Na fronteira da vida
Agora, em redor do aborto, a palavra que mais se ouve é
“hipocrisia”. Sintomaticamente, como em todos os confrontos culturais. Hoje
como há 12 ou 14 anos atrás, na voz dos seus promotores, a introdução do debate
do aborto livre vem recheado de disparos de acusada “hipocrisia”. Os que não
concordamos seríamos “hipócritas”, porque se mantém na lei uma proibição, mas
não perseguimos as mulheres que recorrem aos circuitos do aborto clandestino. E
seríamos também “hipócritas”, porque, sustentando-se que o aborto é um crime
contra a vida, ninguém propõe “em coerência” o agravamento das penas para
níveis semelhantes ao do homicídio.
Fique desde já a ideia de não haver o menor instinto persecutório.
É verdade; e é bom ver reconhecido que é verdade. Mas também não há ali sombra
de hipocrisia - antes justa medida. Na
comunidade jurídica, para se assinalar a ilicitude de algum acto, é forçoso
dizê-lo e que lhe corresponda uma sanção em abstracto. Mas não se segue daí nem
que as sanções previstas houvessem de ser brutais, abstraindo de todas as
outras circunstâncias e considerações que no problema do aborto se cruzam, bem
como do estado da consciência social, nem que tenham que ser sempre iguais - é obviamente justo, no plano legal, que a
sanção prevista seja mais severa para os que explorem aquele “negócio” e mais
leve (podendo não ser nenhuma) para a mulher que dramaticamente àquele recorra.
Tão-pouco se segue, enfim, que a lei se aplique em automático. Nenhuma lei se
aplica em automático - há uma
administração da justiça. A justiça também se administra. Nisso não existe a
menor hipocrisia; antes, básica humanidade.
A maior hipocrisia é “virar o bico ao prego”. E, hipocrisia
por hipocrisia, nesta batalha de argumentos, são muitas as que são assacáveis
aos defensores da liberalização do aborto.
Primeira hipocrisia: misturar o alargamento do prazo do
aborto eugénico com a legalização do aborto livre. A primeira questão, no
estado da lei, já não é sequer tanto jurídica, como, sobretudo, uma questão
técnica, no plano médico e científico. A segunda é toda a questão e o problema
humanitário e jurídico essencial. A primeira é, de resto, pró-natalista; a
segunda é exactamente contra.
Segunda hipocrisia: que o aborto livre é a forma de combater
o aborto clandestino. É só vontade de falsear por falsear. O aborto livre não
combate coisa nenhuma. A liberalização do aborto é exactamente a própria
legalização do abordo clandestino.
Renuncia, abdica de vez e reconhece ou favorece até o seu
negócio. A experiência mostra, aliás, como são vários - e não apenas, nem sequer principalmente, jurídicos - os
factores que concorrem para os circuitos não-hospitalares do aborto e, perdida
a questão na cultura social, são vários os países onde aqueles
circuitos floresceram de vez e prosperaram sobre a vulnerabilidade alheia.
Terceira hipocrisia: este debate agora, depois de 1982 e
1984. Quando a questão foi aberta, selectivamente sobre o aborto ético, o
aborto eugénico e o aborto terapêutico, já se proclamava que era forma de
“combater o flagelo do aborto clandestino”. Foi observado que não era - que uma coisa não tinha a ver com a
outra; e que, quanto àqueles, a alteração do Código Penal não era necessária,
pois a sua parte geral continha as salvaguardas necessárias (que se aplicam,
aliás, ao recente “caso Strecht”). A razão era outra. Para lá do possível valor
respeitável da segurança jurídica, a legislação específica sobre aqueles casos
de dúvida cruciante serviria sobretudo para, no debate cultural e na
consciência social, rasgar frestas num edifício de pensamento e para vestir de
relativo uma questão absoluta: a vida. Abertas as brechas, abalado e
fragilizado o edifício, então, mais tarde, se assaltaria a questão de fundo: o
aborto livre, isto é, o aborto por razões económicas ou sociais. Aí estamos.
Quarta hipocrisia: que o aborto livre vai resolver os
problemas. Não vai. Hoje como antes, o aborto clandestino é uma fácil alavanca
de luta - mas é realmente uma
desprezadíssima questão social e humana. Liberalizar o aborto é matar o
“sintoma”, para poder continuar a ignorar os problemas. Se é verdade que, em
cada aborto clandestino, em cada aborto por razões económicas ou sociais,
existe um pedido de socorro implícito ou um desespero de solidão, na angústia
de uma decisão sofrida, a resposta social do aborto livre não responde a coisa
nenhuma, consagra o abandono e executa o apagamento.
