RTQuê?

Vai por aí uma razoável confusão sobre qual o modelo que a RTP irá seguir. Sabe-se já desenvolvidamente o que foi feito, mal feito; mas não se sabe como irá ser ao certo.

A descrita situação de “falência técnica” da RTP era o desastre anunciado face à política que foi seguida. Muitos anteciparam o que se iria passar - e passou. Com a entrada de dois concorrentes num mercado anteriormente monopolizado, as receitas comerciais da RTP sempre iriam baixar. Cumpria ao Governo vigiar e às administrações da televisão estatal assegurar que os custos eram mantidos sob controlo e até reduzidos correspondentemente, reajustando a política de produção, de compras e de grelha, por forma a preservar os equilíbrios fundamentais da empresa. Fez-se exactamente o contrário, em demonstração contínua de se ressentir “os privados” como uma “agressão”. O resultado está à vista: em cerca de quatro anos, à moda de Espanha, cujo exemplo quisemos seguir logo pela abolição da taxa, a inevitável redução das receitas, de um lado, e o irresponsável e sôfrego disparo dos custos, do outro, conduziram a RTP de empresa equilibrada, e até próspera, a um quadro absolutamente desastroso. Pior: a RTP entrou em completa crise de identidade e a mais chocante das concorrências desleais está a levar todo o sector televisivo à ruína. Pior ainda: o efeito de contágio projecta-se, por via da publicidade, sobre as rádios e sobre a imprensa, que passaram a enfrentar uma crise generalizada. Numa palavra: se não se mudar de vida quanto à RTP, esta não será só coveira de si mesma, mas também de toda a televisão em Portugal; e poderá cavar ainda a ruína progressiva de toda a comunicação social livre no nosso país.

O Governo tem razão em inventariar os antecedentes e as responsabilidades herdadas. Mas não terá razão se continuar a tardar desmedidamente em rever de facto a política que encontrou, ou não vier a decidir melhor do que anteriormente. Pelo simples decurso do tempo em cima de um quadro completamente viciado e distorcido, a situação em si está pior do que há um ano. Se não se atalhar depressa e bem, acabarão por caber a este Governo as mesmas culpas que denuncia, senão piores.

Se, após um ano inteiro de inventário de diagnóstico e de enumeração de alternativas, se seguir um outro ano de “debate público” e, depois, mais outros meses intermináveis de “aprofundamento e maturação das sugestões positivas” e, a seguir, nova ronda de “consensualização de metas e propósitos”, haverá muitos que, só por isso, irão caindo pelo caminho. Há doentes que morrem enquanto os médicos discutem.

Além disso, convinha sobretudo que se decidisse bem, retirando com realismo e alguma humildade as lições do passado, sendo rigoroso, honesto e justo na relação com o mercado e garantindo-se antecipadamente, com rigor e seriedade, as efectivas (e não as sonhadas...) disponibilidades financeiras do Estado português. Ora, aqui, há motivos para grandes preocupações. Parece haver alguns, como há dias António Pedro de Vasconcelos aqui no PÚBLICO, que ainda não reconhecem todas as linhas por que este desastre se coseu. Ouve-se insistente recurso a argumentos falaciosos, como a respeito da taxa ou das sempre manipuladas “percentagens do PIB”. Vê-se rejeitar, sem mais e sempre à luz do fracassado modelo actual, algumas das propostas mais imaginativas da Comissão de Reflexão. E, nos termos em que o conselho de opinião o votou e o Governo o fez circular, o projecto de novo contrato de concessão vem “deitar gasolina no incêndio” e, tal como está escrito, tudo passará ainda de desastre a calamidade.

Basta olhar os números e os factos, para ver que o modelo falhou por completo e que está seriamente comprometido. O modelo era assim: a TV estatal tem dois canais para que um, dirigindo-se à generalidade do público, se bata no mercado e lidere, aí ganhando o lucro suficiente quer para se pagar a si próprio, quer para pagar ainda tudo o resto ou, ao menos, limitar os encargos do financiamento estatal. Nada disto aconteceu. Antes a lógica de voragem e de sorvedouro de dinheiros públicos, a par com uma abrasiva concorrência desleal no mercado, se afirmou tão intensa que, de fuga em frente em fuga em frente, vai ser mais dispendioso manter este quadro do que, pura e simplesmente, pagar por inteiro um ou mesmo os dois canais, desde que, pondo os pés na terra, sem ambições e sonhos milionários.

O busílis da questão está na clarificação das regras de relacionamento com o mercado e, desejavelmente, numa separação das águas.

