O pacto dos pobres


Um dia, pararemos para olhar. E para pensar. E resolver. Ou então, algum dia, quando acabar este período de intervalo cívico que tem sido definido como "o fim das ideologias", uma outra revolução irá estoirar. Inevitavelmente. Ou bem porque as hordas de marginalizados se revoltarão, a sobrar-lhes ainda a força e a energia; ou bem porque a todos ou a muitos se nos tornou absolutamente insuportável esta visão chocante da miséria, e da extrema miséria, penando nas ilhargas da cidade ou arrastando-se já no seu coração, nos corredores do Metro, nos semáforos, nos bancos dos parques, nos vãos das escadas, nos quartos vazios, nos caixotes dos nossos desperdícios.

Um estudo dado a público esta semana dava conta de serem 200 mil as famílias em situação de pobreza. A situação é pior ainda. Há alguns meses, um outro estudo, este de Alfredo Bruto da Costa, que de há muito estuda esta problemática, dava conta de mais de dois milhões de pobres em Portugal, cerca de 25 por cento da população.

O escândalo é este. A situação está pior do que há décadas atrás.

A geração a que eu pertenço arrancou dos anos 60 e 70 na convicção e na determinação de que ia resolver todos os problemas do mundo. A questão social, na primeira linha. O facto de muitos que partiram daí terem feito profissão de fé, definitiva ou intercalar, pelo marxismo e suas correntes, teve origem naquele quadro - "Levantai-vos, ó vítimas da fome." E, todavia ...

Quando 30 ou 20 anos depois, trintões, quarentões ou já cinquentões, estamos no tempo do nosso poder social como geração e no fulgor da nossa vida activa, manejando nos mais diversos sectores da sociedade todos os cordelinhos da vida política, económica e social, a situação que temos não é melhor do que ontem, não é mais desafogada do que aquela contra que nos torcíamos ou protestávamos, não é mais radiosa como prometíamos. Mas pior.

Essa realidade esmagadora, que as estatísticas confirmam e a simples passagem nas ruas revela, soa como um estrondoso fracasso. Há mais pobres! Segundo muitos, nunca houve mesmo tanta miséria. E as situações de extrema miséria, de quase absoluto desvalimento social, de exclusão mesmo, que horrorizam e arrepiam, muito para baixo da humanidade mínima, parece não cessarem de alastrar. Mantêm até condições objectivas para crescer. É aí que aterra o recentíssimo Pacto de Solidariedade. Mais um marco do que já a resposta. Na pesada ironia que, ao modo de alerta, o padre Vítor Melícias o descreveu, será sempre um momento "histórico" - "ou êxito histórico, ou... fracasso histórico, mas sempre 'histórico'".

O melhor de tudo é a correcção do tiro, ou melhor, das estratégias sociais. Vão longe os tempos da extrema arrogância estatizante ou da extrema cagança juvenil em que, tudo apoucando sob o epíteto da "caridadezinha", se reclamava para o Estado o dever - sem dúvida -, mas também o poder, a obrigação única e a possibilidade concreta de a tudo atender e resolver.

O explícito reconhecimento da impotência do Estado fica-lhe bem. Não para que desista, porque a responsabilidade maior continuará a pertencer-lhe. Mas porque identifica aliados, potencia instrumentos naturais de organização de base e sobretudo acolhe e protege sentimentos espontâneos de voluntariado e de generosidade social.

As causas destes fenómenos sociais gravíssimos não são uma única. São várias. Mas, como mancha geral, o que pode dar-se como certo é que é imperioso um certo regresso às "políticas de assistência". Por outras palavras, o "espantoso fracasso dos anos 60", que, no tocante à efectiva pobreza e à extrema miséria, é sensível não só em Portugal, mas um pouco por toda a Europa, deve-se largamente à circunstância de que as estritas "políticas da segurança social", mais emblemáticas do Estado-Providência, não chegam lá.

As políticas de segurança social, na dependência da sanidade e do fôlego financeiros do sistema, asseguram protecção na medida em que os indivíduos se mantêm na cadeia dos activos. Mas o problema está precisamente em que muitas das situações que aqui estão em causa estão completamente fora desses parâmetros tipificáveis em leis, decretos, despachos e portarias. São quadros de toxicodependência, de alcoolismo, de rupturas familiares agudas, de desemprego de longa duração, de se descobrir de repente que se tem "a idade errada, no sítio errado, no tempo errado", de "desgraças que nunca vêm sós", etc.

A marginalidade maior é justamente a daqueles que não só se acham marginalizados face aos circuitos da economia normal, mas também pelos sistemas públicos de protecção social onde não são enquadrados ou sequer enquadráveis. Por outras palavras, a daqueles que só em termos "de assistência", que não já "de segurança", podem ser atendidos. Para acorrer à atípicidade e multiplicidade das situações concretas, só as instituições de base, filhas do voluntariado, mergulhadas no tecido humano concreto dos casos reais, é que podem chegar lá e, de facto, chegam lá. Essas instituições podem garantir, melhor do que qualquer Estado, um rastreio efectivo da realidade, um rastreio substantivo e humanizado, não meramente estatístico. Essas instituições podem assegurar - e asseguram - respostas múltiplas, no dia-a-dia concreto dos necessitados, como nenhum Estado conseguirá alguma vez fazer. Essas instituições são até os melhores (e indispensáveis) aliados no Estado na aplicação de medidas extremas de segurança social, como o rendimento mínimo garantido, monitorando e assistindo aos casos concretos e, assim, prevenindo a explosão oportunista de fraudes abusos ou distorções.

O pacto é um bom ponto de partida. É só isso. Mas, como isso, é bom. Muito embora vá ser preciso fazermos, todos, algum profundo revisionismo cultural. Nas políticas de família, nos ideários da política, nas teorias económicas, nas doutrinas sociais. E até quanto à importância de Deus na cidade.

O escândalo dos números e da profundidade das situações de miséria e de extrema miséria levará forçosamente, mais cedo ou mais tarde, a termos que rever alguns dos traços principais da cultura dominante em que rola a nossa vida. A situação dos velhos é das mais vergonhosas e perfila um dos dramas maiores dos "tempos modernos": o império frenético dos activos, terminando na angústia e, quantas vezes, na absoluta solidão. Ai, nos tempos que correm, de quem saiu da vida activa!

Mas há muitas mais coisas que teremos que rever, neste clima de "downsizing" imperante.

É indispensável que as instituições nos contem tudo. Quem mais sabe que nos conte. Não só os números, mas as realidades concretas, humanas, como são. E que os "media" publiquem sem cessar. Se a cidade marginaliza estes casos, para proteger dos seus olhos pudicos o aviltamento da miséria, começa por ser indispensável trazer de volta o seu conhecimento, repor o tema no centro da cidade e no núcleo principal da agenda. Todos temos a obrigação e o direito de conhecermos realmente o mundo que andamos a construir. Todos temos a obrigação e o direito de conhecermos realmente o que é que andamos a fazer. Não só nos corredores afluentes da pós-modernidade e do sucesso; mas também nas suas margens cada vez mais largas e cavadas.

Um dia, pararemos para ver. E para pensar. Senão ...



José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 21.Dezembro.1996

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