Segredos e munições
Não tinha reparado bem nisto. Há uma semana, o jornalista
Daniel Adrião, do “Semanário”, observava: “A verdade é que nenhuma das vedetas
políticas que até agora entraram nos guiões jurídicos do senhor procurador foi
condenada. E provavelmente nenhuma o será. O que não impediu que as carreiras
de uma mão-cheia de políticos tivessem sido manchadas pelas 'mãos limpas' da
justiça portuguesa.” De facto, impressiona. O problema mais sério está
exactamente aqui. Será cedo para concluir em absoluto. Mas o rol já existente e
a enormidade, até no plano técnico-jurídico, de algumas das acusações
levantadas e pendentes nalguns processos mais “mediáticos” levam ao menos a
reflectir sobre a penetração da máquina de investigação judiciária por intuitos
meramente políticos a que uma violação selectiva do “segredo de justiça”
empresta os meios de realização suficiente dos seus propósitos reais.
A curiosidade é muito grande em saber como se concluirá o
inquérito global que foi aberto, a pedido do procurador-geral da República depois
das críticas de Freitas do Amaral. Não é imprescindível que o inquérito
determine já “quem” foi que quebrou o “segredo”. Essa poderá ser matéria
posterior para a própria Procuradoria-Geral ou outras instâncias da
administração judiciária, já que é àquela que cabe a investigação das
responsabilidades criminais que possam existir e a promoção consequente, assim
como é àquelas que cabe efectivar a responsabilidade disciplinar que caiba
ainda sobre os prevaricadores.
Honra seja, aqui, ao procurador-geral da República, que
declarou publicamente “não pôr as mãos no fogo por ninguém”. E a
responsabilidade do inquérito e dos inquiridores, longe do apuramento directo
das responsabilidades pessoais que haja, deve consistir fundamentalmente na
identificação de saber se as violações do “segredo” terão provindo tão-só de
assistentes e “acusações particulares” ou de fontes estranhas aos processos, ou
só poderão antes ter tido origem no Ministério Público ou noutros patamares da
administração judiciária.
Para já, é isto que importa saber. E é indispensável
saber-se.
Por mim, ofereço-me desde já para relatar e chamar a atenção
dos inquiridores para um caso que conheço, em que a quebra do “segredo” não
pode de modo algum, com quase absoluta certeza, ter ocorrido noutro sítio senão
no Ministério Público ou nos serviços sob sua directa responsabilidade. Um
“caso” que seguramente não dará nada, senão o manchamento gratuito e leviano da
honorabilidade e do bom nome de, ao menos, um dos “arguidos”. Um “caso”, por
sinal, em que não há assistentes, nem acusação particular.
Um “caso” tão extraordinário na ligeireza acusatória que se
atropelaram, a meu ver, várias regras legais e processuais quanto à
identificação das responsabilidades de que pudesse tratar-se e em que não
existe nem “móbil”, nem sequer “queixoso” ou “ofendido”. Mas um “caso” em que a
“acusação”, severa e desonrosa, foi disparada e, tal como noutras vezes, o
“arguido” viu-se notificado pela comunicação social, bem antes de pelo
funcionário judicial. Não sei quem foi. Se soubesse, tão-pouco corresponderia
ao apelo público de “delação” que foi feito. Mas sei que, nesse caso concreto,
a violação selectiva e dirigida do “segredo de justiça” não poderia ter tido
outra origem senão nos seus “guardiões”.
Seria, aliás, importante que todos os que conheçam casos
idênticos os pusessem em cima da mesa à análise dos inquiridores. A questão é
grave e muito séria. Não é “brincadeira” qualquer; antes pode ser a maior ameaça aos direitos e
liberdades individuais que por aí existe a desenhar-se. Um dia, pode ser tarde.
Um plano para que procurou fazer rolar-se a questão foi o de
que o problema está na imprensa e nos jornalistas. A verdadeira “violação”
estaria nestes, pois são eles que publicam. Não é assim. Costa Andrade já por
diversas vezes, recentemente, rebateu este ponto: não são os jornalistas que
têm o dever do segredo de justiça; antes o problema põe-se apenas - e deve ser posto sobretudo - quanto àqueles que, intervindo no processo,
sobretudo quando titulam responsabilidades públicas de investigação ou condução
processual, estão vinculados a esse “segredo” por lei e por estatuto.
