O calcanhar de Bill


No mesmo final de semana em que o mundo ficou mais acordado para Timor, pelo Prémio Nobel da Paz atribuído a D. Ximenes Belo e a Ramos-Horta, um novo escândalo rebentou nas presidenciais norte-americanas: Bill Clinton recebeu para a sua campanha de reeleição uma ajuda de $450.000 dólares - quase 70.000 contos - de um indonésio desconhecido e a imprensa dos EUA, que não é meiga nestas coisas, não mais parou de aprofundar ligações suspeitas e de questionar sobre se os indonésios teriam “comprado” este segmento da política externa norte-americana.

O curioso sr. Arief Wiriadinata, que fez os donativos enquanto ainda residia muito convenientemente no estado da Virgínia, é genro dos Riady, uma família bem inserida no regime de Suharto e que controla um poderoso grupo económico indonésio: o grupo Lippo. O que logo levou, com humor, os rivais republicanos a comentarem que este era o novo conceito democrata de “lipo-sucção”.

Na recta final da campanha para as eleições de 5 de Novembro, isto tornou-se um dos “calcanhares de Aquiles” de Bill Clinton. O caso tem contornos obscuros. A imprensa - mais agressiva e certeira do que os próprios republicanos - pergunta abertamente tudo sobre esta suspeitosíssima intromissão de interesses estrangeiros no financiamento da campanha eleitoral; pergunta se isto tem a ver com os encontros entre Clinton e Suharto, em Jacarta, em 1994, e já também na Casa Branca; quer saber mais sobre o “velho amigo do Arkansas” de Bill Clinton, o indonésio James Riady, e das suas ligações ao regime de Suharto.

Investiga também o sr. John Huang, que, depois de ter estado no Departamento de Comércio (justamente em 1994 quando Clinton visitou oficialmente a Indonésia) e depois de ter sido um qualificado empregado dos mesmo Riady, é agora no Comité Nacional do Partido Democrático um poderoso e influente angariador de fundos para a campanha; e questiona abertamente sobre se isto tem algo a ver com a contínua ambiguidade norte­ americana em relação a Timor-Leste, sobre a amizade com a ditadura indonésia, sobre as controversas vendas dos F-16, sobre cumplicidades ignoradas. Clinton nega. Mas está claramente em apuros. O fogo em que o caso se desenvolve ainda só agora começou e não dá mostras de ir ficar por aqui.

Portugal, aliado dos Estados Unidos, também tem que perguntar directamente. Tem o direito e o dever de o fazer. Pese a delicadeza de se tratar de um assunto interno, com todo o melindre de uma campanha eleitoral em curso, a diplomacia portuguesa também tem que inquirir, neste caso. Com prudência e serenidade; mas com firmeza e vigor.

A simples ideia de as posições norte-americanas sobre a Indonésia e Timor-Leste poderem estar a ser condicionadas por compadrios do pior recorte é intolerável. E sendo normalmente reconhecidas as responsabilidades norte-americanas, desde 1975, no apadrinhamento e na protecção às acções do regime de Suharto no quadro do Pacífico, estas revelações vindas da “despensa”, num momento em que o desgaste, interno e internacional, da ditadura indonésia já é muito acentuado, não podem deixar de ser cabalmente esclarecidas, não só aos olhos dos eleitores americanos, mas - como nos interessa mais - aos olhos de portugueses e timorenses, isto é, perante o Estado português, que a ambos representa.

Nem a revelação, entretanto já feita pelos democratas, de que Dole também recebera uns modestos mil dólares da srª. Aileen Riady nas primárias de 1988 altera os dados da questão. Para o debate eleitoral norte-americano isso pode fazer alguma diferença. Para Portugal e Timor, só pode ampliar as razões e a legitimidade da preocupação.

