O mistério público

Os ecos vão compridos e sonoros. É natural. Sejamos claros. O livro de Proença de Carvalho sobre o “Processo Leonor Beleza” e o seu lançamento na semana passada - onde também fui, entre centenas de outros, movido por vários imperativos de consciência - são actos tão indesejáveis quanto indispensáveis, tão anormais quanto devidos, tão atípicos quanto corajosos e honrados. E é nesse intervalo entre a indesejabilidade do acto e a sua indispensabilidade que tudo exactamente se joga e se explica. O acto não é desejável: na concepção de qualquer sistema de justiça, não é desejável que tais coisas tenham que acontecer. Mas o acto era, fora de qualquer dúvida, absolutamente indispensável.

Um dos princípios-guia mais nobres, nestas coisas do direito, da justiça e do processo, é o princípio da “igualdade das armas”. E, perante os sucessivos e reiterados atropelos de direitos elementares e da posição dos arguidos, com reiterada violação do “segredo de justiça”, distorcendo-se, enxovalhando-se e “condenando-se” antecipadamente, instilando-se ideias falsas, informando enviesadamente a opinião pública, alimentando a irracionalidade de emoções primárias e pressionando-se ou sugerindo pressionar-se o tribunal, era indispensável equilibrar, embora já só limitadamente, este “jogo” perverso. Dando a cara. Com serenidade, objectividade e clareza.

Que se tenha tornado indispensável um acto indesejável diz quase tudo. Que esta indispensabilidade, evidente para qualquer consciência medianamente informada, gerasse a adesão rápida, espontânea e extraordinária que esta gerou diz tudo também quanto ao grau de consciência (e de repúdio) que existe hoje a respeito do estado a que se chegou.

Sejamos claros, outra vez. Nada disto teria acontecido não fora a reiterada e prolongada violação do “segredo de justiça”. Não é, aliás, caso virgem. Mas, indo às questões realmente substantivas e relevantes, a adesão àquele indesejável acto indispensável põe a claro quanto o sentimento de justiça instintivo de tanto cidadão comum se foi sentindo ferido face a uma acusação inverosímil, claramente desproporcionada e excessiva; e, para muitas e boas consciências jurídicas do país, bem formadas e informadas, também o repúdio da leviandade (cuja ideia ficou) quanto à possibilidade de a acusação ter saltado para os caminhos ínvios e resvaladiços do “dolo eventual”, apenas porque, entretanto, prescrevera a possibilidade de acusar por “negligência” - a qual, com os elementos que conheço, também seria descabida.

Adiante. No “caso Leonor Beleza” não está em causa toda a política de justiça. Mas, na forma como muitos do Ministério Público se manifestaram, em inaceitáveis intolerância e arrogância corporativas, é quase toda a política da justiça e o seu quadro que ficam em questão. O modo das reacções mais sonoras do Ministério Público diz quase tudo do problema real e vastíssimo. Desde a entrevista do procurador-geral da República ao “Diário de Notícias” às movimentações várias, multifacetadas e intensas que a comunicação social foi relatando, passando pelas “ameaças” ou sugestões de greve ou de demissão colectiva, tudo pôs a nu que, neste barulho todo, não é a justiça que está minimamente em questão. Mas tão-só uma questão de poder. O que é muito mau.

Péssimo, em boa verdade.

O Ministério Público não é um órgão de poder. Haverá quem gostasse que fosse e quem procure que seja. Mas não é. Não deve ser, não pode ser, não pode deixar-se que seja ou que venha a ser. E, se há quem queira consolidá-lo nesse caminho, haverá que lhe barrar o caminho, que o interromper rapidamente e que repor as coisas na devida ordem democrática. À semelhança, aliás, da generalidade dos países democráticos. Donde não nos deveríamos ter afastado, não fora o “gramscianismo” retardatário que no estatuto medrou.

Certo que é fundamental defender a magistratura. A independência da magistratura e dos tribunais é dos bens mais preciosos numa sociedade moderna e num Estado de Direito autêntico. Mas essa magistratura independente, cuja independência deve ser afirmada e defendida a todo o custo, é a magistratura judicial, não é a magistratura do Ministério Público.

O Ministério Público não é os tribunais. A magistratura do Ministério Público não tem nada a ver com a magistratura judicial. Esta é soberana. Aquela não é. A magistratura judicial é independente e deve ser isenta e imparcial. O Ministério Público não é imparcial, nem tem que o ser. Tem que o não ser. O Ministério Público é parte, é uma parte nos processos em que intervém e, por isso mesmo, é parcial. Tem que ser parcial e nisso não há mal algum. O Ministério Público representa o Estado como parte nos processos - o Estado que acusa ou defende; não o Estado que julga. E, uma vez que é parte e parte em nome do Estado democrático, por isso mesmo é que cada um de nós, todos nós, temos todo o direito de querer saber por que acusa ou se abstém de acusar, como acusa ou como não acusa, que interpretação faz das leis, quem persegue e quem não persegue, o que faz e o que não faz. De saber, de comentar, de criticar, de aplaudir ou de reprovar.

