Um ministro em demissão preventiva

Quando a juíza de Évora ordenou a prisão preventiva do guarda Severino, dá ideia de que determinou a mesma medida quanto ao ministro Alberto Costa. Tem estado quase que absolutamente calado. Dir-se-ia que retido ou detido. E é isso que não se compreende de todo, sobretudo diante das proporções que o caso foi assumindo.

Não é a primeira vez que alastra esta sensação de absoluta insegurança quanto ao ministro mais responsável pela segurança. O que só faz avivar a memória quanto ao diagnóstico certeiro que o anterior director deste jornal, Vicente Jorge Silva, em tempos fez: Alberto Costa seria um caso claro de "erro de 'casting'"; designaram-no para uma pasta a que não se ajeita e de que manifestamente não gostará. Por si, antes gostaria de ser contra as polícias, como quando jovem; e aborrece-se, atrapalha-se, engasga-se, com esta ironia de ter sido tornado seu chefe.

O caso de Évora começou mal, muitíssimo mal mesmo. Começou com uma mentira grosseira: a da morte do delinquente por "doença súbita". O caso, aliás, é tão nebuloso - e às vezes contraditório - nas notícias e versões que foram dadas a público que é muito difícil emitir juízos ou opiniões sobre aquilo que se passou, sem conhecer rigorosamente os factos como foram e todo o contexto da sua evolução.

É facto que quando, face a todas as circunstâncias que mais tarde se alegaram, se contesta a decisão da juíza que libertou os outros assaltantes e ordenou a prisão preventiva do agente da PSP, a contestação parece acertada. Até porque, pelas explicações que, com aparência oficiosa, da juíza se verteram para a imprensa - alegados maus tratos na esquadra, disparo provável a menos de 2,5m e recusa na identificação do colega que dera a ordem -, nenhuma se enquadra nas razões que podem inspirar uma medida de coacção deste tipo. E, se assim foi, a juíza de instrução, indignada com o que lhe foi presente, terá querido pré-determinar uma punição e poderá ter exorbitado dos fins próprios da prisão preventiva, nos termos do próprio Código. Mas só os termos exactos do processo é que permitiriam ajuizar.

Assim como seria interessante saber que posição concreta tomou o Ministério Público nos autos, sabendo-se que se trata de um agente da autoridade que alega ter agido em cumprimento do dever e nos termos do regulamento por que se rege. Seria outro tema para reflectir. Mas tudo isso pertence também ainda às névoas deste caso.

Certo é que se começou muito mal. E tudo o que, agora, é levantado e esgrimido, seja pelo agente detido, seja, em reacção solidária, pelos seus colegas de esquadra, pelos seus colegas em geral e por populações inquietas ou agitadas, é seriamente perturbado e posto em questão pela mentira original de tudo isto. Uma mentira, para mais, que teria passado despercebida ao próprio hospital - é isto possível? - e que só a autópsia poria a nu.

O grande desconforto e confusão que o caso continua a inspirar deve-se principalmente a isto. Há claramente uma "história mal contada". E o país não pode dar-se bem com as polícias a contarem-nos "histórias mal contadas".

A PSP e os seus agentes terão, porém, alguma razão em reagir contra um excesso de pressão que sobre eles se abate. Não é possível, por um lado, exigir reforço de segurança num quadro de intranquilidade crescente que os últimos anos agudizaram e, ao mesmo tempo, por outro lado, penalizar aqueles que efectivamente actuem no cumprimento do dever.

A reacção suscitada pelo caso de Évora terá mais a ver com esse sentimento generalizado de "insegurança da polícia" do que propriamente com o caso em si - que começou pessimamente.

As consequências sociais de uma tal "insegurança" da polícia podem ser, aliás, desastrosas. Nem valerá muito a pena, aí, teorizar sobre a "proporcionalidade" entre os delitos e os termos de cada reacção. Até porque o sentimento de "insegurança" a que as populações vão sendo cada vez mais sensíveis não tem nada a ver necessariamente com o agravamento da criminalidade violenta e efectivamente mais grave. Antes decorre exactamente da simples generalização crescente dos pequenos crimes (como o de Évora), difusos um pouco por todo o lado e psicologicamente associados de um modo geral às ondas da toxicodependência. Basta isto para deixar as populações "à beira de um ataque de nervos". E bastam esses "ataques de nervos" para, ao modo do "far west", vermos crescer, diante da sugerida inacção ou impotência das polícias, as milícias populares e mesmo linchamentos sumários, como já se assistiu.

Por isso mesmo, o silêncio do ministro é gravíssimo. Estas questões são de fronteiras delicadíssimas e extremamente sensíveis. Trata-se de exigir e de garantir que as polícias vão, sem regatear esforços, até aos limites do que devem, mas que não ultrapassam, sem renunciar ao profissionalismo, os limites do que podem.

Esta fronteira é, nalguns momentos, extremamente incerta. E por isso é que é exactamente aqui que o responsável político mais deve falar: primeiro, para definir doutrina clara; segundo, para manter a liderança e a condução políticas das corporações e dos agentes que o país confiou à sua guarda; terceiro, para afirmar Direito sem gerar desordem; quarto, para reformar onde sinta ser necessário, mas sem desmantelar (se não é isso que quer); quinto, para repor ordem e segurança, nas corporações por que é responsável e diante das populações que serve; sexto, para intervir claramente em todos os casos que gerem situações críticas, reafirmando e aplicando ao caso concreto todos os princípios da sua acção política; e, sétimo, para afirmar e manter sempre níveis elevados de confiança quer nas corporações por que responde, quer no país a que tem de responder.

Ao ministro, não basta sequer dizê-lo uma vez só. Tem que o dizer tantas vezes quantas forem necessárias. Tem que esclarecer em termos compreensíveis, diante dos casos concretos e não só da teoria geral, o que está certo e o que está errado, o que é dever e o que é abuso, o que tolera e o que não tolera, o que exige e o que proíbe - o que garante, o que quer e o que combate. E tem mesmo que repetir-se - porque, exactamente, os casos se repetem. É assim a vida.

É aqui que o ministro da Administração Interna tem falhado redondamente. Pode lamentar-se - talvez com razão - de que isto não é fácil. De facto, não é nada fácil. Mas ninguém disse que esta coisa de se ser ministro é fácil. É assim a vida...

Se não consegue, só tem uma saída: deixar de o ser. A demissão preventiva, antes que isto venha tudo a ruir de vez: a polícia inibida, desnorteada ou amotinada; os assaltos por aí; o sentimento de insegurança a crescer; e as condições de anarquia a generalizarem-se.


Era óptimo, de facto, um mundo cor-de-rosa sem polícias e sem ladrões. Mas, porque o crime, infelizmente, existe e porque precisamos da polícia para nos defendermos dele, é preciso um ministro que comande de facto o sistema. E, a somar, porque queremos uma polícia que não se confunda jamais com as milícias populares e que actue nos limites do Direito, da proporcionalidade e da decência, não precisamos só de um ministro - precisamos de um ministro atento, disponível e interveniente. De preferência, seguro.

José Ribeiro e Castro
Jurista

PÚBLICO, 28.Dezembro.1996

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