O Prémio Nobel da Paz e o financiamento obscuro de Bill Clinton ilustram de forma sublime a tensão em que habitualmente se desenvolvem os temas da política mundial: entre a moral e os interesses; entre o direito e o vil metal; entre a razão e o cinismo; entre as causas e os compadrios mais sórdidos; entre os ideais e uma “Realpolitik” miserável. Infelizmente, o mais comum é observar o predomínio do lado mau - isto é, passem todos os desmentidos a respeito da amarra política dos dinheiros indonésios nos cofres da campanha, o que se adivinha estar por detrás do “Lippo-financiamento”.

É tão comum vermos a política mundial entregue e rendida ao mero cinismo circunstancial que o Prémio Nobel da Paz constituiu uma surpresa enorme e agradável. O eco imediato que teve em todo o mundo - e, nomeadamente, na opinião pública norte­ americana - não deixa de novo dúvidas: os povos do que gostam é da moral e da razão, das causas e dos ideais, por muito que os seus Estados assim não actuem.

Frequentemente, as coisas só mudam quando, posto a nu o inexplicável e o inexplicado, os dirigentes dos Estados se sentem gravemente atrapalhados diante dos seus próprios povos. E, aí, mudam.

É em momentos destes que a balança se desequilibra para o lado justo. É o momento em que os Estados e os poderes se envergonham. É o momento em que novos passos de direito podem ser afirmados e conseguidos. É uma nova oportunidade mais forte.

Este Nobel da Paz foi um acto de justiça elementar. É um alimento a um pequeno David, na luta desigual que tem travado contra poderosos Golias: o “Golias militar” da ocupação indonésia; o “Golias diplomático” das cumplicidades norte-americanas (e também, regionalmente, da Austrália); o “Golias político” da indiferença e do diletantismo internacionais; e o “Golias mediático” do silêncio de tantos anos. Quanto aos “media” de quase todo o mundo, a realidade já se havia alterado radicalmente desde 1991, com o preço do massacre de Santa Cruz. O Nobel da Paz fez o resto e abalou fortemente, ao mesmo tempo, diplomatas e políticos. É aqui que importa insistir - frequentemente “onde mais lhes doa” - para vencer o último.

O Nobel, excepção poderosa num oceano habitual de cinismo, só será uma oportunidade se for aproveitada e prosseguida. Se nos ficarmos pela ronda dos aplausos, pouca diferença fará. Portugal, cuja insistência contínua ao lado da persistente identidade de Timor viu também implicitamente reconhecidos os seus esforços, tem que dar novos passos mais incisivos em frente, no seu trabalho diplomático.

É a altura adequada de colocar com vigor a questão de Timor-Leste no núcleo fundamental da escolha do próximo secretário-geral das Nações Unidas, jogando a favor desse movimento o estatuto de Direito Internacional de Timor-Leste e as responsabilidades que daí resultam nos termos da Carta da ONU. Não só para continuar a afastar Ali Alatas do caminho, mas para escolher quem seja e marcar a sua futura agenda - revertendo, por isso, contra o ministro indonésio o atrevimento de haver avançado.

E é a altura também de repor, na agenda nacional, ideias antigas e estratégicas como a da designação de um alto-comissário para Timor. Não é precisa sequer a revisão constitucional, apesar da proposta pendente do PP. Basta uma reforma legislativa certeira que ajuste, afinal, o direito interno português à realidade do estatuto internacional de Timor, no quadro de transição até à sua autodeterminação - um alto-comissário “no exílio”, que, se for imaginativo e dinâmico, com tenacidade e capacidade políticas e diplomáticas, além de tudo o mais que fará ao abrigo dos arts. 73.º e 74.º da Carta das Nações Unidas, seria um símbolo vivo permanente da agressão indonésia, um espinho nas embaraçadas chancelarias dos nossos “aliados”, um lembrete permanente sobre a secretária do secretário-geral da ONU, um mensageiro do futuro e um eco permanente devido aos esforços sofridos dos timorenses.



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 19.Outubro.1996

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