A eventual ameaça às liberdades individuais não provém nunca
da comunicação social, por mais incómoda que seja. Mas tão-só de quem, dispondo de
autoridade e investido do dever do “segredo”, justamente o viole e o viole “ad
hominem”, manipulando a comunicação social ao seu serviço. Há aqui fronteiras
ténues e difíceis de marcar; mas que, por isso mesmo de serem difíceis, têm de
estar presentes e demarcadas. Não é tudo a mesma coisa. Não é “tanto faz”.
Os jornalistas e os “segredos” são - já se sabe - espécies
que se dão mal. O jornalismo sempre procurará furar os “segredos”, todos os
“segredos”, e dar a saber. Foi sempre assim e sempre assim será. Daí não vem
mal especial ao mundo, por mais incómodo que isso possa ser. Cumpridas ou
feitas cumprir outras garantias, que a própria imprensa deve observar, esse
quadro é ele próprio uma das maiores garantias das sociedades democráticas e
abertas. Mas onde já vem mal ao mundo é que possam estar entre os “guardiões do
segredo”, que titulam responsabilidades públicas, os que mais se entretenham a
violá-lo, seja tão-só ocasionalmente, seja de forma regular, organizada e
continuada, entrando em acordos de “fontes”, estruturando a promiscuidade geral
e construindo teias de cumplicidades.
Há diferenças várias - e
não só de pormenor, nem só de forma - entre
um jornalista que penetra um “segredo” e um “segredo” voluntariamente
franqueado ao jornalista. No primeiro caso, o jornalista serve a sua própria
investigação e o seu próprio e estrito interesse jornalístico. No segundo, está
já a ser instrumentalizado, servindo interesses inconfessáveis, que, por isso
mesmo, se escondem e protegem no anonimato. Um jornalista que investiga, por
mais penetrante e incómodo que seja, tem sempre capacidades limitadas; não pode
lançar mão de meios ilícitos de busca e corre o risco de ser sancionado,
perseguido pelo próprio Ministério Público, se o infringir. Nesses limites naturais
repousa algum do equilíbrio das coisas entre privados.
Ora, não é assim com as autoridades judiciárias. Estas
investigam munidas de poderes de autoridade, dispondo de um aparelho
profissional e organizado, com capacidade e poder para penetrar o que ao comum
dos mortais se não oferece, para coligir, reter e, sendo o caso, perseguir.
Muito justamente, aliás, desde que para os fins próprios da instrução
processual. E o risco - a
questão - está exactamente aqui:
que não seja já a imprensa a procurar saber; mas os que deviam guardar, a
revelar e a escancarar, organizando e manipulando as “fugas” ao sabor dos seus
interesses e conveniências. Umas vezes, procurando agravar prematuramente o
conceito público sobre os que perseguem; outras vezes, nem isso, mas libertando
apenas informações que nunca darão propriamente “processo”, assim “acreditando”
puras difamações sob a capa de inquirição parajudiciária.
Onde o risco severíssimo para as liberdades individuais está
é em que, transformando-se numa qualquer floresta da Bósnia, a máquina da
investigação judiciária possa acolher e proteger um ou vários “snipers” que,
sob o manto blindado da autoridade, vão disparando os seus “segredos” sobre
cidadãos desprevenidos e, em especial, os “políticos”.
A pior polícia de choque é aquela que, à ameaça do cacete,
pode juntar a subtil e engenhosa manipulação dos códigos e o ânimo de querer
empurrar a caneta do juiz. Muita polícia política começou por aqui. E muita
trilhou também aqueles caminhos em que não o fazia sequer no quadro de processos
propriamente organizados e susceptíveis de seguirem o seu curso leal; mas
tão-só para ir difamando e manchando, sem que alguma condenação efectiva ou
sequer acusação ou pronúncia formais alguma vez viessem a acontecer.
Por isso, esta é uma questão cívica de primeira grandeza.
Lembro muitas vezes uma frase que, ainda nos bancos da Faculdade de Direito, li
afixada numa das salas do Palácio da Justiça: “A injustiça feita a alguém é uma
ameaça pendente sobre todos.” A dúvida é inquietante. É isso que está em causa.
Para todos. E não só para os “inimigos” favoritos de A ou de B. Há ali um
perigo real e enorme para liberdades cívicas essenciais. O problema merece a
mesmíssima atenção e indignação que os célebres “mandatos em branco” do Copcon.
A ser verdade, é por aqui, “aggiomatto”, que passará um novo modo de
terrorismo... “de colarinho branco”.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 23.Novembro.1996
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