De novo as regiões
Depois de uma temporada de pousio, voltou o tema da regionalização. Desta feita, com aparência de seguir por diante, embora envolta ainda em espessas nuvens tácticas. Particularmente feliz esteve desta feita o Presidente da República na sua visita ao Porto, onde, dias mais tarde, a Convenção Distrital dos socialistas voltaria a lançar o tema para o centro da agenda política. Sampaio, sem abundar em pormenores, foi particularmente claro ao registar certeiro que o seu pensamento nesta matéria é tão-só o da Constituição, que jurou. Assim marcou presidir ao debate e apontou o seu sentido - que as regiões administrativas sejam, enfim, criadas-, mas, sendo Presidente da República e “de todos os portugueses”, sem deixar comprometer a sua própria posição sobre várias outras questões que pontuam o debate e sem embandeirar em arco ao lado de nenhuma das paixões que costumam agitar-se por aqui. E Sampaio poderá ter sido até especialmente feliz, ao ter sugerido a expressão “descentralização regional” e por preferir falar desta em lugar do termo mais comum de “regionalização”.
De facto, do que se trata é de promover exactamente a descentralização regional - a regionalização constitucional que se quer é apenas isso, mas efectivamente isso. Recordá-lo só serve para infundir alguma objectividade, serenidade e rigor numa matéria crucial da organização do Estado, em que, no calor dos entusiasmos febris, os espíritos por vezes “se passam”, a favor ou contra, em redor do mote “regionalização” e das suas escorregadelas semânticas.
A questão implicitamente posta por Sampaio, demarcando os limites e os termos precisos da sua própria posição, está longe de ser inocente ou de consistir num mero jogo de palavras. Antes, depois do tom inflamado, a roçar por vezes as margens do demencial, que caracterizou muito do primeiro debate aqui há meses, pode servir para recolocar a questão nos seus termos exactos e, nessa medida, para ampliar, sobretudo nesta fase decisiva, a formação dos consensos fundamentais em redor de uma reforma efectivamente crucial - e longamente adiada - do Estado português. É que, na verdade, do que se trata de fazer é uma reforma administrativa onde todos ou quase todos possamos convergir, não tanto uma revolução política onde todos nos preguemos ao estalo.
A criação das regiões administrativas, autarquias locais de nível intermédio, é uma peça essencial da reforma administrativa do Estado e um eixo indispensável quer para o desenvolvimento mais equilibrado do país, quer para o atendimento mais próximo dos cidadãos, das suas questões e das suas necessidades. Ela condiciona não só o acentuar da descentralização no aparelho da administração pública em geral, quer em benefício das regiões elas próprias quer, por arrasto, dos municípios enquanto unidades-base fundamentais; mas condiciona também a melhor coerência e harmonia com os serviços que continuarem a cargo do Estado e a própria coordenação eficaz ao nível disto que se chama habitualmente a “administração periférica do Estado”.
Numa tese científica recente sobre este tema, João Caupers sintetiza-o tão bem que basta citá-lo: “O entendimento adequado do princípio da subsidiariedade vai no sentido de a actividade administrativa ser exercida a um nível tão próximo do cidadão quanto for possível e compatível com as exigências de eficiência e igualdade. Dela decorre a preferência pelo quadro espacial mais restrito possível para o desempenho das missões da administração pública: como regra, o município; a região, se não puder ser o município; o Estado, se não puder ser a região. (...) Um processo de reorganização da administração periférica do Estado e de transferência de missões deste para as autarquias locais poderia desenvolver-se em três etapas, avultando na primeira a criação das regiões administrativas, na segunda a harmonização das circunscrições administrativas e a desactivação do quadro distrital e na última o reforço das competências dos dirigentes das unidades periféricas e a conclusão do processo de transferência de missões para as autarquias locais [regiões já e municípios sempre].”
É isto que se trata de fazer e é por isso mesmo que, vindo a ser tudo isso de forma global e articulada, ela merecerá, a justo título, o baptismo de “a reforma do século”. Que o Governo seja capaz de o concretizar ao longo da legislatura é o desafio que permanece em aberto. Começando exactamente pelo referendo, em que os cidadãos dirão directamente de sua justiça e confirmarão pelo seu punho e voz quais são as sondagens verdadeiras nesta matéria, acabando de vez com as manipulações e os encontrões que abundaram há meses.
É o quadro do referendo que importa ir organizando. Primeiro, verificando se efectivamente se fará, ou não - e quando. Segundo, lançando algumas pistas orgânicas para o debate, que impeçam a formação e a consolidação da ideia de que a “regionalização” é um tema privativo da esquerda, repondo aqui uma clivagem acentuada “esquerda POR/direita CONTRA”.
O primeiro tema tem a ver com as recentes propostas de Marcelo Rebelo de Sousa no sentido de que, dentro de quinze dias, comece tudo a decidir-se. Não se percebem as resistências levantadas pelo PS e a reacção logo desenhada “contra quaisquer ultimatos”. É que, efectivamente, aqui, no processo, o PSD tem toda a razão. Não haverá referendo sem revisão constitucional. E não haverá revisão constitucional sem acordo entre o PS e o PSD. Porque é necessária, toda a gente o sabe, uma maioria de revisão de 2/3, a necessidade desse acordo é inultrapassável - foi sempre assim em revisões anteriores; e sê-lo-á agora uma vez mais. Não podendo ser iludida, a questão tem que ser enfrentada depressa. Resulte como resultar, o que é importante é que fiquemos a saber de vez com que contar. Pode ser que o PS receie um “ziguezaguear” táctico do PSD que tudo viesse a comprometer. Mas, se assim for, isto é, se, querendo comprometer a regionalização, o PSD vier a comprometer totalmente o referendo por vias ínvias, seria o PSD a acabar penalizado - por uma e outra das questões. E a verdade é que, nesse quadro-limite em que toda a revisão constitucional ficasse comprometida nos seus eixos essenciais, a “descentralização regional” sempre poderia fazer-se mesmo sem referendo. O ónus ficaria com quem o inviabilizasse.
O segundo tema prende-se com a responsabilidade individual de muitos cidadãos. Não é verdade, ao contrário do que vai parecendo, que a defesa da criação das regiões administrativas seja tema exclusivo da esquerda. Mas, com o actual bloqueio do sistema partidário e o pânico centralista das direcções do PP e do PSD, é essa a imagem que pode consolidar-se e o tom em que a querela poderá rolar. Muito pode perder-se por aí. Para já e para o futuro seguinte. E, por isso, era indispensável que todos aqueles que, não sendo socialistas, nem comunistas, partilham uma vontade comum quanto à descentralização administrativa e a criação das autarquias regionais - uma vontade tão antiga quanto a Aliança Democrática - soubessem reunir-se e congregar-se num movimento cívico determinante. Uma “Aliança para a Regionalização”, independente e com fundamental sentido cívico e propósito nacional, é o que devia desde já começar a desenhar-se.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 30.Novembro.1996
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