Futre
Não sei se foi por influência de a discussão do Orçamento de
Estado, desta vez, ter andado abafada pelas trapalhadas do futebol, mas por
associação de ideias foi isto que me ocorreu. Aqui há uns anos, estava Futre no
Atlético de Madrid e começou a falar-se no seu regresso a Portugal, largando os
braços do seu amigo Gil y Gil e querendo mais e mais. O Sporting parecia a
hipótese mais natural, quer porque fora o clube que o formara, quer porque era
o que mais se agitava para o regresso. Futre fez, nessa altura, umas comovidas
e comoventes declarações à televisão no meio da habitual agitação mediática que
rodeia estas transferências de celebridades. Declamou que nunca deixara de ser
sportinguista e, provocando lágrimas nos adeptos, terminava exclamando o muito amor
que tinha pela massa associativa verde. Não tinham passado 15 dias sobre esta
declaração de amor e Futre estava contratado ... pelo Benfica! Uma vergonha.
Benfiquista que sou, tenho para mim, nas análises infalíveis
- os adeptos de café e de bancada somos sempre infalíveis - que costumo pregar
ao meu filho, que a decadência da equipa do Benfica se cavou exactamente aí.
Escancarou de forma escandalosa o mercenarismo absolutamente primário destas
coisas e deixou de rastos, ofendendo, aquela "mística" que nós,
lampiões dos sete costados, tanto gostávamos e gostamos de celebrar, apesar dos
"tempos modernos" e do seu mercantilismo galopante. Os danos anímicos
e morais naquilo que os futebol-analistas chamam "o grupo de
trabalho" foram enormes. Tempos depois, Artur Jorge acabou o resto. O
Benfica viu equipas serem desfeitas e ficou entregue, no meio de uma crise
profunda, à necessidade de ter que reconstruir tudo outra vez - o que às vezes
leva muito tempo; e outras vezes nunca mais se consegue.
Futre, transferência oportunista de milhões - que pelo
caminho rebentaria também com a administração da RTP... -, fez, aliás, uma
época apagada ou quase medíocre, com ressalva talvez da final da Taça, em que
já estava de saída. Espanto dos espantos, bem antes de acabar a época e o
campeonato, já se discutia abertamente a sua ida para a milionária Itália, onde
o seu apagamento continuaria, à mistura com lesões. Hoje, Futre prossegue,
sempre no estrangeiro, uma carreira de segunda, sobretudo quando comparada com
o fulgor que marcou temporadas brilhantes, bem novo, nos anos 80, no Sporting,
sobretudo no FC Porto e ainda no Atlético de Madrid.
Aquela transferência vil para o Benfica marcou a diferença.
Em vez de ser a rota do apogeu, foi o início do plano inclinado da decadência.
E foi estragando muitas outras coisas pelo caminho.
A pirueta do PP quanto ao Orçamento de 1997 pareceu-me do
mesmo tipo. Compreende-se a satisfação imediata do Governo. Não se compreende
que militantes e eleitores "pêpistas" tenham muito a festejar. Vir em socorro
do Orçamento de Estado de Guterres e Sousa Franco 15 dias depois de o ter
chumbado na generalidade porque era "o Orçamento da moeda única" não
tem grande explicação capaz. Cheira a arranjismo puro e, outra vez, ao pior de
tudo aquilo contra que o PP pretendeu afirmar-se.
Até porque, pelos jornais, nem parece que tenha conseguido
grande coisa. Ainda se as "vitórias" na especialidade tivessem consistido em
questões de grande significado social - isto é, em causas -, poderia
explicar-se. Por exemplo, se o PP tivesse conseguido do Governo, à semelhança
do que acontece com as despesas de saúde não reembolsadas, a eliminação nos
abatimentos para o IRS do apertadíssimo tecto existente para as despesas de
educação, por forma quer a proteger as famílias com mais filhos a cargo, quer a
concretizar a igualdade entre o ensino particular e o ensino público. Ou outras
medidas deste tipo. Mas nada disso: as cedências combinadas têm um recorte tão
técnico e tecnicista que são difíceis de explicar e de perceber, não merecendo
efectivamente mais do que o duro diagnóstico de Vítor Cunha Rego - foi para
agradar aos financiadores. Já se viu votar-se contra na especialidade e a favor
na generalidade ou na votação final global. É até normal e frequente que assim
aconteça - isto é, aceita-se o sentido geral de um dado documento, mas
rejeitam-se estas ou aquelas medidas em concreto que nele se contêm. Mas
rejeitar por inteiro na generalidade e viabilizar tudo na especialidade é coisa
tão especial que nunca se viu. Sobretudo quando o Governo - e à cabeça o
primeiro-ministro -, nas arengas contra a oposição e o PSD em particular, fez
questão de frisar que, nos debates na especialidade, "não consentiria que
fosse descaracterizado o Orçamento da moeda única". Que seja o PP a
viabilizar o que ele mesmo baptizou de "a perfídia" maior é coisa que
escapa à mais ampla capacidade de entendimento.
Tal como com a célere "traição" de Futre, são
cambalhotas destas que matam e desmoralizam. Sobretudo os partidos
"morais". Seu crédito, suas hostes, seu fôlego.
Na ânsia de protagonismo e de "credibilidade de
Estado", conjugada com a sempiterna ciumeira do PSD, pode ser que alguém
tenha sugerido à direcção jacente do PP a célebre frase heróica de D. Luísa de
Gusmão: "Antes rainha por um dia que duquesa toda a vida!" Só que, se
assim foi, houve um ligeiríssimo erro de perspectiva. Com actos destes, o que
os dirigentes do PP conseguem não é bem isso de ser rei, ou sequer reizinho,
mas ... mordomos - mordomos do PS e mordomos da moeda única, mordomos a vida
inteira. A D. Luísa, rainha da Restauração, isso propriamente não lhe apetecia.
Os "duchaises" não dão, de facto, a mesma inspiração que as duquesas.
Se calhar, isto não tem importância nenhuma. Foi tudo tão
arrasado nos últimos meses que a direcção do PP que vier, depois do próximo
congresso, terá praticamente que começar tudo outra vez. Como que fazendo tábua
rasa de tudo o que de pior se tem passado. Mesmo se for Manuel Monteiro de
novo; e sobretudo se for Manuel Monteiro outra vez.
Mais nódoa, menos nódoa por cima de uma nódoa geral não faz,
de facto, muita diferença. Às vezes nem se nota. E, no estado arrastado de
decapitação em suspenso que é actualmente o do PP, pode ser que mais este
episódio não assuma importância de especial face a tudo o resto que importa
resolver. Ainda assim, o episódio deste Orçamento de Estado - assim visto pelo
PP como "geralmente muito mau, mas especialmente bem bom" - é facto
que não ajuda de todo à reposição da questão maior: linha, projecto, coerência.
Quando se fere a corda sensível que prende a adesão das
pessoas, é sempre muito difícil recuperar. Essa é que será, no rescaldo de um
semestre "horribilis", a maior questão para o PP.
José Ribeiro e Castro
Jurista
PÚBLICO, 7. Dezembro.1996
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