O artigo de Cavaco
Cavaco Silva tem razão quando, no seu artigo da semana passada, identificava “paixão da inexperiência” no debate da regionalização. O seu artigo é, aliás, uma excelente demonstração do diagnóstico. Sendo todos em Portugal bastante inexperientes nessa matéria - velhíssima aspiração -, não é difícil descortinar tanto a paixão como a inexperiência nos estafados argumentos do statu quo centralizado.
O problema em Portugal é, aliás, tão velho quanto a questão em si mesma. Arrasta-se praticamente desde os primórdios da democracia no século XIX e marca ciclicamente todos os debates em prol da descentralização administrativa, ecoando por entre as resistências conservadoras e reaccionárias que, ao longo das décadas, foram votando ao tinteiro os impulsos reformistas de maior visão. Alexandre Herculano chamou-lhe o “absolutismo liberal” e já denunciava: “A centralização, na cópia portuguesa, como hoje existe e como a sofremos, é o fideicomisso legado pelo absolutismo aos governos representativos, mas enriquecido, exagerado.” E o mesmo Herculano, num retrato aplicável aos dias de hoje, era severo com os partidos, quanto às circunstâncias da inércia: “A doutrina de que o excesso de acção administrativa, hoje acumulada, deve derivar em grande parte do centro para a circunferência repugna aos partidos, e irrita-os. Sei disso, e sei porquê. Os partidos, sejam quais forem as suas opiniões ou os seus interesses, ganham sempre com a centralização. Se não lhes dá maior número de probabilidades de vencimento nas lutas do poder, concentra-as num ponto, simplifica-as, e, obtido o poder, a centralização é o grande meio de o conservarem.”
O artigo de Cavaco Silva é um magnífico exemplo, procurando tirar conclusões da sua “experiência de poder”. E o mesmo se passará com o alegado “arrefecimento” do Governo socialista, se viesse desgraçadamente a confirmar-se. Embora fosse mais interessante que o antigo primeiro-ministro, tendo mergulhado de novo no tema, nos explicasse como foi evoluindo o seu pensamento e por que razão em 1991 ainda aparecia a subscrever a aprovação da Lei-Quadro das Regiões Administrativas, a Lei nº 56/91, de 13 de Agosto, numa altura em que já não tinha só “seis ou 12 meses” de caloiro, mas já levava seis anos de governo.
O que é que aconteceu depois para, ganha de novo a maioria absoluta, ter abandonado essa sua lei estruturante no papel? Pode adivinhar-se a resposta noutro excerto do seu artigo: “Não se detecta no discurso político a força das convicções e dos princípios nem qualquer linha de rumo, mas apenas o sabor das conveniências particulares.” Mas, como Cavaco dirige esta acusação a terceiros e não a assume como confissão certeira, ficamos sem saber se entoa também o mea culpa.
Além de factores de intriga, privativos do momento do PSD e desprovidos de significado nacional, o artigo não trouxe grandes novidades. Disse o que já se sabia pelo menos desde 1994 e não acrescenta argumentos ao rol de afirmações desesperançadas, fatalistas e assustadiças que marcam o discurso dos centralizadores de todos os tempos.
Nalguns trechos não é difícil reconhecer-se-lhe razão, embora em campos opostos.
Uma é a dos enormes custos das decisões políticas erradas que sempre recaem pesadamente sobre os povos. Está por fazer, na verdade, o inventário dos custos extensos e variados para o menor desenvolvimento de Portugal que têm decorrido do enorme atraso da regionalização, bem como das resistências que se opõem ou da inércia que sempre adia e retarda tudo o que cheire a descentralização administrativa; e está por fazer também a radiografia dos danos emergentes para o actual quadro do sistema político e administrativo do país por, congelada desde há 20 anos a regionalização do Continente, todo o sistema, desequilibrado, se ter desenvolvido em três regiões “de facto”: os Açores, a Madeira e... a Região Autónoma do Continente.