Onde há mal é que procure vestir-se de “imparcialidade” a sua parcialidade necessária. E onde há erro é em confundir o facto de se tomar parte, de se ser parcial, com qualquer falta de probidade intelectual, falta de seriedade técnico-jurídica ou falta de rigor e objectividade. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. O Ministério Público não é, nem tem que ser independente. Antes o Ministério Público é justamente uma magistratura hierárquica, dependente e subordinada. Esse é que é um dos riscos de a ver evoluir como parece. Uma vez que é um corpo organizado, uma vez que é uma corporação hierarquizada, enorme será o dano para a justiça se se deixar o Ministério Público falar e agir como se a justiça fosse ou a esgotasse, representasse ou subordinasse.

No coro ruidoso de reacções que por aí se ouviu, foi chocante ver altos responsáveis do Ministério Público falar em nome dos magistrados, de todos os magistrados. Como se o pudessem fazer. Qualquer dia, se o caminho não é atalhado, ainda assistiremos a factos ou a ideias como se os magistrados do Ministério Público “mandassem” ou quisessem “mandar” nos tribunais e nos seus juízes - como às vezes as circunstâncias já sugerem, nomeadamente nalguns processos em instrução criminal, até por virtude da promiscuidade das instalações.

E aí é que a justiça e a sua independência correm risco, gravíssimo e seriíssimo risco.

A independência da justiça não corre o menor risco quando se critica -  e muito justamente, ainda por cima - a actuação do Ministério Público ou de magistrados seus. O Ministério Público está sujeito naturalmente ao enfrentamento das outras partes, ou o próprio processo não seria leal, nem “fair”, no dizer anglo-saxónico. Mas não é só isso: está sujeito também à crítica geral e específica, ao debate e à fiscalização democrática.

A independência da justiça só está em perigo - e está mesmo em perigo - quando se confundem as duas magistraturas; quando se permite que uma fale por ambas, que aquela que é dependente reclame a “representação” da que é independente; quando se favorece que uma, a dependente, queira preponderar ou que goze de especial influência sobre a outra, a magistratura judicial, minando o seu crédito e procurando afectar a sua independência.

No mais, vão-se percebendo critérios que andam por aí. O procurador-geral da República sentiu-se ofendido com as declarações de Freitas do Amaral por causa do “segredo de justiça”; e ameaçou processá-lo como caluniador. Ora, na mesma linha, Leonor Beleza e os outros “arguidos” não poderão também processar o Ministério Público por calúnia, face à acusação tão grosseira que vem feita, em circunstâncias que inspiraram epítetos, tentativas de agressão e manifestações de “assassina” à porta do tribunal? O Ministério Público, não tivessem sido os caminhos ínvios por onde a acusação se meteu, não teria até o dever oficioso de defender os actuais “arguidos” contra uma denúncia caluniosa com aquele recorte e alcance? Se alguém quisesse processar o ministro António Vitorino ou o primeiro-ministro por “dolo eventual” pela morte dos soldados na Bósnia, como responderia o Ministério Público? E, se se processasse o ministro João Cravinho por “dolo eventual” na morte dos dois operários que já perderam a vida nas obras de remodelação da ponte sobre o Tejo?

Há mais. Por exemplo, o “caso Camarate”, velho de 16 anos. Ali, o Ministério Público vai claramente além dos factos. Nestes, fica aquém deles. Teima em ficar aquém deles, desde há anos. Ao “DN”, o procurador-geral da República não hesitou mesmo em afirmar agora que, “em Camarate, fala-se em atentado, mas as provas apontam no sentido de que foi um acidente”. A Assembleia da República, única sede onde as investigações avançaram algo ao longo dos anos, achou e estruturou matéria probatória apontando para crime. Para o Ministério Público, não é assim. O seu mais alto responsável proclama-o até publicamente, com a instrução contraditória plenamente a decorrer. Extraordinário!

Não será isto, além de falta de vista, uma outra pressão grosseira e ilegítima sobre o tribunal onde o processo decorre, em fase de instrução? O que é isto? Já se viu tudo. Pesem alguns magistrados de grande qualidade e juristas excelentes que o integram, o Ministério Público vai-se tornando um mistério, um mistério perigoso para a justiça. Maus caminhos, estatuto excêntrico, ideia errada de si.



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 16.Novembro.1996

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