líder não ser deputado. O
problema é complicado, mas não é necessário - antes
contraproducente - que, forçando
a barra, Marcelo tenha de passar a vida em conferências de imprensa para
protagonizar todas as iniciativas a torto e a direito, como na terça-feira
passada. Se assim fizer, delapidará em três tempos o capital que refrescou:
desgasta-se a si próprio; e fragiliza a intervenção parlamentar da sua própria
bancada. Para um líder político, há muitas outras formas de intervir e de
marcar a agenda - mais pelo
pensamento, pela doutrina e pela estratégia do que por intervenção constante,
frenesim tribunício e protagonismo obsessivo. Qualquer líder, aliás, que queira
animar um movimento e não apenas chefiar uma banda tem sempre que repartir
protagonismo. Marcelo está, ademais, condenado a isso. Pode retirar vantagens
múltiplas dessa circunstância. Não tem que o olhar e mostrar como
necessariamente mau.
A outra dificuldade é ainda a persistente “ressaca de 1 de
Outubro”. O PSD tem que compreender que, de facto, perdeu as eleições,
reflectir sobre isso e virar a página. Quando insiste na tecla da desforra,
perde o confronto político: erra nos temas, distorce a óptica, falha o tom,
põe-se a jeito e sai tosquiado. A interpelação sobre política de segurança foi
um excelente exemplo. A ideia começou mal. Não resultou de qualquer reflexão
cuidada sobre a matéria, que é uma questão muito sensível. Nem foi fruto de uma
revisão profunda de teses partidárias sobre a matéria, nomeadamente por parte
dos seus penalistas ou dos especialistas em segurança interna. Antes foi um
simples aproveitamento oportunista dos ecos de quatro crimes violentos,
isolados, que se sucederam numa semana de Verão - irritado ainda com as críticas de que era alvo há um
ano sobre o tema da criminalidade, o PSD achou que o momento era jeitoso para
tirar desforço. Enganou-se; e perdeu. Independentemente das questões pendentes
em matéria de execução de penas ou da histeria galopante pela dureza destas, a
verdade é que a maior parte do sentimento de insegurança das pessoas resulta da
pequena criminalidade, difusa, dispersa, que anda por aí, a maioria dela
associada à droga. É, aliás, por aí que um dia infelizmente poderemos ver-nos a
braços com uma real generalização da criminalidade violenta e, como a polícia
de Nova Iorque poderia explicar, é também atacando aquela e até toda a
infracção - mesmo ligeira - que todos os índices baixam drasticamente e a
própria criminalidade violenta, instalada, se reduz. O debate passou largamente
ao lado disto, voltou-se para os “temas da moda” que não são os problemas reais
e, como parecia óbvio, o PSD passou de julgador a julgado. Além disso, a
bancada laranja cometeu erros grosseiros - cujos
índices estatísticos das associações criminosas não significam agravamento, mas
obviamente, ao contrário, maior eficácia policial na sua descoberta.
Com a única excepção pontual das áreas em que acontecem
recuos na política governamental e em que tais recuos são sentidos
instintivamente como nefastos (como acontece com o desejado rigor e exigência
no sistema de ensino), o contraste com o passado de 1995 raramente favorecerá o
PSD. No fundo, foi por isso mesmo que perdeu as eleições. No taco-a-taco sobre
o passado recente, quase nunca se sairá bem.
Enquanto não virarem a página, enquanto não partirem
claramente para outra, enquanto não definirem sobretudo políticas novas,
enquanto não olharem só para o futuro relendo bem o que hoje se passa - os sociais-democratas perderão mais
do que ganham. O que o congresso do passado fim-de-semana teve de importante
para Marcelo foi mais do que a simples consolidação da sua liderança. Foi sobretudo o
sentimento que passou do aceno de uma alternativa diferente. E é aí, numa
projecção para amanhã e não na memória de ontem, que o PSD joga e disputa o seu
futuro.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 12.Outubro.1996
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