É evidente também que a criação das regiões administrativas comportará necessariamente alterações no modo de governar, envolvendo uma mais intensa e estreita composição de interesses do todo nacional, nomeadamente em todas as decisões que mais de perto contendam com o planeamento e o ordenamento globais e com a equilibrada repartição dos recursos disponíveis.
Isso, porém, não significa qualquer “ingovernabilidade”. Corresponde, antes pelo contrário, a melhor governo. Compreende-se que quem tenha do poder uma ideia autoritária ou uma memória iluminada lhe custe entender que seja possível governar assim. Mas o país - se o deixarem - nunca terá dificuldade em encontrar quem o faça, quem acredite nesse modo e quem o saiba desempenhar, em várias correntes políticas, PSD incluído.
Em rigor, em democracia representativa, cumpriria sempre governar assim, quando o sistema real não vicia e não destrói os princípios. Essa composição de interesses não tem nada de obsceno e constitui antes boa parte do debate político nacional. Ela, de resto, já se faz hoje - embora em grau mínimo - pela Assembleia da República, dentro de cada partido que tem deputados por vários círculos. E a mesma composição parlamentar se faria ainda melhor não fora o nosso já pervertido sistema eleitoral, que foi produzindo e reproduzindo a progressiva funcionalização dos deputados, largamente à mercê dos directórios centrais, tornando-os mais escolhidos a dedo do que eleitos a voto e afectando seriamente a sua efectiva representatividade.
Já não consegue aceitar-se que, embalado nesta linha e acenando com o espectro de uma agudíssima “conflitualidade”, um ex-primeiro-ministro experiente e respeitado toque a tecla da “quebra da coesão nacional”, assim como quem adivinha bascos ou catalães à esquina de cada região. Para quem conhece Portugal e os portugueses e alguma vez reflectiu detidamente sobre estas matérias, o uso de argumento tão irreal só pode levar-se à conta de demagogia desinformadora ou de falta de seriedade intelectual.
Não se conhece em todo o mundo um único caso em que reformas administrativas descentralizadoras tenham gerado “separatismos” que não existissem. Quando há factores étnicos, linguísticos, históricos, religiosos, geográficos ou outros que informem fracções ou conflitos agudos e persistentes, não há sistema político que consiga iludi-lo. Aí, muitas vezes, o desenho descentralizado do sistema político - ou tão-só mesmo do sistema administrativo - consegue amortecer as tensões, atenuar a pressão separatista e governar a unidade do conjunto. É o que, em matizes diferentes, acontece exactamente na vizinha Espanha, ou na Grã-Bretanha com a Irlanda do Norte; ou o que a Indonésia gostaria de fazer com a “província” de Timor ou Angola com Cabinda. Mas o contrário nunca aconteceu.
A realidade espanhola - que é efectivamente plurinacional desde os Reis Católicos - é completamente diferente da portuguesa. Mas, ainda assim, convinha olhá-la exactamente como é, ou seja, rigorosamente ao contrário do que a ouvimos excomungar nas bocas autoritárias dos centralistas. À saída do franquismo, que foi construído na Guerra Civil, não tivesse a Espanha democrática enveredado por um modelo constitucional descentralizado como o que tem hoje e porventura teria explodido de novo como a Jugoslávia. A descentralização não lhe agravou nenhum problema. O problema é que existe mesmo e é justamente a descentralização que ajuda a governá-lo.
Em Portugal, nem é assim. O que só torna mais chocante ver estadistas sugerir o paralelo, para inverter os termos da equação. Para nós, portugueses, trata-se de uma descentralização administrativa, essencial nos dois conhecidos planos: aproximar a administração dos administrados; impulsionar, enquadrar e dinamizar o desenvolvimento regional. Aí se guardam porventura das últimas energias, esquecidas ou reprimidas, de desenvolvimento equilibrado e mais acelerado do país, o que é tão indispensável a vencermos o atraso que nos afasta doutros povos europeus. Por isso, permanece como uma reforma estratégica. Hoje, como no tempo de Herculano.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 5.Outubro.1996
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