Basicamente, há dois tipos de disciplina em abstracto: uma disciplina de tipo orçamental, pública, em que se arbitra determinado nível de recursos certos e o agente há-de comportar-se dentro desses limites; e outra disciplina típica dos mercados, privada, em que o agente projecta, arrisca e se vai ajustando sucessivamente à dimensão que o mercado lhe reconhece e consente. Como a experiência com a RTP uma vez mais demonstra, a tentativa de mistura destas duas lógicas é, em termos económicos e financeiros, puro TNT. Desde logo, porque enfraquece, senão destrói, qualquer tipo de disciplina. Por um lado, o estímulo do agente a que vá buscar parte significativa dos seus recursos ao mercado (que é incerto) legitima que se rebente com a disciplina orçamental – é a dinâmica acelerativa do “Somos o primeiro!”. Por outro lado, também jamais se confina à dimensão que o mercado lhe recorta, pois tem sempre, afinal, “as costas quentes” pelo lado do Orçamento de Estado que tudo cobre.

Ao mesmo tempo, no plano dos conteúdos, é a perversão completa, sempre com o álibi do dito “mercado”, traindo-se no quotidiano qualquer missão substantiva de serviço público, aderindo-se estrondosamente à cultura do “fast food” audiovisual e conduzindo o Estado e os contribuintes a terem de pagar, eles, em patamares crescentes de enlouquecer, o mesmo “lixo” de que se acusa “os privados”. E, enfim, em termos económicos globais, a exportação da crise é interminável por via da concorrência desleal: exportação para as televisões em geral, cuja cultura de custos e processo de formação de preços, por força da permanente oxigenação artificial por dinheiros públicos sem limite, jamais se reajustam ao quadro efectivo do mercado; e exportação para toda a comunicação social, encurralada num mercado completamente ensandecido, voraz e distorcido, “à beira de um ataque de nervos”.

Esta mistura explosiva está mantida por inteiro - e é mesmo agravada - na letra do projecto de novo contrato de concessão que anda por aí desde o Verão. Do seu teor, ressaltam sobretudo dois princípios-guia: o “princípio da bênção”, segundo o qual tudo o que a RTP faz é dito de “serviço público”; e o “princípio do défice”, segundo o qual, ao mesmo tempo que se mantém a RTP no mercado e sem quaisquer limites, todo o défice anual (que já vai em mais de duas dezenas de milhões... ) será suportado pelo Estado.

Ora, é esta lógica que exactamente não funcionou, nem funcionará. A mistura indiscriminada da dinâmica de perfil público, orçamental, e da dinâmica de mercado continuará a tudo corromper: a corromper o próprio serviço público; e a corromper em extremo o mercado, levando-o mesmo a fazer o que, em condições normais e saudáveis, não faria, ou não faria tanto. Além disso, a concorrência desleal acentua-se “a dois carrinhos”: pelo lado dos custos de produção e programação, pois a RTP não conhecerá quaisquer limites quando concorre, o que aumenta para todos os operadores a pressão “sobre a alta” dos custos - o Estado paga a diferença, mas só para a RTP; e pelo lado das receitas publicitárias, pois, em tempos de “dumping”, a RTP não sofrerá quaisquer consequências, o que aumenta para todos os agentes a pressão “sobre a baixa” das receitas - o Estado paga a diferença, mas só para a RTP. É uma dinâmica predadora: numa mão, assassina; com a outra, suicidária.

Ninguém responsável quer o fim ou sequer o mal da RTP. O Estado, aliás, é quem mais mal lhe tem feito, como à televisão em geral e, progressivamente, a toda a comunicação social, que sofre por tabela e arrasto. Mas o Estado, que tem sido o faltoso, também não pode continuar a, ao mesmo tempo que abre a televisão ao sector privado, ir alimentando uma persistente “conspiração” contra este.

Precisa-se urgentemente de um acordo de concertação estratégica, sério e rigoroso, que respeite e envolva os agentes privados e que, se não for para sair de vez, ao menos balize e limite os contactos da RTP com o mercado, como sucede, aliás, em diversos países europeus. Importa interromper de vez esta lógica perversa em que Estado e RTP, mancomunados, sopram e mantêm tornados demolidores sobre o mercado e em que a RTP acaba por apanhar também uma pneumonia ela própria pelas correntes de ar que igualmente recebe de volta.

Além de que não há ministros, nem secretários de Estado “da RTP”; antes da comunicação social. E é, na verdade, para todo o sector que tem que se olhar urgentemente.



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 26.Outubro.1996

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