Quinta hipocrisia: a repetição reiterada de que,
liberalizando-o, o aborto não pode ser um instrumento de planeamento familiar e
de controlo da natalidade. Estamos de acordo quanto a que “não deve ser”. Mas
não é verdade que o aborto livre não seja isso. O aborto é isso. O aborto - como hoje diríamos, “por razões
económicas ou sociais” - é precisamente
o meio mais antigo, mais primitivo, mais bárbaro, mais violento e mais
agressivo de controlo da natalidade e, se se quiser, “de planeamento familiar”.
Foi sempre assim. Antes do conhecimento de quaisquer métodos naturais e muito
antes de quaisquer técnicas ou medicamentos, o aborto foi praticado desde
sempre - e é, aliás, contra a
natalidade, 100 por cento eficaz. Por isso é que ele se pratica; e nunca foi
completamente erradicado. A questão jurídica, cultural e de civilização,
humanitária, é exactamente essa, só essa: o aborto ser, ou não ser, um
instrumento válido de controlo da natalidade, respeitando ou ignorando a vida
que lá está.
Sexta hipocrisia: a ideia de que a liberalização do aborto
por razões económicas e sociais é uma medida a favor da mulher. Não é verdade.
Bem ao contrário, decorre da mesma ideia de que os filhos são carga exclusiva
da mulher, mãe sem pai, e sem família, e sem avós, e sem comunidade. É uma
medida que agrava a sua vulnerabilidade, favorecendo, em circunstâncias difíceis,
a pressão de um acto sobre ela e o seu filho, que carrega sempre consequências
dolorosas para ela e o seu filho. No resto, é a história macholas de sempre - em diálogo figurado, de indignação
pós-coito, entre o ainda terno e o já surpreendido, caminhando para o bruto,
diz o homem para a mulher: “Então, tu não tomaste as cautelas?” Para logo
concluir, macho e já embrutecido: “Eu pu-lo lá. Agora, carrega-o tu ou tira-o
tu.”
Sétima hipocrisia: a campanha de que se trata de uma questão
religiosa e, convocando as habituais costas largas, que são “a Igreja e os
padres” a imporem um conceito privativo. Não é verdade. O aborto livre não é
uma questão religiosa. É uma básica questão social e de humanidade. Fundamental
e principal - porque exactamente “do princípio”. A vida é para a sociedade um
bem livremente disponível, ou não - é
disso que se trata.
A lista podia ser interminável. Sem nunca haver acordo
quanto a ela, pois é de uma disputa de cultura social e humana que se trata.
Mas a hipocrisia que sempre mais me surpreendeu nesta matéria é a do obstinado
obscurantismo em que é construída. Há alguns séculos ou no princípio deste
ainda, podia-se talvez disputar os fundamentos do conceito seguro sobre a vida
humana desde o momento da concepção.
Já não é assim. Sabemos hoje, de ciência certa, que a vida
humana é desde o momento da concepção e que é, desde esse momento, una,
individual e absolutamente irrepetível.
Num livro que se desfia aceleradamente, sobretudo, desde a
década de 60, com os progressos da genética, da embriologia, da fotologia, da
obstetrícia, sabemos já quase tudo do essencial, momento a momento, dessa vida
já. São conquistas recentes do nosso tempo comum: os meus filhos mais novos já
os vi antes de nascerem, a mais velha ainda não.
Nunca percebi e nunca irei entender como é que são, porque é
que são exactamente aquelas gerações que são cada vez mais privilegiadas e
favorecidas com o conhecimento directo, palpável, mensurável, concreto e até
positivista de que a vida humana é como é desde o momento da concepção que se
aprestem a querer legalizar e liberalizar o que antes, embora não tão
conhecido, não era lícito. A explicação só pode ser parente da hipocrisia e do
obscurantismo: não ver, não querer ver, não querer deixar ver.
Em qualquer debate sério, já não é admissível ouvir-se dizer
que se trata do direito da mulher a “dispor do seu corpo”. Não é o seu corpo.
Não é um quisto, nem um apêndice. É uma vida própria, singular, que, antes do
parto como depois dele, precisa apenas da protecção necessária a desenvolver-se
naturalmente sobre si e com os outros.
Há uma batalha de esclarecimento indispensável. É tanto e
tamanho o obscurantismo em que se insiste em abafar a questão que é fácil
acreditar que são muitos e muitas os que honestamente não sabem - que nunca viram, nem ouviram.
Provavelmente, dentro do drama de cada decisão pessoal, são muitos e muitas os
que, nessas cifras incríveis do aborto clandestino, pura e simplesmente não
sabem o que estão a fazer, porque não lhes foi dito, nem explicado; antes lhes
é, daquele modo, exactamente mentido, conscientemente falseado e teimosamente
mistificado. Devia-se começar por aí. Informar e esclarecer. Seriamente. A
ciência é aliada da moral.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 2.Novembro.1996
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